O motivo pelo qual não consigo ver "20 dias em Mariupol"

Neste mundo existe a arqueologia enquanto ciência e a guerra enquanto coisa supostamente justificável e depois existe tudo o resto que circula no meio. Eu estou no meio, confortavelmente na minha bolha de classe média burguesa, de quem de vez em quando acha que o mundo vai acabar porque determinado tipo de caneta comprada há muito tempo ficou sem tinta e agora não se sabe onde ir comprar modelo igual. Aqui há uns dias, por outro lado, um amigo fez-me ir ver o documentário 20 dias em Mariupol. A minha dificuldade em assistir ao filme começou na primeira cena em que aparece um ser vivo morto. Esse ser outrora vivo era um felpudo gato preto, por sinal bastante parecido com o meu, um buda opulento e hipersocial, gato de meia-idade algures no Oxfordshire. Há uma parte de mim que sente uma tristeza absurda ao contemplar este gato ucraniano morto, cuja vida foi injustamente interrompida. Não merecia morrer, não há razão nenhuma de estado neste planeta que valha a vida de um simples gato. É absolutamente monstruosa a imagem de um gato atingido por uma bomba. Todo o absurdo do mundo é para mim esta imagem deste pobre gato morto. O mundo tem muitas arqueologias e está cheio de coisas completamente injustificáveis porque são obscenas e a obscenidade não é necessariamente uma questão de pornografia. Quando uso a palavra obsceno, na verdade, frequentemente ocorre-me o uso perigoso que os gregos antigos tinham para ela: obsceno era aquilo que acontecia fora de cena na tragédia grega, por ser demasiado violento para ser representado em palco, mas talvez seja ingénuo e perigoso pensar que devemos desviar os olhos do mal ou pensar que não é igualmente obsceno saber que ele existe e fingir que não o estamos a ver. É assim que ele vai sobrevivendo. Aqui há umas semanas reli Os Grão-Capitães de Jorge de Sena. Em 1971, pouco menos de uma década depois de ter escrito estes contos, que ele achava que nunca iam ser publicados por causa da ditadura em Portugal, Sena escreveu-lhe um prefácio (o livro acabaria por ser publicado em 1976). Copio aqui um excerto.

Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito do que qualquer vida humana; e se por acaso esses valores alguma vez existiram, estão hoje a tal ponto impregnados de falsidade baixamente humana (ou melhor, a tal pontos eles degradaram a dignidade humana), que são ainda piores do que inexistentes. Porque não é deles que a dignidade humana é feita, mas de muitos singelos e modestos valores imanentes: respeito e tolerância, honestidade e simpatia, horror do mesquinho e do medíocre, e outras destas coisas mais, como a consciência de que o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, sendo imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se. . . O mal não se perpetua senão no pretender-se que não existe, ou que, excessivo para a nossa delicadeza, há que deixá-lo num discreto limbo. É no silêncio e no calculado esquecimento dos delicados que o mal se apura e afina – tanto assim é que é tradicional o amor das tiranias pelo silêncio… 

Por estes dias ando a traduzir um ensaio sobre o amor escrito por uma classicista na década de 80. Nesse texto, particularmente hedonista porque delirante em relação a textos do século V a.C. sobre a função social do amor, lê-se a dada altura que o modo como reagimos ao início de uma paixão, o modo como reagimos ao seu exacto princípio, como estamos ou não dispostos a ser mudados por esse momento, diz muito da qualidade, do decoro e da sabedoria das coisas que estão dentro de nós, se somos ou não capazes de aceitar viver segundo coisas que não controlamos, sem medo de um fim. Os contos de Jorge de Sena, escritos durante uma ditadura e sobre ela, estão cheios de corpos oprimidos e reprimidos, de gente que vive mutilada nas coisas que existem de mais privado. O mundo de Os Grão-Capitães divide-se entre oprimidos e opressores, e ficamos a saber que até uma infecção de ouvidos num regime totalitário é uma coisa potencialmente letal. Estes contos dizem mais ou menos abertamente que não há nada que viver sobre um regime totalitário não corrompa. As pessoas representadas neles são vítimas de todo o tipo de apagamento. É contra esse apagamento que agora releio esses textos. Prolongam o meu mau humor e o meu azedume, a minha indignação, ao pensar que ao contrário das populações que viveram na Europa na década de 30 nossa nem sequer é a desculpa de poder dizer que não sabemos quais os fetiches desta onda populista de pendor reaccionário, se não as consequências de lhe dar força.

Parei de ver o documentário 20 dias em Mariupol ao terceiro morto, um rapaz que estava a jogar futebol junto a uma escola com uns amigos. Não na cena onde se mostra os seus ténis Nike, exactamente o mesmo modelo que uso para correr quase todos os dias, ensanguentados, mas no ponto em que se vê o seu corpo tapado com um lençol branco e o pai, com uma idade já muito avançada, chora sobre ele repetindo incessantemente “meu filho, meu filho, meu filho.” Tenho-me sentado com gente que tem discursos a fazer sobre a guerra, que tenta justificar a sua obscenidade, que a debate academicamente, que tenta justificar a Rússia, condenar a Ucrânia, condenar a Rússia, justificar a Ucrânia, como se qualquer palavra que pudesse ser dita ou uma situação parecer fazer sentido pudesse justificar este nojo e este terror absolutos de ver um pai chorar sobre o corpo de um filho que não regressará nunca mais. Fui ver este filme porque há muitos meses que tenho medo de que o meu amigo, que vai com frequência a Kiev, por lá morra. Na verdade, tenho pesadelos com isso. O meu amigo não é um soldado nem um espião. É um estudioso de literatura russa e grega. É um tipo impaciente, a quem pareceu que seria compactuar com uma coisa que o horroriza não fazer nada perante o terror de ver o país de onde saiu a cultura que ele mais ama na vida ser de novo usada para justificar uma forma extrema de indignidade humana, de barbárie. Nas primeiras semanas que ele passou numa estação de comboio na Polónia o trabalho dele foi ajudar os refugiados ucranianos que ali iam chegando a tentar encontrar um sítio para onde ir na Europa ou a chegar onde já tivessem quem os acolhesse. Velhas com gatos e cães e netos, mulheres com filhos, mães horrorizadas de deixarem os filhos e os maridos para trás, raparigas jovens e sozinhas, e, até, num dado momento, o que o meu amigo nunca conseguiu entender se era alguém transsexual, um homem disfarçado de mulher a tentar fugir do alistamento obrigatório, ou apenas uma mulher extremamente masculina, a quem ele no entanto, diligentemente ajudou a carregar as malas. Entre viagens o meu amigo falou-me de como os discursos das pessoas que ele foi ajudando a escapar da guerra se foi alterando, como de repente, por exemplo, as mulheres com quem ele contactou nos primeiros meses conversavam com ele normalmente, não tinham qualquer receio de falar com ele ou entre elas e de como à medida que as semanas foram passado as pessoas que chegavam saltavam de terror ao ouvir uma porta bater ou, as mulheres, simplesmente tinham medo de ficar sozinhas com um homem desconhecido, falante fluente de russo, na mesma sala, de como essa consciência, ao meu amigo, lhe causa uma tristeza indizível e que tem nome, o reconhecimento de que a violação também serve como arma de guerra. Pergunta-me o meu amigo, que tipo de homem alguma vez faria isso a uma mulher e chamaria a isso o trabalho de um soldado? Falo-lhe de um poema de Álvaro de Campos sobre justamente isso, ele começa a falar do poeta que estudou na tese de doutoramento, Brodsky. Não temos emenda. Será justificável? Há algum tratado que possamos citar, algum pedaço de terra de que alguém se possa afirmar como justo dono que nos retire um pouco do nojo e do horror que sinto em relação a pertencer a uma espécie capaz de ser tão predatória e tão estúpida, quando o meu terror intercepta o do meu amigo, que quando está em Kiev diz à mãe que está na Polónia? O que é que me poderia possivelmente tirar a tristeza de viver num mundo onde a alegria da arqueologia e professores de grego antigo que escrevem tratados sobre o amor coexistem com gatos ucranianos mortos por obuses russos e pais que choram os filhos sem talvez nunca terem lido As Histórias de Heródoto, onde a dada altura é possível ler que a grande indignidade da guerra, o ponto em que sabemos que ela vai contra toda a natureza, é que em tempos de paz os filhos enterram os pais e nas guerras dá-se o horror inexplicável de os pais enterrarem os filhos.

A série mais vista no Reino Unido por estes dias é a muito digna e edificante narrativa de Tom Hanks Masters of the Air, que, não caindo numa glorificação acéfala dos heróis, glamoriza, quase por convenção do género, muito do que é o horror da destruição que representa, caindo na falácia de que a sobrevivência dos soldados no centro do enredo é alguma forma de força expressiva de um sentido de carácter e personalidade que talvez nunca emergisse sem esse horror. Isto em parte é consequência de ideia de que alguma espécie de mérito defende os heróis de morrer, entra nesse grande mito do nosso tempo, o da meritocracia e por aí do génio – duas coisas que sem dúvida não existem sem as comunidades e os seus contextos. Para que os heróis sobrevivam, no enredo de películas como a de Tom Hanks, é necessário que existam personagens que são secundárias, acessórias à sua caracterização. É aqui que a ficção não funciona de todo como a realidade e seria interessante questionar um pouco a história daquilo que é o conceito de personagem secundária, das suas representações mais e menos complexas nas ficções que usamos para entender o mundo em que vivemos. Ninguém, idealmente, é acessório no enredo da sua própria vida, é um pouco obsceno pensar na categoria de personagem dispensável para efeitos de caracterização de terceiros. Por outro lado, que o mérito é uma categoria ilusória em relação à sobrevivência é algo que fica completamente explícito num livro que se refere ao mesmo período histórico desta série, Se Isto é um Homem de Primo Levi. Não há fim para o absurdo do que Primo Levi tem a narrar e a total ausência de relação entre mérito e sobrevivência fica completamente explícita num dos primeiros episódios do livro, quando Levi conta que sobrevive a ser enviado para uma câmara de gás porque o oficial nazi encarregado de fazer a triagem entre os prisioneiros mais fortes e mais fracos sacrifica por um erro cometido num número um prisioneiro mais saudável do que ele e por isso mais capaz de trabalhar. A minha crítica aqui não é à série de Tom Hanks em si, que de resto tenho visto com interesse semelhante ao dos meus semicompatriotas ingleses, é ao facto de que, no seu lado de producto de entretenimento e consumo ela glamorizar o sofrimento humano, passar a mensagem de que algumas pessoas muito excepcionais são o modelo a ser seguido, que o mal não as destrói, não as corrompe, quase não toca a sua beleza e que isso basta para que tudo corra bem, para que ganhemos, quando numa guerra ninguém ganha nada.

O motivo pelo qual eu não consigo ver 20 dias em Mariupol não é por me querer manter desinformada, é porque há coisas que para mim têm de continuar a ser recebidas com a consciência do seu extremo horror e isso é porque preciso de me continuar a lembrar exactamente do que é o mal para o conseguir nomear, porque o pouco que me reste fazer talvez seja dizer que não quero que o sofrimento humano se torne para mim apenas televisão. E isso é para não ter a ilusão de que qualquer coisa neste planeta, qualquer ideologia de merda sobre fronteiras e bandeiras e posse de territórios e desrespeito por aquilo que Sena nomeia no seu prefácio como singelos e modestos valores imanentes, possa servir para dizer que alguém merece continuar vivo enquanto outros não.

Oxford, 16 de Março de 2024

Margarita Liberaki

Penso que devia haver um teste psicológico básico que candidatos a políticos deviam ser obrigados a fazer. Só poderiam passar a candidatos a eleições se fossem aprovados nesse procedimento. Às vezes até para os trabalhos mais básicos uma pessoa tem de ir a pelo menos duas entrevistas em que as suas competências são, normalmente num espetáculo triste e pouco dignificante, dissecadas para medir a sua competência na tarefa que pretende exercer. Conversas, exercícios, interacções de grupo. Tentei uma vez demover-me de um emprego para passar para outro bem mais simples, que me deixaria com mais tempo para plantar morangos e escrever versos, as duas únicas actividades que no fundo me interessam, mas não consegui convencer os entrevistadores a darem-me a oportunidade de dar cabo de uma carreira profissional na qual não estava particularmente investida. O que correu mal neste plano? A segunda entrevista, claro. As minhas prioridades erradas transpareceram todas na segunda entrevista. Pela mesma lógica, haveria muito mandato político absolutamente vergonhoso a que este processo simples nos teria poupado. Se não tens um vocabulário de mais de cinquenta palavras ou se és um sociopata narcisístico com uma personalidade pouco colaborativa, e não lidas bem com discussão e crítica, se não te importa o bem comum, se te agradam ataques verbais gratuitos que se destinam a obliterar uma certa empatia por outras pessoas para explorar divisões internas e/ou externas e incitar o ódio, se não queres saber do sistema nacional de saúde, de ajudar a criar as condições que promovem níveis de acesso elevados a educação e cultura, não devias poder ser candidato a dirigente de um pequeno aquário com um par de peixinhos dourados, quanto mais de um país com um arsenal nuclear. Tudo isto é tão óbvio que não devia sequer chegar a ser controverso.

E, contudo, estou a escrever estas linhas que não servem para nada sob o efeito das imagens, bastante surreais, da reunião de Putin com o seu conselho de segurança, em que ele pergunta a cada um dos elementos se querem dar voz a uma opinião dissonante quanto ao projecto de invadir a Ucrânia ou, como ele lhe chama, defender a Rússia e/ou a Ucrânia, embora nem nessa mentira ele seja particularmente sistemático. Enquanto o vídeo destas imagens passava, a amiga que estava sentada ao meu lado tapou instintivamente os olhos com as mãos na cena em que se vê Putin a pressionar o seu chefe do serviço de espionagem, Sergei Naryshkin, como se ele fosse um menino não muito inteligente com quatro anos de idade, para ele dizer se concorda que a Rússia apoie a independência de Lugansk e Donestsk. O chefe dos espiões parece relutante e genuinamente nervoso. Engana-se e diz que apoia a inclusão destes territórios na Rússia, é pressionado de volta por Putin, que lhe diz que não é isso que ele lhe está a perguntar.

Talvez haja qualquer coisa nos momentos de grande mediocridade moral que nos infantilize enquanto adultos, porque estamos a ser diminuídos e porque reconhecemos esse aviltamento. Estou em crer que qualquer coisa na expressão deste homem trai o facto de que ele reconhece a loucura abjecta deste momento. Putin, no entanto, sentado a grande distância do seu conselho de segurança, chamando-os um a um para declararem a sua aliança a esta ideia de merda e incrivelmente estúpida que é invadir um estado soberano a que boa parte da população da Rússia gosta de chamar de país irmão, com um presidente a duras penas democraticamente eleito e que afinal não é palhaço nenhum, deixou ele próprio de sequer tentar manter a aparência de chefe de estado vagamente democraticamente eleito. O que estamos a ver quando vemos esta cena é, então, o tipo de teatro que lembra um pouco as cenas dos juramentos de gangsters em filmes sobre a máfia, um pouco como notava Shaun Walker, cronista do The Guardian, na sua lúcida análise deste momento. E é uma cena decadente, exceptuando que há mais proximidade entre as figuras que aparecem naquele quadro de Thomas Couture, Os Romanos da Decadência, do que entre Putin e o seu conselho de segurança. Enquanto os romanos da decadência estão todos mais ou menos ao molho e com fé nos deuses, à espera de Alarico ou da próxima orgia, julgados moralmente por um par de filósofos que observam à distância, não se confundindo com os restantes, a distância a que Putin se coloca do seu conselho não é certamente a de um rei-filósofo e serve para lembrar quem é que segura os fios destas marionetas. É também a longa distância da irracionalidade e do oportunismo dos autocratas e dos bullies. É horrendo de ver, além de inestético. Significa que nada do que se vai passar a partir daqui obedecerá a grandes lógicas. Basta pensar que a Ucrânia é um país de quarenta milhões de pessoas e que, mesmo que esta invasão corra espetacularmente bem para Putin (no fundo não correrá bem para muito mais gente), é extremamente caro e difícil oprimir quarenta milhões de pessoas a longo prazo. Esta cena lembra então demasiado Calígula ou Nero e dá mesmo vontade de perguntar onde anda a guarda do pretório.  

            A minha amiga de mãos a tapar olhos que viram, tudo considerado, bastantes coisas, em diferentes continentes do mundo, ao longo de umas quantas décadas, lembrou-me, no entanto, a imagem de outra amiga, há uns anos, sentada numa fila central num pequeno teatro em Oxford, a tapar os olhos com as mãos no final de uma peça que tínhamos ido ver, levada a palco por um grupo de alunos gregos. A peça chamava-se No 10 de Junho e o dramaturgo era Yiorgos Iliopoulos. O texto da peça é baseado num evento histórico de que nunca tínhamos ouvido falar, nem eu nem a minha amiga que é grega, um daqueles eventos tão brutais e tão traumáticos, mas ao mesmo tempo tão remotos, que ficaram enterrados na memória de um século. Distomo era em 1944, e ainda é hoje em dia, uma pacata vila no sopé do monte Hélicon. Fica a duas horas de carro de Atenas e a meia hora de Delfos.  Em 1944, nas imediações da vila, uma coluna de soldados alemães foi atacada pela resistência grega, três soldados alemães foram mortos, num ataque que eles assumiram ter vindo da direcção daquele lugarejo. O que se seguiu foi de uma barbaridade absolutamente atroz. Os soldados alemães tomaram a direcção da vila, com um comandante de apenas vinte seis anos à cabeça, e, na noite de 10 de Junho, assassinaram brutalmente, numa espiral de loucura absoluta e absurda, cerca de 200 pessoas, na sua maioria mulheres, crianças e anciãos. A disputa prolonga-se ainda hoje, em tribunais italianos, gregos e alemães, sobre se o ataque de facto terá partido da vila, a maior parte das evidências sugere que não, e mesmo entrar neste nível de discussão é já um erro repugnante. Assume que é aceitável ou que em algum mundo pode fazer sentido ou ser justificável que alguém armado até aos dentes entre gratuitamente em casa de outra pessoa e a surpreenda para a matar na sua quietude doméstica e indefesa.

O que me leva ao ponto, não particularmente relevante em face do nível de terror deste evento histórico, de explicar porque é que, apesar da audiência daquele teatro se encontrar bastante emocionada no final da peça, a peça me pareceu falhada, com qualquer coisa de uma chantagem emocional predatória e imatura, que diz qualquer coisa, porém, da relação da minha geração, educada no lado pacífico e confortável da Europa, com níveis de violência para os quais a maior parte de nós não tem – e eu, pelo menos, preferia continuar a não ter – uma empatia que permita entender intimamente, com uma clareza que não pode ser esteticizada ou adornada de forma nenhuma, o indizível nível de horror que deu origem à relativa estabilidade social da Europa em que crescemos. Neste sentido, o motivo por que acho que esta peça falha torna-se, então, bastante simples de explicar. Nenhuma das personagens que o dramaturgo coloca em cena chega a ser, em momento nenhum, mais do que uma função da sua própria morte, nunca chegam a habitar qualquer coisa que se pareça com uma individualidade plena, são apenas o que em convenções narratológicas se chama personagens-tipo: o padre da aldeia, que está ali para ser decapitado pelos nazis, ou a rapariga prestes a casar-se que está ali para ser violada por todo o regimento, ou a mulher grávida, cujo destino final, terminados os primeiros quinze minutos da peça, aguardamos com grande desconforto e terror. A instrumentalização que o texto faz das suas personagens acaba por repetir a instrumentalização que os nazis fizeram dos corpos capazes de sentir dor, e das emoções, capazes de serem completamente monopolizadas pelo horror, daquelas pessoas. Todos os textos literários, claro, usam as suas personagens, porque todas elas têm sempre de funcionar a um nível que é puramente retórico, o de passar a mensagem para que a arquitetura desse texto em particular converge, a agenda do escritor. O dramaturgo que escreveu esta peça, Yiorgos Iliopoulos, não é particularmente jovem, mas é aqui autor de um texto que me parece particularmente imaturo. E é-o em parte pela dificuldade de falar complexamente de uma coisa que é particularmente vital que um bom dramaturgo não perca de vista, o facto de que as vidas humanas, as históricas, as ficcionais, a do mais humilde figurante – se o texto não for uma sátira – não podem ser completamente instrumentalizadas pela sua função retórica no texto, tem de haver um equilíbrio qualquer, aquilo que no fundo é a poesia que se encontra nos textos, como existe de resto no mundo real, entre o que é geral acerca das nossas vidas, que é tão transparente nas convenções sociais nas quais vivemos, e o que é único, a forma como uma vida humana não contém mais nada que não exactamente essa vida, o que começa na singularidade de um rosto e continua a manifestar-se em todos os momentos na idiossincrasia de gestos, emoções, maneiras de falar, de responder, dos afectos que cultivamos, dos espaços que construímos e são os nossos e de alguma forma nos expressam, todas essas coisas que explicam a nossa singularidade, o que permite entender indirectamente porque é que o nosso amor pelas pessoas que amamos é singular, porque está vitalmente ligado a essas particularidades. A peça de Iliopoulos falha então, a meu ver, porque ele não consegue nunca mostrar isto. A nossa empatia é manipulada de uma maneira formulaica, que vai simplesmente acumulando o genérico sobre o previsível, de modo que aquele texto nunca se converte no exercício de empatia profunda e radical que um texto que se proponha a falar sobre este tipo de facto histórico tem de ser. Em vez disso, fiquei mesmo a coçar a cabeça e a perguntar-me uma coisa da qual normalmente não duvido: se podíamos ter continuado a escrever poesia depois de Auschwitz.  

Em discussão com a audiência no final da peça, o dramaturgo caiu naquele cliché imperdoável, que nos transporta automaticamente de volta a momentos medíocres em salas de aula de história de adolescências confortavelmente ocidentais, em que a Segunda Guerra Mundial se misturava com a nossa profunda e indiferente urgência mecânica de ouvir a campainha tocar, para voltarmos a ser livres de novo. O cliché era o de que ele tinha escrito aquela peça para a morte daquelas pessoas não ter sido em vão, o que a meu ver expôs outro problema que me pareceu estar patente naquele texto, o de se tratar um pouco de pornografia histórica, da do género que é produzida não para examinarmos com cuidado algo que nos deixa atónitos, mas para nos sentirmos satisfeitos com quão bonzinhos somos.

Digamos então que o massacre de Distomo, a 10 de Junho de 1944, foi completamente em vão e não serviu para mais nada do que tornar o mundo um buraco mais negro e deplorável do que ele precisa de ser e nisso é paradigmático da forma de doença colectiva que todas as guerras são. Temos de nos libertar desta crença de que a memória do terror é profilática e nos converte em testemunhas indirectas e entendidas do que esse terror significa, não converte. Essa pretensão é nociva e errada. A boa historiografia devia era dar-nos a dimensão daquilo que a nossa experiência não pode entender completamente e que se prende com a proporção subjectiva do horror que certos eventos infligem nas pessoas que os têm de viver, que não é, pelo menos ainda, parte da nossa experiência. É o tipo de coisa que explica porque é necessária a dose de empatia que Ésquilo no século V a.C. sentiu pelo exército invasor persa, contra o qual ele próprio tinha combatido, e cuja derrota é o tema de Os Persas. A ficção desse ponto de vista pode ser bem mais eficaz do que a historiografia. Pense-se num filme muito mal recebido à época em que estreou, que nem sequer é bem um filme, é quase uma colecção de apontamentos sobre algo que não pode ser completamente comunicado por um acto narrativo, Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini (1948), passado numa Berlim completamente arrasada pela guerra, que segue a luta pela sobrevivência, e sem redenção, de uma criança.

Alemanha Ano Zero de Roberto Rossellini, 1948

A morte precoce da mais insignificante das criaturas, por exemplo, lembrando um poema de Cesariny de uma extraordinária e estranha dignidade, um rato morto com que nos cruzamos num parque, não nos serve para nada. É apenas e só um invólucro de dor tremenda e sem sentido que não pode servir a ninguém para absolutamente porra nenhuma. A experiência disso é o que um poeta grego, Yiorgos Seferis, definiu, num poema escrito nesse mesmo ano de 1944 que talvez seja de reler com cuidado, pedindo uma expressão emprestada a um verso do Agamémnon de Ésquilo, como a memória da dor que perpetua a dor (μνησιπήμων πόνος). Toda a didática da memória é detestável se o seu propósito é mascarar-se de mecanismo de compensação desonesta por uma perda que deixa no seu lugar uma escuridão total que nunca nada, ninguém, poderá compensar. A morte precoce de pessoas, que é parte fundamental do negócio que uma guerra é, deixa apenas uma dor interminável e um vazio tremendo para quem terá de viver com essa perda. É tudo. E dá vontade de citar aqui um ensaio de Natália Ginzburg em As Pequenas Virtudes, escrito no pós-guerra, em que ela diz que não podemos mentir nem nos nossos livros nem nas coisas que fazemos, que isso era a única coisa decente que tinha saído da guerra que a sua geração tinha acabado de viver.

Margarita Liberaki

Em 1946, a então muito jovem romancista grega Margarita Liberaki publicou o seu segundo romance, Τα Ψάθινα Καπέλα, cujo título à letra significa Os chapéus de palha, mas que em inglês foi traduzido (por Karen van Dyck) como Three Summers e republicado em 2019 pela NYRB. O romance é sobre três irmãs que crescem numa casa num subúrbio de Atenas ao longo de três verões. É um romance sobre a passagem para a idade adulta, sobre a relação entre as irmãs e a mãe e a tia, sobre a ausência misteriosa de uma avó polaca, que desapareceu um dia sem deixar rasto ou dar explicação, sobre a curiosidade que nos faz amar estar vivos. Contra o fundo do que é o mundo encantado do verão, as colheitas crescem, constrói-se um observatório para olhar as estrelas, há longas caminhadas, surgem os primeiros amores, os amigos que chegam e partem, encontros e conversas intermináveis e há segredos que se revelam à medida que as irmãs passam de raparigas a mulheres. O centro da narrativa é a irmã mais nova, Katerina, uma personagem maravilhosa e louca, capaz de no final fazer algo verdadeiramente inesperado e surpreendente, que nos deixa de lágrimas nos olhos, e que muda mesmo o mundo, sugere outro modo de viver. O que é mais surpreendente para além desse gesto, que rejeita vitalmente perpetuar uma versão patriarcal do mundo, é que não há qualquer alusão ao período da guerra em que o romance foi escrito, exceptuando num ou noutro pequeno pormenor (há uma família inglesa que parte e regressa mais tarde) e numa longa sequência onírica que tem qualquer coisa das sequências oníricas desenhadas por Dalí que se podem ver num filme que estreou um ano antes de Three Summers ser publicado, Spellbound de Hitchcock. Tirando estes pormenores oblíquos, Margarita Liberaki exclui completamente esse evento histórico da sua narrativa, é como se ele não existisse e não tivesse acontecido. A carreira subsequente de Liberaki enquanto romancista acabaria por clarificar que este gesto é mais da ordem de uma preferência por arcos narrativos que são na sua totalidade metáforas fortes e eficazes sobre os contextos históricos em que ela escreveu do que o tipo de escapismo fácil que viria de uma fraca consciência política ou histórica. Margarita Liberaki é uma grande romancista. O seu romance sobre a guerra civil grega, O Outro Alexandre, é construído a partir de uma ideia mirabolante, sobre um pai que tem duas famílias, e dá aos filhos exactamente os mesmos nomes, até que os filhos supostamente legítimos descobrem a existência dos irmãos, num crescendo de paranoia que terá consequências para todos.

Tenho-me perguntado muitas vezes o que é que em Os Chapéus de Palha se torna tão conspicuamente um comentário ao período histórico em que ele foi escrito. E é isto. Os Chapéus de Palha enumera cuidadosamente todas as coisas que uma guerra ameaça e destrói, tudo o que nela pode ser perdido e é vital para uma vida bem vivida, tudo o que é digno do nosso amor, do nosso cuidado e deve ser protegido a todo o custo, e na verdade acaba por sê-lo neste romance a partir da sua evocação e da sua nomeação em aparência perfeitamente natural mas no fundo insistente e sistemática. Nós, que felizmente não sabemos o que é o horror de uma guerra, conhecemos afinal essas coisas demasiado bem. É para as protegermos que a memória histórica devia servir, não para termos a pretensão de que o horror de uma guerra serve para outra coisa qualquer que não mutilar e destruir pessoas e que por isso o espetáculo horrendo de tanques a avançar sobre carros de civis, numa cidade até há apenas alguns dias pacífica, nos poderia dar jeito para alguma coisa em termos da nossa consciência histórica ou moral.

10

Confesso que não me lembro da última vez em que te vi com os olhos,
Dez anos não são dez anos, são 10 vezes em que a neve derreteu
E 10 verões em que se achou impossível o seu regresso, foram noites
E piores manhãs, cada dia a nascer já mais gasto, o espelho uma
Memória que nos acorda para cada ano, não te reconheceria o sorriso,
Nós tão sérios na juventude, esperando o fim de décadas para finalmente
Dar razão à ilusão, enquanto se espera, os nomes apagam-se,
Só os sonhos ficam, as suas visitas inesperadas entre menos um dia e outra,
Ninguém me sonha como tu, a entrar naquela sala, levitando no soalho
De madeira com as tuas sapatilhas all star, até o sol encontrou o caminho
Para as janelas, ou alguém tinha acendido a luz, neste dia apagado,
Conto mais esquecimento que vontade, mais partidas que regressos,
Mais fomes que vidas, dez anos que não são dez anos, são cabelos
Que imitam a neve, olhos que reflectem o inverno, dedos demasiado curtos
Com profundidades anónimas gravadas na articulação obvia do fracasso,
Hoje até o Leonard Cohen morreu, os mortais sentem o paraíso cada vez mais
Distante, sentem-se mais longe de todos os reencontros possíveis com o amor,
Sentem-se mais neste mundo que passa para nada e é cada vez menos o que temos
Pena por não ser eterno, e dez anos são tantas eternidades perdidas.

Hey, that's no way to say goodbye: Leonard Cohen (1934-2016)

Leonard Cohen por Dominique Isserman, Jardins do Luxemburgo, 1984. 

Leonard Cohen por Dominique Isserman, Jardins do Luxemburgo, 1984. 

Nós achávamos que esta semana não tinha por onde piorar – ingenuidade nossa. Algumas das madrugadas deste ano têm sido insuportáveis. Acordar para um Brexit ou para a eleição de um Donald Trump são eventos que nos lembram que vivemos num mundo em que todo um espectro de parvoíce perigosa pode ganhar espaço no instante em que o pulso da multidão se alinha com as palavras oportunistas dos demagogos e dos populistas. A propósito disto, e porque é agora que é crucial não parar de pensar, queríamos convidar-vos a ir ler as palavras de Masha Gessen na NYRB Daily e de David Remnick na The New Yorker. E, sobretudo, a não sucumbir ao pessimismo, ao cinismo, a formas de narcisismo que exalam uma imagem de activismo, patriotismo (nacionalismo?) e compromisso cívico mas que escondem um vazio enorme e um vazio preguiçoso, de gentileza em relação aos restantes, de memória histórica, política e cívica. O mesmo vazio mental e moral que em comícios aparece para gritar em favor de todos os muros que nos permitam tratar certos grupos de pessoas como se elas o não fossem ou fossem menos do que isso, porque, no fundo, é por causa delas que os nossos países não podem ser grandes outra vez. Porque a civilização dá um passo atrás com o fardo do homem branco às costas e, ainda assim, continua a ser difícil de acreditar que não haja um número considerável de eleitores afectados pela crise, desempregados por causa da recessão, que nunca poria o seu voto atrás de uma mensagem racista, sexista, anti-democrática, e no topo de tudo isto, profundamente inestética. Não há nada de novo em fenómenos como o Brexit ou Donald Trump. Mesmo para aqueles que queiram ver nestes acontecimentos uma tentativa de ruptura total com a ordem vigente, eles são na verdade bastante velhos. Mas é agora mais do que nunca o momento em que a nossa solidariedade e a nossa empatia são devidas e devem ser utilizadas o mais generosamente possível.

Leonard Cohen em Hidra. Anos 60. 

Leonard Cohen em Hidra. Anos 60. 

            Talvez seja esta a melhor semana para revisitar as canções de Leonard Cohen. Elas carregam com elas a marca de um mundo habitado por poetas errantes, amantes perdidos e reencontrados, ruas de Nova Iorque no Inverno onde se pode ouvir música durante todo o serão, poemas de Kavafis mudados tão cuidadosamente para que só a presença de uma amante se desvaneça com a perfeição de um deus antigo que se prepara para partir, o optimismo de um activismo que encerra nele a força com que se deve sonhar acerca do futuro, hotéis míticos, famosos casacos azuis, uma perturbação que desaparece do olhar e que achámos que estava lá para ficar, a intuição de que Suzanne é meio doida, mas é mesmo por isso que queremos estar aqui, e a certeza de todas as acções inúteis encerradas pelos nossos gestos. Às canções de Leonard Cohen pertencem a beleza do mundo e da poesia. Elas surgem envoltas numa espiritualidade que resulta até para quem não é religioso. Tão antigas e tão novas que regridem até àquela frase favorita de Walter Benjamin n’ O Anjo da História sobre termos sido esperados nesta terra. E isto acontece não só mas também porque as canções de Leonard Cohen são como os melhores livros, um treino para a nossa empatia, que ainda nos podem surpreender mesmo depois de ouvidas mil vezes. E elas servem também para que não nos esqueçamos que os nossos dias seriam outra coisa sem tudo isso – mais pobres. Hey, that’s no way to say goodbye. 

Algumas notas sobre Eurípides, bofetadas, e cultura democrática

Teatro de Dioniso, Acrópole de Atenas, onde Eurípides encenou várias tragédias. 

Teatro de Dioniso, Acrópole de Atenas, onde Eurípides encenou várias tragédias. 

 

Em 416 a.C. em Atenas, durante a guerra do Peloponeso, Tucídides conta, na sua crónica da guerra, que os governantes dos atenienses cometeram um acto que hoje seria descrito como um crime de guerra. Quando a pequena ilha de Melos se recusou a tomar o partido dos atenienses contra os espartanos, Atenas cercou a ilha e quando os habitantes finalmente sucumbiram ao cerco (durante o Inverno), os atenienses chacinaram todos os homens que conseguiram capturar e as mulheres e crianças foram vendidas como escravas. Quinhentos colonos atenienses foram enviados para a ilha. Em 415 a.C. a peça que o dramaturgo ateniense Eurípides levou a cena num dos principais festivais da cidade, as Dionisíacas, com o governo da cidade a assistir lado a lado com o resto dos cidadãos, intitulava-se As Troianas. As Troianas é uma peça sobre o que espera (futuro não é o termo) as mulheres e crianças de Tróia depois do saque da cidade. Estudiosos de drama grego gostam da falar desta peça quando se pensa em tragédia como arte politicamente comprometida. O que esta expressão designa é o jogo entre o contexto da peça e o contexto da cidade (apenas um exemplo sobrevive em que a alusão é directa, Os Persas Ésquilo). A história do cerco de Tróia tem em comum com Melos coisas suficientes para não termos dúvidas acerca do que Eurípides estava a tentar fazer. Ambas as cidades caem depois de um cerco, os homens são chacinados, as mulheres e crianças ficam à mercê do exército agressor.

Quem alguma vez se sentou para assistir a uma peça de Eurípides conhece bem a sensação que Anne Carson descreve nos prólogos de Grief Lessons, um livro que compila quatro traduções de tragédias de Eurípides (Hércules, Hécuba, Fedra, Alceste): há algo de intensamente desagradável acerca de Eurípides. Quem era Eurípides? Anne Carson diz-nos: The best short answer I’ve found to this is an essay by B. M. W. Knox, who says of Euripides what the Corinthians (in Thucydides) say of the Athenians, “that he was born never to live in peace with himself and to prevent the rest of mankind of doing so.”

As tragédias que dele se conservam obrigam as pessoas a caminhar para fora delas mesmas, a reflectirem sobre como as coisas mais banais que as rodeiam, os pensamentos e os sentimentos dos quais não podemos escapar, coisas tão quotidianas como família, amor, paixões, curiosidade, não estão sob o nosso controlo, nunca vão estar sob o nosso controlo, e podem ainda ferir-nos de morte (tratando-se de Eurípides, na maior parte das vezes literalmente). Se temos a ideia de que os dramas da tragédia grega são sobre decisões entre alternativas que na verdade não podem ser escolhidas, porque o resultado em qualquer cenário é a catástrofe, talvez nenhum tragediógrafo tenha sido tão eficaz a dramatizar essas decisões a partir das perspectivas mais íntimas das suas personagens como Eurípides (cada peça como uma observação da força irresistível dos sentimentos humanos).

Os dramas das personagens mais fortes de Eurípides emergem a partir do lado mais obscuro da consciência (talvez na linha que confina com o que em nós existe de, mais do que irracional, inexplicável). O que elas sentem, o que lhes passa pela cabeça, nas mãos de um dramaturgo um pouco mais prudente ou um pouco mais cobarde nunca seria articulado, nunca encontraria uma totalidade de expressão. Em Eurípides é perseguido até às últimas consequências. Nós que sabemos o que estamos a ver, não queremos acreditar. Sentámo-nos aqui apenas como espectadores e entendemos que observação inocente é um conceito alheio a Eurípides. Os espectadores de Eurípides não têm a opção de se manterem como espectadores inocentes. Recorrentemente, talvez na totalidade das peças de Eurípides, estas desenrolam-se em redor de um evento ou de um segredo a que uma personagem ou grupo de personagens e, consequentemente, a audiência, têm acesso, informação vedada a outros participantes do enredo. Jasão suspeita de Medeia mas somos nós que observamos os seus planos e que sabemos o que vai acontecer. Fedra ama Hipólito, mas ninguém pode saber. Hércules julga que teve um regresso tranquilo a casa. Hécuba confia em Polimestor. Agora que fazemos parte do círculo de Eurípides, não o podemos evitar, da próxima vez que, da banalidade das nossas rotinas, um pensamento tornar a ordem impossível ou intolerável, até entendermos como é, passar para o lado de fora de nós mesmos, sabemos que Eurípides nos tocou com o seu insuportável dedo no meio do peito.

            Que Eurípides tenha podido levar As Troianas a cena naquele ano, entre aquele grupo particular de atenienses (não é difícil imaginar que muitos deles tenham servido como soldados no cerco de Melos), é uma espécie de epítome, no fim da época de ouro do teatro ateniense (e o teatro é a forma de arte que os atenienses inventaram que se tornou o símbolo da época clássica) do laço inextricável por que, em Atenas durante aquele tempo, arte e democracia (a cultura ateniense talvez não seja mais do que a soma destes dois elementos) se encontravam ligadas. Os atenienses podiam dizer toda a arte é política, no sentido muito particular em que era uma expressão da sua vida cívica. Mas acredito que nenhum dos tragediógrafos que nos chegaram tenha entendido tão bem como Eurípides que sim, toda a arte é e deve ser política, mas com um grão de sal muito particular, toda a arte é e deve ser política mas apenas no sentido singular em que cria para os indivíduos um espaço para se verem sozinhos com a sua própria consciência, e só depois disso consigo próprios enquanto parte de um corpo de cidadãos.

Portugal teve efemeramente, até há uns dias, um ministro da cultura que se ofereceu para distribuir bofetadas por dois cronistas do principal jornal diário do país, ambos responsáveis por artigos de opinião em que criticavam a atuação do dito ministro. Portugal é um país com um vocabulário profundamente rico para designar o acto de esbofetear: lambada, lamparina, bofetada, estalada, estalo, sopapo, tabefe; e as perífrases: ir à cara, apanhar na tromba, etc. Esta riqueza de vocabulário trai talvez o quanto a prática de esbofetear entre nós tradicionalmente se confundiu com didática. O que pode significar que ao ex-ministro pode bem ter sido atribuída a pasta errada, um lamentável erro de casting ao nível da gestão dos recursos humanos, João Soares, o educador, apto a corrigir o erro de dois cronistas com uma candura de autoridade paternal. O que me leva de volta a Eurípides e ao laço que existe, ou deve existir, entre cultura e democracia. No final da guerra do Peloponeso, com o fim da hegemonia ateniense, o teatro como os atenienses da época clássica o tinham pensado sofre alterações temáticas radicais e caminha lentamente, tanto quanto sabemos (porque não muito sobrevive) para algo mais próximo do que hoje coincidiria com os temas que formam os enredos de sitcoms ou telenovelas. Os estudiosos de tragédia grega apontam todos as mesmas características: os sucessores de Ésquilo, Sófocles e Eurípides estão interessados em temas melodramáticos, comédias de enganos, paródias de costumes. Com a dissolução da polis o teatro vira-se para temas íntimos e em alguns casos superficiais, o que de alguma forma antecipa o mundo do teatro romano. Os estudiosos dizem-nos, basta pensar na forma como o espaço do teatro é concebido em Roma: fechado, com os lugares sentados organizados por classes, o género que parece ter sido mais popular é a comédia (tragédias de Séneca à parte, tudo menos teatrais). O teatro romano distanciou-se lentamente das funções cívicas que tinha em Atenas. As suas novas funções são talvez melhor descritas pela expressão “pão e circo.” Não que tudo o que é pão e circo deva ser subestimado (os génios não existem sem obras menores, e apreciaríamos Eurípides e Dostoievsky bastante menos).

 

Num texto recentemente publicado na revista First Things[1], a filósofa americana Zena Hitz argumenta em favor de uma velha questão de um ângulo que me causa uma certa inquietação. Ela argumenta em favor das humanidades como um espaço de reflexão, mas reflexão privada. Quando a cidadania monopoliza o indivíduo, as humanidades deveriam servir o objectivo de criar, mais do que tudo, um espaço de meditação retirado do mundo. Hitz propõe que isto seria uma forma de escapar à presente instrumentalização das humanidades como mera ferramenta da democracia, revertendo-as para espaços de afirmação da nossa individualidade. É difícil não simpatizar com o argumento, sobretudo face à extrema mediatização de tudo, não só da política (afinal um ministro é mais autêntico e está mais próximo das massas se não puder poupar os cidadãos aos seus espectaculares desabafos, sem filtro, nas redes sociais) mas das nossas vidas (nós somos ao mesmo tempo gregos e romanos), mas talvez a melhor forma de exercer a nossa cidadania não ande longe do espírito com que Eurípides levou a cena As Troianas. Cidadania não é cidadania se monopolizar os indivíduos para se afirmar, não anula as suas divergências ou idiossincrasias, é idealmente um outro passo na direcção destas. A visão de Eurípides em As Troianas não se confunde com uma mera condenação dos actos dos seus concidadãos em Melos (não seria muito mais do que circo se fosse apenas isso), é um doloroso exercício de tomada de consciência colectiva, de indivíduos que finda a peça são deixados sozinhos com o peso das suas acções, que caminham do colectivo para um exame da própria consciência. O mundo de Atenas permitiu que homens tão díspares como Platão ou Aristóteles tivessem pensado o que seria a cidade ideal, a forma de governo ideal. Platão chamou à democracia o menor dos males. Contemporâneo de Platão e Aristóteles é o altamente individualista Diógenes, que defendia a autossuficiência dos indivíduos, o seu afastamento da polis em favor de uma vida intensamente privada. Na cidade (e esta não é a cidade ideal) todas estas ideias devem co-existir e competir mutuamente. O pão e circo que nos divertiu durante a semana passada não se confunde com o espírito dos acontecimentos que estão na génese da tragédia de Eurípides. O Ministério da Cultura ideal abster-se-á de oferecer bordoadas a qualquer pessoa ou coisa que desafie a sua circunspecta autoridade de entidade estatal (que não deve ser redonda e/ou patriarcal), sob pena de se converter num aborrecido Ministério da Propaganda. O Ministério da Cultura ideal protegerá não só a cultura da nação, mas incentivará toda e qualquer acção que se apresente no espírito de As Troianas. Subsequentemente, quaisquer tendências de ministros para oferecer lambadas poderá ser substituída por uma reflexão sobre a relação entre cultura e democracia.


[1] http://www.firstthings.com/web-exclusives/2016/04/freedom-and-intellectual-life

*Na Enfermaria 6 dedicámos outro texto a este assunto. Pode ser lido aqui. Sobre o mundo do teatro grego e romano:

 Ancient Greece: The Greatest Show on Earth de Michael Scott.

BBC In our Time: Cultural Imperialism de Melvyn Bragg com Linda Colley, Phillip Dodd e Mary Beard.

BBC In our Time: Tragedy de Melvyn Bragg com George Steiner e Catherine Belsey.

BBC In our Time: Comedy in Ancient Greek Theatre, Melvyn Bragg com Paul Cartledge, Edith Hall e Nick Lowe.

Romanos e Americanos. A walk in Rome in the Days of Trump de Adam Gopnik.

Alguns livros:

The History of the Peloponnesian War de Tucídides.

The Ancient Greeks: Ten Ways They Shaped the Modern World de Edith Hall

The Birth of Politics: Eight Greek and Roman Political Ideas and Why They Matter de Melissa Lane

Shame and Necessity de Bernard Williams

Roma, coliseu. Pão e circo (o que envolveu, não só mas também, cristãos dados aos leões como petisco). 

Roma, coliseu. Pão e circo (o que envolveu, não só mas também, cristãos dados aos leões como petisco).