Ir pensando sobre o fim do mundo

“porque, do vinho da sua luxúria, se embriagaram todas as nações; prostituíram-se com ela os reis da terra e, com o seu luxo despudorado, enriqueceram os comerciantes do mundo.”

Livro do Apocalipse, 18-3.

O primeiro texto de ficção conhecido, a epopeia mesopotâmica de Gilgamesh, contém a narração de um dilúvio devastador, inspirando provavelmente o Bíblico. Depois disso, quase todas as culturas e religiões, das mitologias escandinavas ao islão, escreveram a sua versão do fim do mundo. O homem é uma animal escatológico, vive na, e da, vertigem do Fim.

Talvez a esperança, como queria um lenda grega, ficasse na Caixa de Pandora por ser o pior de todos os males, talvez não se possa beber uma cerveja no Inferno nem jogar xadrez no Céu.

Numa certa perspectiva, a apocalipse não passa de uma impostura, mas mantém aceso o prolongamento, e até o desenvolvimento, até à plenitude por vezes, do sentido. Quando o mundo morrer, nada restará, daí que a filosofia nos deva preparar para a sua morte, estará aqui a nova grande condição de possibilidade ética (tudo o que escolhemos fazer só ganha verdadeiro significado confrontado com a morte do mundo, o mal está em precipitar esse fim, o bem em adiá-lo). Mesmo considerando que na sua matriz originária, ainda viva, a narrativa apocalíptica contém uma ambivalência irredutível: devastação absoluta ou transição final para uma realidade melhor, muito melhor (Paraíso).

Os progressistas (que se resumem alegremente como estando no lado certo da história, sem impurezas para extirpar) não acreditam no Fim, o progresso é infinito e vai esmagando todos os problemas que aparecem. Os conservadores (outro chapéu-de-chuva semântico bastante largo), por seu turno, não acreditam no Hoje, quando mais no Amanhã, desejam a permanência num passado mítico. Finalmente, os pessimistas, esses militantes do pior, crêem que haverá um fim efectivo, porque nem o tempo nem a esperança são infinitos. Vão-se, portanto, preparando para o apagão definitivo, fechando parcelas de luzes, trazendo pedaços de obscuridade às festas luminosas dos optimistas, consolidando a escuridão onde vivem.

Não há apocalipse sem hermenêutica, ela requer a descoberta de sinais precursores do Fim. Mas a hermenêutica vive, tensa, entre o certo e o errado, os signos com que desenha a realidade são somente uma aposta. De qualquer forma, prefere arriscar no trágico, tanto mais que os pequenos acontecimentos do quotidiano ganham assim significado. O arco hermenêutico é, porém, vasto, vai da ciência à religião. Quando sacamos dos óculos teológicos (mais vezes do que julgamos) amplificamos as catástrofes e vemo-las como anúncios messiânicos.

Muitos asseguram que o profeta apocalíptico está no pior de dois mundos: por enquanto, apesar do esforço hermenêutico, não tem razão, sujeitando-se ao ridículo. Quando o futuro lhe der finalmente razão, em princípio deixará de estar cá para se vingar dos incrédulos (embora alguns apocalípticos acreditem que uma imunidade especial lhes está reservada, nascendo para a Vida depois do cataclismo). Mas convenhamos que têm algum conforto nesta época bem menos optimista do que o século xx (entrecortado pelo pior niilismo das guerras totais, os opostos unem-se): terrorismo global, aquecimento global, migrações massivas, crises económicas e sociais, esgotamento dos recursos naturais...

Os pessimistas, esses que não acreditam na redenção, herdeiros do velho estoicismo, deslizam para um hedonismo cínico ao pensarem que tudo podia ser pior, aliás, que tudo vai ser pior. Os optimistas, quando não são totalmente ingénuos, conhecem alguns problemas graves que governam o mundo, mas acreditam no futuro, e os bloqueios reais à felicidade que vão aparecendo aceleram a sua urgência de prazer, de estarem, pelo menos agora, radiantes.

No Ocidente, o poder actual da ciência permite conjurar cada vez mais a apocalipse, as narrativas que a mantêm viva (quando, em contradição, parecem ganhar intensidade no islão radical). Paradoxalmente, vivemos como nunca sujeitos à sua vinda pela via da catástrofe ambiental. E aqui não há qualquer solução messiânica. O Antropoceno marca (finalmente?) o domínio absoluto do ser humano, a sua actividade é agora a principal força física no planeta. Nada está isento da nossa pegada. Aprendemos enfim, mas de outra perspectiva, como diz Bruno Latour, que a Terra é redonda, o que se faz num sítio e num tempo reflecte-se, como um eco mortífero, nos outros sítios e tempos. Assim, ameaçada na sua totalidade, a humanidade só poderá salvar-se também na sua totalidade. Ou então talvez possamos rever Melancholia de Lars von Trier, ler Hans Jonas, Rodrigo Fresán (o fim do mundo durará o tempo de um SMS idiota), talvez só a arte, como queria Nietzsche, e a filosofia tenham agora o poder de redimir.