Cinco Postais da Pandemia

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1.     P. é uma médica reformada oriunda de Navarra que vive há quase três décadas em Oxford. P. para mim foi sempre P., sem sobrenome. Fomos colegas a italiano. Sentávamo-nos ao lado uma da outra e começámos por falar da estátua do pintor à entrada do El Prado em Madrid e nunca mais parámos de falar sobre museus, quadros e pintores e raramente ouvíamos a aula, competíamos a ver quem conseguia ser mais douta e mais pedante. Ela tem um conhecimento enciclopédico dos pintores mais obscuros do Renascimento italiano e do Barroco espanhol que a mim me inspira uma admiração profunda e uma inveja de morte. Nunca tive a mínima hipótese. Desisti em desonra do italiano porque esta competição com P. me irritava infantilmente, mas paradoxalmente continuei a encontrar-me com ela. Isto foi por acidente, mas todas as quintas e sextas-feiras depois das três da tarde na livraria Blackwell’s em Broad Street durante quase dois anos nos sentámos e bebemos café juntas. Ela estava lá sempre àquela hora e eu também. Tenho feito umas quantas amizades assim. Começámos com um tímido aceno, ambas admitimos que nos intimidava um pouco a colega que se sentava na nossa fila nas aulas, uma americana do Texas que tendo chegado à crise de meia-idade, e num assomo de aborrecimento que talvez desafie alguns estereótipos de género, convencera o marido, um multimilionário do petróleo, a comprar-lhe um iate de inspiração faraónica. Mas nem o iate a curara do tédio e do medo da morte. Daí ela ter vindo estudar italiano e empatar as minhas conversas com P. Da primeira vez que bebemos café, perguntei a P. que problema lhe resolvera a ela o italiano, assumindo que não fora algo como um iate. Ela saca da cópia dos I Promessi Sposi, põe o calhamaço em cima da mesa, e confessa-me que amou Manzoni a vida toda e também que agora ninguém a bate no clube do livro italiano que se reúne na Waterstones (a livraria que concorre com a Blackwell’s – sem sucesso) a cada mês.  Ri-me muito e ambas nos sentimos alegres por aquelas pobres almas de estudantes pretensiosos do segundo ano de direito, enviados de Harvard e de Princeton, e de professoras primárias em pré-reforma nem terem ideia de como P. lhes ia cair com o Manzoni em cima. Ela pergunta-me que problema queria eu resolver com o italiano, eu respondo-lhe que uma nostalgia sem raízes pelo sul, da qual no entanto, sendo hipócrita e do contra, já sofria quando vivia no sul, uma nostalgia do sul mais a sul ainda do que qualquer fado, flamenco, rembetika ou tarantella, isso e Montale, Bassani, Ginzburg e Pasolini, a minha sagrada trindade mais um. Um dia foi P. quem me emprestou um livro de Miguel Hernández, o primeiro dele que li, e uma vez declamou de olhos fechados, cobertos de um espesso rímel azul, uma secção inteira dos Campos de Castilla, que eu nunca ouvira dito em perfeito castelhano. Em dois anos nunca percebi que nunca tinha pedido a P. o seu número de telefone, nem nunca tive o email dela, porque o professor, um siciliano discreto e ferozmente inteligente, oriundo de Catania, nos enviava os emails com toda a gente em BCC. O professor arranjou um emprego na Califórnia e não aparece em lado nenhum se googlado. Foi por isso que no princípio do confinamento, quando lhe enviei um email em desespero de causa para o seu antigo email da universidade, ele veio devolvido. Era um email onde lhe pedia o contacto de P. Não me lembro de mais ninguém naquele curso a quem pudesse pedir o contacto de P. Vai para três meses que a livraria está fechada e nada sei de P.

 

Cy Twombly, Study for Achilles Mourning the Death of Patroclus, 1962

Cy Twombly, Study for Achilles Mourning the Death of Patroclus, 1962

2.     A última vez que entrei num museu foi no dia 7 de Março. Foi no British Museum e eu sentia-me vagamente doente. Apanhei um comboio cuja estação terminal é menos frequentada do que os comboios que correm muito mais rápidos entre Oxford e London Paddington, negando-me assim a alegria fácil de ir olhar a estátua do urso. Talvez esse tenha sido o primeiro hábito que a pandemia me interrompeu. Ursinho Paddington, herói estrangeiro de uma Inglaterra acolhedora que não vota nos conservadores e não aceita a xenofobia, com o seu duffel coat, a primeira espécie de casaco que comprei em Inglaterra, no meu primeiro inverno inglês, de longe o mais deprimente de todos, tão gasto de eu andar de bicicleta com ele que foi remendado três vezes até desistir de vez. 8 de Março foi o último dia da exposição sobre Tróia no British Museum. Já então o museu estava quase vazio e uma certa aura fantasmagórica permeava Londres. Atravessei uma Bloomsbury semi-deserta, com Virginia e Leonard em mente. Vai para três meses que não atravesso Bloomsbury, porque não conduzo e não quero entrar num comboio se o puder evitar. Nessa exposição de Tróia queria ter-me lembrado de em tempos ter amado perdidamente Homero, foi disso no fundo que fui à procura, mas nos vasos muitas camadas de tempo se confundem, aquelas que os versos desses poemas tocaram, que vão mais ao menos do século XIII a.C. (confiando em Eratóstenes) até ao presente, um tempo que a exposição ora estratificava cortando-o em finas fatias de rígida sucessão cronológica, ora confundia para enfatizar certos eventos e certas personagens. Mas não me queixo, à entrada um verso de Catulo lembrou-me que também Catulo amou Homero. Como me podia eu ter esquecido daquele verso, recordado naquela chuvosa manhã de Março, quando viajei em comboios semivazios, cheios de uma aura de clandestinidade, como se Londres estivesse a adoecer inteira do lado errado do pulmão do mundo? À entrada havia um dos quadros de Cy Twombly do ciclo da raiva de Aquiles, que eu não sabia que era um ciclo. Vi dois desirmanados em Paris, talvez em 2015 e agora este (quem sabe quando e como me encontrarei com o próximo?). Na tela branca o perfil triangular de uma imensa seta atravessa a marca da sua própria haste para se tornar vermelha na extremidade, a promessa da ebulição e da gota que faz transbordar o copo. Vai para três meses que não atravesso nenhum limite nem ofendo ninguém nem nenhuma paixão mortal me fere.

Cy Twombly, Vengeance of Achilles, 1962

Cy Twombly, Vengeance of Achilles, 1962

3.     Swoon. Em Swoon todos os empregados de balcão são jovens e excessivamente musculados e todos têm um ar infeliz. Como se todos merecessem ter sido empregados de um pub hipster no Soho, mas tivessem ficado em segundo lugar nessa entrevista e tivessem acabado em Swoon como castigo. Mas alegram-se um pouco se não somos chatinhas, se não os tratamos como se fôssemos os clientes mais tristes deste mundo, e se lhes dizemos que também nós estamos cansadas e aborrecidas de morte, que só queremos uma overdose de açúcar e cafeína para chegarmos ao final da sexta-feira com uma taxa de zombismo de menos dez por cento do que o habitual. Eles riem-se e parecem menos zombies também. Mas serve este pormenor para lembrar que o mundo corre a um ritmo insustentável, que de um modo ou outro mutila as pessoas. Essa é outra forma de vírus mortal. Em Oxford, quem percebe alguma coisa de café e gelado, acaba no Swoon, que estando em High Street, parece uma armadilha de turistas, mas não é. O Swoon é o território de duas amigas, I. para comer gelado e beber chocolate quente todo o inverno, e C., para beber café que vem de Nápoles e que, ambas concordamos, não é água de lavar pratos. A minha amizade com I. variou muito ao longo do tempo, falamos de tudo e mais alguma coisa, livros, plantas, o trabalho, o medo de estar vivo, mas há na minha amizade com I. um fundo do mais profundo amor, como aquele que une irmãos. Mesmo quando nos afastamos, ela faz-me sempre falta, e preocupo-me sempre em saber se ela está bem. I. não pode sair. Uma mistura de falta de indicações médicas claras sobre a doença crónica que a afecta e o potencial efeito do vírus sobre a sua imunidade significam que o mundo está interrompido para I. há três meses. Há três meses que I. não sai de casa. Faz-me falta o riso de I., o seu amor cego e ansioso pela Juventus, a sua inteligência rigorosa, preocupada em tentar concertar algumas das injustiças no meio das quais vivemos, a sua prudência, que ela acha ser uma forma de pessimismo. Faz-me muita falta abraçar I., ela que me ensinou o abraço psicopata (à distância mantendo apenas os braços abertos) antes disso ser moda, quando confundíamos o estarmos sobrecarregadas com uma misantropia digna de caricatura. Com C. falo de literatura avant-garde, que se lê em Paris ou Nova Iorque e de cidades distantes. C. apaixonou-se sem saber bem como, a meio da pandemia, por um realizador de cinema que filma sonetos shakespearianos em clipes de trinta segundos, contra planos de duas cores que mudam à medida que os segundos avançam, e cujas tonalidades são inspiradas nos quadros de Rothko. C. diz-me que de repente tem muito menos medo do mundo, porque esta crise demonstra que ele não pode ser evitado. Explico-lhe que me faz falta o barulho das máquinas de café e que às vezes alucino com esses sons e que no outro dia me apanhei a meio de uma noite de insónia a pesquisar em sites descrições e explicações da origem dos vários tipos de som que as máquinas de café fazem. George Steiner morreu no princípio deste ano de 2020. O meu livro favorito dele é The Idea of Europe.  

4.     Os cavalos começaram a aparecer alguns dias depois da ordem do confinamento, quando nos passou a ser permitido passar apenas uma hora por dia na rua. Atravessam as ruas do bairro quase de madrugada e voltam ao fim do dia. Os cavaleiros vêm vestidos com um equipamento que parece ser o dos guarda-redes do hóquei no gelo. A primeira vez que os vi foi numa manhã muito cedo enquanto bebia café e olhava pela janela. Ouvi os seus cascos ao longe até que eles se começaram a ver ao fundo da rua, lentamente, em passo de passeio. Os cavalos, preciso de me lembrar, não são os do apocalipse, o seu dom não é o da profecia nem o dos finais violentos, vêm do hotel de cinco estrelas, junto a Abingdon Road. Nenhum carro atravessa a estrada principal durante horas e só se ouvem os cavalos. Escuto-os nervosamente, são o primeiro sinal de que o tempo enlouqueceu com uma quietude profunda. Este som terá cortado estas mesmas ruas quando em Praga no final da segunda década do século passado, Kafka adoeceu com a gripe espanhola, da qual não veio a morrer. A estrada alcatroada é agora toda dos cavalos. Também eu caminho a pé pelo meio da estrada, ou pedalo cegamente entre Oxford e as pequenas vilas que a rodeiam. No frio das madrugadas em Março e em Abril, às vezes só eu de bicicleta, e os cavalos esguios como em El Greco, ou como um quadro surreal ou esgueirando-se pela margem de uma loucura literata como num episódio no D. Quixote. De noite, sonho com os meus mortos, com o meu irmão, e os meus tios, e os meus tios-avós, e os meus avós, sepultados num cemitério de província, completamente de um sul rural, noutro país, e com os cortejos fúnebres de carruagens puxadas a cavalo de uma infância de colegas de escola afogados nos verões de um rio que está agora longe o suficiente para se fazer passar por mitologia. A pobreza do campo é outra pandemia mas não há já motas em Abingdon Road que me devolvam o som da infância, só cavalos, e o café dos Portugueses fechou, nem sinal dos dois irmãos, nem das suas mulheres, nem bicas, nem bolas de Berlim, nem pastéis de nata congelados, na arca frigorífica, duas prateleiras abaixo das garrafas de Old Speckled Hen. Caminho para o norte da cidade para comprar farinha aos italianos, beringelas e vinho aos gregos, o meu patriotismo é pouco nacionalista, mediterranicamente incoerente. A loja tornará a abrir, mas muito mais tarde, e em Junho. À data em que escrevo estas notas, o café segue fechado. Os cavalos são os do hotel de cinco estrelas mas são também os de Guernica, os seus olhos uma revelação larga e contundente de uma luminosidade misericordiosa para lá dos candeeiros, cujo fulgor é de ordem explosiva, quando eles reprimem a sua velocidade rente aos ramos das macieiras, são por isso o eco distante de paixões homicidas, que antecipam uma península banhada em sangue. A Península Ibérica está sempre comigo, agora que me vejo num longo cerco de água por todos os lados menos aquele que me liga à extensa massa de um continente. Isto é má prosa. Abro a janela para deixar entrar o céu, as vozes dos pássaros, os cascos dos cavalos. Em Os Três Verões de Margarita Liberaki os olhos de Infanta enchem-se de lágrimas, da primeira vez que ao galopar cegamente o seu cavalo, Romeo, ela pressente que jamais se poderá libertar da sua própria quietude. Para matar a monotonia deste tempo, no pequeno apartamento de Marlborough Road, enchi de cavalos e livros o ar. É esta quietude mental o que também eu não me posso perdoar, e já vinha de antes.

 

5. Quando o mundo era ainda normal, E. publicou um livro sobre arquitetura da época clássica à contemporaneidade que a tornou famosa. É por isso que quando em Janeiro ela veio de Paris a Oxford para dar três conferências e várias entrevistas a todo o tipo de jornais famosos nos divertiu que ela ficasse em minha casa, no sofá mais velho e desconfortável de toda a cidade. E. vinha um pouco doente de amor pelo colega que a tinha convidado, cujos textos ela tinha lido e admirado à distância, um arquitecto alto, belo e sabido, como os piratas venezianos que fizeram fortuna nas costas da ilha onde ela nasceu. Eu disse-lhe, E., isso vai dar merda. Ela disse-me, “eu sei, eu sei.” E. disse-me, quando me rio sinto que o meu riso carrega já a ponta da dor que isto me vai dar. E. não dormiu quase noite nenhuma no sofá azul desbotado, e voltou para Paris ferida de amor e da tonta alegria e à medida que os países se fecharam, a partir do receio de uma separação, da morte precoce de algo que ainda mal tinha começado, veio do colega pirata a namorada do Canadá, que não estava neste enredo, e ele deixou de responder a E., em poucas semanas deixou de lhe falar completamente. E. diz-me, vejo as vedações dos jardins fechados e as magnólias que florescem não podem curar a minha pena, quero abraçar-me às árvores e desaparecer e florescer de outro modo, quero que o som da primavera à minha volta cure depressa esta coisa que dói sobre o peito como um afogamento. A primeira morte é de amor e parece que custa sempre mais do que outra qualquer. À medida que ele dorme no seu silêncio distante, o mundo para mim esvazia-se. E. escreve-me este tipo de coisa mais ou menos constantemente. Nos Jardins do Luxemburgo, nas tardes que se vão tornando de sol, ninguém se senta nas cadeiras verdes vazias, junto às fontes, e cruelmente o rumor da água recorda-me a voz dele. O problema do meu amante efémero é que no seu desaparecimento ele permanecerá misterioso como um fauno. E. telefona-me um dia ao fim da tarde e diz-me que de madrugada pedalou até ao Arboretum de Paris e saltou a vedação para abraçar uma das magnólias. Eu queria falar-lhe de Perséfone, da morte que Deméter dá às flores e aos frutos quando Hades, o amante, faz a sua filha desaparecer no Inferno para a desposar, e tudo volta a renascer quando a filha pode regressar. O casamento de Perséfone são seis meses no Inferno com o marido e seis meses na terra com a mãe. Mas ela diz-me antes que o guarda do Arboretum a apanhou em trespasse e queria chamar a polícia, em vez disso contentou-se que ela a ajudasse a regar, salvaguardando as devidas distâncias, as laranjeiras e outras árvores que pedem pequenos cuidados. Agora de manhã cedo e ao fim das tardes E. regressa ao jardim para se estender e se desapaixonar de ouvido colado à terra. Ela diz-me, o rumor de Perséfone que parte e regressa pode ouvir-se no rumor das plantas, de ouvido colado ao chão, estou a tentar respirar com a terra.

Escadas com Mimosa, Pierre Bonnard, 1946

Escadas com Mimosa, Pierre Bonnard, 1946

João Moura: Alguns contos breves

Vidas

Era domingo. No dia a seguir de manhã seria sexta à tarde. 
Pôs o borboto de malha que lhe dava um ar oleoso-suicido-comunista. Mandou calar a mãe que lhe perguntou se podia falar. Bebeu o whisky com estrelitas do pai. Atirou a cinza do Gigante na direcção do outro filho do pai, ignorou o outro filho da mãe. Ligou à ex-namorada a dizer que já não a amava e que as iscas que fazia eram uma merda e que só as comia para exercitar os dentes obesos. 

Deu uma festinha ao hamster e trancou-o na braguilha. Saiu de casa, começou a andar. Era o rapaz mais sadio que alguma vez tinha andado por aquela aldeia. Considerado um prodígio por todos os recém-nascidos enfermos e iletrados. 
O dia estava feio. Até parar de chover esteve sempre a chover. Ele não era mais bonito e a maior tempestade estava naqueles cornos vazios e cheios de merda. 
Farto de levar a aldeia e o borboto às costas foi para a maior falésia que encontrou. 
Depois lembrou-se que havia tanto por fazer. A torneira do bidé que pingava sem parar. A tigela das estrelitas que não se lavava sozinha. O comando universal que tinha ficado de comprar no chinês porque o da meo tinha o botão do volume para cima para dentro. E pensou que não era ainda hora para aquilo. Havia muito por fazer ainda. Mas depois pôs esta música* a tocar. Voltou atrás e seguiu em frente. 

(*Deus - Right as Rain) 

Galã 

Ela apaixonou-se por ele. 

Com 2 anos e meio ele era um mês mais velho que ela. 
Ela admirava tudo nele. A destreza na pintura das paredes da escola, o umbigo já quase para dentro. O facto de já quase andar e de dizer coisas como uifhgewufhuew, aos berros mas ao ouvido. Acima de tudo estava orgulhosa por ter conquistado um homem mais velho.  
Ela babava-se por ele. Pelos dentes a romper também. Por tudo e por nada. 
Quando ele entrava meio a cambalear pela sala da sesta a seguir ao almoço na escola a fralda dela enchia-se de xixi. Andaram durante toda a creche. Quase deram o primeiro beijo se a auxiliar não tivesse pegado nele de repente para lhe tirar o cocó da fralda. 

O Carlos Gordo passava por ela despercebido. Era da sua idade. E no dia em que ela se começou a encantar pelo mais velho, ele ainda tentou atravessar-se-lhe de gatas no caminho. Claramente com uma overdose de Cerelac, não teve o discernimento certo e necessário para jogar na antecipação. E ela não gostava de homens preguiçosos, muito menos de homens com vícios. 

75 anos depois voltaram a encontrar-se. Não se reconheceram. Ambos homossexuais e completamente desinteressados um pelo outro. Ela continuava a babar-se. Ou já se babava outra vez. E não era por ele. Muito menos por causa dos dentes. 

 

Higiénico

Às vezes estou a olhar para um bolo de arroz a ser comido por um pombo, em cima de uma mesa de uma esplanada patrocinada com cadeiras e mesas Lipton Ice Tea e penso: 

‘A esta hora já é noite na Nova Zelândia.’ 

Depois penso em rugby. Logo a seguir penso em ombros deslocados. Depois penso no meu filho. Depois penso no judo, onde ele deslocou o ombro há pouco tempo. Depois penso no cabrão do puto que ainda hoje acredito ter-lhe feito aquilo de propósito. Depois penso que é melhor voltar para o psicólogo. Depois penso que é ele que me anda a fazer isto a mim, porque lhe dá jeito que não melhore e, melhor ainda, que fique pior. Eu que mal pensava e que quando penso logo desisto, hoje em dia penso quando vejo um bolo de arroz a ser comido por um pombo, em cima de uma mesa de uma esplanada patrocinada com cadeiras e mesas Lipton Ice tea. 

 
Chamamento
 

O padre Pedro e a freira Francisca vão em missão para o Gana. Lá distribuem amor, umas porções de arroz e massa e merchandising da sua paróquia, trazendo o coração cheio. No regresso, na zona de raio x no aeroporto mandam-nos parar. Perguntam-lhes o que foram fazer ao país e se têm alguma coisa a declarar. Notam alguma tensão, não percebem o que se passa. Mais oficiais do exército se juntam para observar no ecrã à transparência os soldados de Deus. Depois de alguns minutos são detidos. Perguntam-lhes se querem confessar alguma coisa. A freira Francisca admite ter uma placa de platina na testa por causa de uma mini, num arrufo de bêbeda num bar quando era mais nova. O padre Pedro pergunta ao oficial se não quer ele confessar-se. O oficial manda-o ajoelhar-se para lhe pôr as algemas. O padre Pedro manda-o ajoelhar -se para lhe dar a bênção. A coisa torna-se parva e ambos concordam que quem manda ali é o oficial e o padre Pedro aproveita para relaxar quando percebe que o oficial não quer aproveitar os seus serviços. 

Entra depois um oficial mais graduado, cheio de dioptrias nos olhos. Diz-lhes então que descobriram que traficavam borboletas no estômago. 

Depois do incidente e da descoberta que ambos negavam até então, chegados à paróquia despem a batina, desistem do papel de intermediários do senhor, declaram-se um ao outro, amam-se e vivem felizes para sempre. Graças a Deus. 

 

Famílias especiais #1

Nem a morte a vinha buscar, nem sequer os bichos lhe pegavam. Entravam e saíam. Até para eles aquilo era um gueto e não queriam apanhar uma doença porque tinham micróbios pequeninos para alimentar em casa. 
Não valia mesmo um charuto. No máximo uma cigarrilha e um ventil, respondiam ao seu pai os vendedores do mercado de tudo o que é merda. 

Na verdade o pai também não valia grande merda. Que pai é que tenta trocar a filha por um charuto? Nem Romeo y Julieta. 

Mas o pai tinha um primo afastado que era advogado e outro que vivia mais perto e que conhecia gente. Este último ajudou-o com tudo. Disse que conhecia um gajo que era bom nesses negócios. Conseguiu trocar a miúda por 4 polos da Lacoste. Entretanto ninguém disse que o gajo era cigano. Mas a cabeça associa de imediato vendas estranhas e polos da Lacoste a ciganos. E isso é feio. Mas adiante. 

Na despedida, apesar da família mais que merdosa que ambos compunham, pai e filha choraram. Até um dos crocodilos num dos polos estava a chorar. 

O pai num último acto desesperado de fuga ao remorso, pediu da seguinte forma à filha um lenço para limpar as lágrimas de crocodilo: 
- Doce, dás-me um Kleenex para tirar o sal que me cai dos olhos? 

Essa foi de imediato eleita por todos os especialistas como a frase mais merdosa do ano de merda em que foi proferida. Um life coach português contestou o resultado. 

E como isto não tem ponta por onde se lhe pegue nem conclusão possível acaba assim. 

‘O que é que se passa com o Moura?’ foi a frase mais ouvida nas semanas que se seguiram. 

 

Famílias especiais #2

Seguimos com o segundo episódio de famílias especiais: 

Uma coisa boa ela tinha. Quando deixava de gostar, deixava de gostar. Nunca amava o anterior, só o próximo. Mas tinha com o amor uma relação de amor-ódio. 
E a vida não lhe fazia um raccord de jeito. Um dia era sim. No outro sopas. No outro caldeirada da grossa. De um sentimento para outro não havia meios-termos. Cortes à bruta. Com o passado. Com ela própria. Nos pulsos. 

Mas depois tudo mudou. Passou a amar tudo e todos. E aí começaram a chamar-lhe de cabra. De puta. De rameira. Alguns de Carla, que era o nome dela. 

Sem saber o que ser, decidiu calçar umas botas texanas e ir jogar ténis para espairecer. Não acertava uma. Era isto. E pouco mais que isto.  
Perdeu 6-2 6-4 contra uma parede e ainda sofreu 6 ases. 

Já o avô era fraquinho. Conhecido por precisar de fazer a barba apenas no sentido do pelo. E por gostar de espargos numa altura em que até os espinafres eram considerados apenas pequenos arbustos. 

Um dia saiu-lhe o euromilhões e fez o que sempre tinha pensado fazer se esse dia um dia chegasse. Inscreveu-se nas aulas de ténis e foi comer fondue com mais duas amigas. E no dia seguinte apanhou o comboio da ponte 10 vezes para a frente e para trás. Depois achou que a continuar assim ia esbanjar tudo num instante e fechou-se em casa. 

Morreu a ralar queijo para fazer ‘risotta’ - como esta triste lhe chamava. Quando chegaram ao local os bombeiros pensavam ter sido lepra fulminante hardcore. 

O avô ia agora ficar sozinho. Ficou preocupado.  
Mas depois pensou na estúpida da neta. Ralada. 

 

Famílias especiais #3

Ainda assim encerramos hoje a série 'Famílias especiais' com a desventura de Rúben. 

O avô materno era um amante de números. Tinha sido campeão do bingo do Belenenses já por três vezes. Uma figura respeitada entre pares e ímpares. 

Mas o jovem Ruben cresceu numa sociedade onde era proibido beber leite meio gordo.  
Durante anos foram frequentes as manifestações pró-leite meio gordo. Não raras vezes acabavam em cenas de violência. O tráfico nas zonas mais pobres da vila era pandémico e chegava-se a comprar meio litro de meio gordo por meia centena de euros. 

A avó paterna vendia também sacos de leite meio gordo pela porta do cavalo da sua taberna ‘A Vaca Leiteira’. Como os sacos eram brancos o leite passava despercebido. 

Um dia mandaram encostar o carro da avó e pediram-lhe para abrir a bagageira. Ali encontraram alguns jerricãs com leite. Defendeu-se de pronto dizendo que alguns eram de leite gordo, outros leite magro, outros de sémen de búfalo da Guiné que usava nos pastéis de mozzarella que vendia na tasca. 

Antes de fazer o teste para despiste do conteúdo, o guarda avançou a explicação proforma ‘Se esta esponja ficar cor-de-laranja pôr-do-sol é porque é leite meio gordo’. Ela disse que sim, que sabia disso. E assim que o líquido tocou a esponja esta ficou cor-de-laranja nascer do dia. Chamaram-lhe o milagre da pasteurização. Ainda assim a avó não se livrou de 1 mês em Caxias quando umas semanas mais tarde a mandaram parar outra vez. Para além de um stop fundido e de o colete reflector estar embaciado, tinha o neto no banco de trás com 4 dentes de leite meio gordo. 

Rúben cresceu com este peso em cima. 

Mas como era hipocondríaco um dia assustou-se com as notícias sobre o surto de sarampo e deixou de pensar na avó. O avô, meigo e terno tranquilizava-o dizendo para estar descansado, que pelo andar da carruagem algum dia alguém lho havia de limpar. E assim foi, aos 26 anos e por causa de uma rixa antiga de famílias dealers de leite meio gordo, um membro da família Brito viria a concretizar esta profecia. Via-se na capa do jornal do dia seguinte o jovem Ruben, também ele meio gordo, deitado no chão, com a camisa Sacoor aberta até ao umbigo, uma poça de sangue em seu redor e centenas de litros de leite a escorrerem pelos buracos de bala feitos nos barris que trazia na Hilux de caixa aberta e a inundarem a rua. Um cenário que na altura se tornou frequente nos jornais e que espalhava o terror e o medo nas gentes daquela vila. 

No funeral, incrédulas e revoltadas com as injustiças, as carpideiras pagas gritavam mais sentidamente que todos os outros:  
‘Tão novo, bolas só tinha 26!’ 
‘Linha!’ gritou o avô materno como fazia sempre que ouvia um número entre 1 e 100. 

 

É Natal

O Engº Fonseca dos Santos saiu de manhã com aquele sentimento altruísta que o abraçava todos os 25 de Dezembro. 

Apanhou um táxi. Como auto intitulado homem do povo, social 360º, falou com o taxista. A ver se conseguia criar uma história para depois contar aos amigos. O taxista como todos nós achou-o apenas parvo. Ele achou-se brilhante. 
Para ilustrar só um pouco da interacção ocorrida, a dada altura o Engº Fonseca dos Santos pergunta ao taxista porque é que ao mudar de concelho tinha de pagar outra tarifa, sendo que nada acontecia a não ser atravessar uma linha imaginária que nem sequer era bem definida. O taxista respondeu que podia sempre ir de comboio que o valor era o mesmo ao longo de toda a linha, ou que podia até chamar um uber que o preço era também fixo. Fonseca dos Santos respondeu que agora o taxista é que devia pagar uma tarifa extra porque tinha dado dois conselhos de seguida, o conselho do comboio e de seguida o conselho do uber. O taxista nem percebeu o que ele disse e ansiou pela chegada ao destino mais do que havia ansiado que a imprudente mulher não estivesse grávida outra vez. 

Chegado ao destino, o Engº Fonseca dos Santos dirigiu-se para um dos poucos cafés abertos na praça. Era um ritual que tinha e que muito lhe aprazia. Juntar-se ao povo num café e comungar do sentimento do 25 de Dezembro em família disfuncional. 
Encetou uma conversa com o primeiro homem que se acotovelou com ele ao balcão. Um auto nomeado guineense (mentira) de nome Libório. Pediu uma média para si e perguntou se podia oferecer alguma coisa a Libório.  
- Pisang Ambon. 
- Como? 
- Pisang Ambon. 
- Como assim Pisang Ambon? 
- No Natal não bebo merda. Gosto de beber uns Pisang Ambons. 
Assim foi, whiskey para um Pisang Ambon para outro, vezes 3 em meia hora. 
Libório era daquelas personagens meios confusas e confundidas, consequência de um ou outro ácido marado e demasiadas bebidas fluorescentes num ano específico no lado mau da sua vida. Dizia-se vítima de muito azar mal desde que tinha vindo do Ultramar (mentira...nem nunca tinha ido a África, era português de gema). Ultramar, Benfica, Salazar e a conversa foi fluindo com maior ou menor risco de rebentar e com muito poucas hipóteses de se tornar coerente. 
Às tantas começa a tocar o La Bamba nuns decibéis algo selváticos e o tom da conversa sobe também. Eles não discutiam. Aliás, concordavam até, mas aquele timbre e a força que tinham de por em cada palavra começava a despertar neles uma adrenalina musculada. Antes que acabasse o primeiro refrão já Libório tinha uma lambada de desvantagem assente nas ventas depois de afirmar que ‘tinha saudades da mãe’. Fonseca dos Santos ouviu apenas o ‘...mãe’ no final da frase, deduzindo que aquela palavra dita aos berros no final de uma frase só podia ser insulto, arriscando responder com a mão. Na verdade Libório tinha dito que ‘tinha saudades da mãe’, o que era mentira. Tentava apenas mostrar-se saudosista e meigo para que a compaixão de engenheiro de Fonseca dos Santos pagasse um Blue Curaçao. Trinta segundos depois Fonseca dos Santos e Libório já se abraçavam de novo e este ciclo de lambada e abraço repetiu-se por 3 vezes até ao final da música.  
Às tantas à porta do bar passa um mitra. Os maduros compram-lhe um conto. 'Este é o nosso conto de Natal' gargalharam eles entre catarros. Libório aguentava-se bem à chaminé mas Fonseca dos Santos se algum dia tinha sequer fumado, disfarçava muito bem. 
Melhores amigos duas horas mais tarde e Fonseca dos Santos convida Libório para jantar em sua casa com ele e a sua mulher nessa noite, pois ‘na noite de Natal ninguém devia ficar sozinho’. Libório chora e abraçados avançam para o táxi. Embrulham-se uma última vez por cima de um capot de um Citroen Saxo, rebolam, caem no chão. Decidem sem verbalizar que foi um empate e seguem imbuídos do espírito de Natal.  
Chegam a casa de Fonseca dos Santos abrem a porta e Fonseca dos Santos chama pela mulher que não aparece. E que já não aparecia há 5 anos desde que um AVC a tinha levado embrulhada num saco numa noite de Natal. 

 

Enterra

É um facto. Somos a Quarteira do sistema solar. Creio que foi o que Al Gore disse quando se referiu ao Planeta Terra. 

Sou convicto de que há vida nos outros planetas. Claro que há. 
Por isso é que às vezes há vislumbres de coisas estranhas a pairar por aí ‘ele esteve aqui e depois subiu, e saiu rápido para aquele lado’. Isto é quando os ETs querem mostrar aos ETs juniores para onde vão se se portarem mal. Claro que outras vezes é a sopa de cavalo cansado a fazer faísca com o sol do meio dia e na realidade não havia nada a pairar. Mas é isso que eles fazem como seres conscientes e extra terrestres, como em ‘de fora do planeta terra’. Diz-se por aí nas tascas uma piada, que em Marte nos tratam como o planeta Enterra. 

E é claro que procuramos vida noutros planetas. Para ver se está tudo a afundar no mesmo barco. Se somos os únicos que não estamos a perceber bem como é isto de viver. Ela existe mas nunca vamos encontrá-la. Porque eles são muito mais espertos que nós. Escondem-se quando veem os javardos selvagens a chegar. É por isso que encontramos areias...fios de água, calhaus...e pouco mais. Eles assim que veem um foguetão a circular, agarram em tudo e bazam sem deixar nenhum vestígio e só saem da toca quando ouvem as palmas da nossa aterragem no regresso. 

Nós por aqui parecemos aqueles cicerones nervosos que vão receber visitas ligeiramente mais abastadas às quais querem agradar, e sacamos de todos os trunfos e pomos todas as pratas à vista. Acaba o TGV rápido, põe aí o acelerador de partículas em cima da mesa para eles verem. Tapa o buraco do ozono com esses novos robots ou com as 40.000 mil variedades de chocolate que criámos. Já agora, põe aí a desflorestação fruto da extração de óleo de palma para debaixo do tapete. Está a chover mas põe a rega ligada só para eles verem que água aqui não é problema. Agora dá só aí um jeito no teu colarinho, fecha a braguilha e vai abrir a porta que eles já tocaram à campainha.  
Somos aqueles parolos com a casa cheia de bibelots e a cheirar mal, a mofo e a ranço. 
Estamos a exibir-nos para quem? Estamos a medir pilas com quem? Onde é que queremos ir? 

E para quê? Mais fortes, mais rápidos, mais altos...para quem? Uau! Temos bueda merda. Mas isto vai haver alguns jogos sem fronteiras interplanetários e queremos muito ganhar esta merda? O meu planeta é melhor que o teu?  
É que com isto que temos nem com o Joker em todas as provas ganhávamos sequer a San Marino. 

Somos a Quarteira do sistema solar. 

 

Lullaby

‘Era uma vez uma porta que tinha ficado estragada.  

Foi num dia em que o menino acordou e foi ao sótão. Lá ao fundo, aquela porta que tinha estado fechada desde sempre e ele mal dava por ela. O pai não gostava que ele andasse por ali. E já lhe tinha dito que ali não era sítio para se brincar. 

Mas nesse dia, num ato de rebeldia, percorreu o corredor cheio de portas abertas e outras fechadas. Até que lá no fundo, lá atrás numa zona mais escura e de pouca luz, estava a porta. 

Abriu-a. 

Viu que um homem paranoico saía da cama e andava às voltas em stress. Espreguiçava-se e preparava-se para sair. Viu também que um homem triste e confuso já se vestia e viu outros com roupas de cores e padrões vivos a lavarem a cara no lavatório em frente ao espelho. Riam-se ao ver-se refletidos e tentavam alcançar-se. 

De repente começam todos a falar ao mesmo tempo. Assumindo papéis de protagonistas em simultâneo. Ele sai e foge, batendo a porta e chamando a atenção dos que lá estavam dentro. 

E a porta lá ficou, estragada. Quando fazia mais vento, ou se abria uma janela, lá ia batendo com a corrente de ar, sem se escancarar. Mas sempre a bater. 

Às vezes quando havia uma discussão o menino ouvia a porta escaqueirar-se à biqueirada. Quando numa jantarada abria a boca para mais uma cerveja a mais, ouvia-lhe as dobradiças a ranger e a ombreira a ceder. 

E desde então essa porta nunca mais se trancou. 

Ainda se chamou alguém para ir lá acima arranjar, mas em vão sob risco de afetar o resto da casa. E assim a porta continuou, ora a abrir, ora a fechar, ora a bater. Mas sem nunca se trancar.’ 

O avô fechou então o livro dizendo:  

‘E é por causa dos meninos no sótão deste menino que  o avô diz sempre: 

Tomem cuidado meus filhos, se aos ácidos vão brincar.  

Porque podem abrir portas que não são para abrir...’ 

E as duas crianças em coro: 

‘...e fechar outras que não são para fechar.’ 

O avô sorriu, desligou a luz do candeeiro, aconchegou as duas crianças na cama e saiu fechando a porta atrás de si. 

 

Padeço de casalismo crónico. 

Ela - Este programa é uma seca. 

Ele - Pois é. 

Ela - O comando está ali. 

Ele - Vai lá tu buscar o comando. 

Ela - Não, vai tu. 

Ele - Não...vai tu estás mais perto. 

Ela - (sorri) Gordo. 

Ele - (sorri) Preguiçosa. 

Ela - Anda cá. 

(Beijos) 

(Beijos com língua) 

(Apalpões e amassos crescentes) 

Ele - Vais lá? 

Ela - Não gordo, vai tu. 

Ele - Vá lá... 

Outra pessoa – Sra. Bárbara Reis?  

Ela – Sim. 

A mesma ‘outra pessoa’ - O doutor vai atendê-la. 

Ela - Foi um prazer conhecê-lo. 

Ele - Igualmente. 

 

Ca granda estúpida

Dançava o tango com o diabo 

Twerkava no colo dos arcanjos

Sem jeito para a vida 

Dava o coração a quem não tinha nenhum

Abria os lençóis a quem não queria dormir 

Fechava a alma a quem queria entrar

Desfazia a cama para quem não queria dormir 

Fazia a cama a quem a queria acordar

Merda menina merda malandra merda minada 

Estúpida estirpe estúpida estima estúpido estigma

Como era gira como era perdida como era triste 

Fogachos alegres em sociedade, depressões constante em riste

Anda menina dá-me a merda da mão 

Não quero comer não quero foder 

Quero que te ames 

Que não vivas em vão

Nem de escada nem de porta nem de nada

Sobe um degrau 

Vê-te de cima

Giro não é? 

Levanta-te desajoelha e põe-te em pé 


Idalina Costa Santos

Que tinha mandado fazer um carimbo com o nome dela e que, lábios horizontais a mostrar o encaixe oblíquo de dentes contentes, É para si. 

Por isso me ligou a minha madrinha, porque o Sr. Francisco lhe oferecera um carimbo com o nome dela - Idalina Costa Santos. E seguiu-se o ritmo de compasso perfeito do que devia ser o tal carimbo no seguimento de almofada, papel, almofada, papel. Ouvi-o do lá de cá do telefone, trepidante de Idalina Costa Santos, Idalina Costa Santos. 

A minha madrinha sempre surgira assim, qual carimbo, a uma batida surgia um mundo, num processo em que não há processo, almofada e papel com tudo. Era assim. Eu longe, numa nudez de intimidade, e ela surgia. Em todo o lado, a Idalina, numa explosão, teimosa de inconveniência. 

Anónimo, o escritório do Sr. Francisco fede a uma idade sem princípio. Fede-me a minha madrinha Idalina ao mesmo. Diz ela que desde há quarenta e três anos a pôr carimbos. Ela, não o Sr. Francisco, que cada macaco no seu galho. De modo que uma vida cheia de batidas, almofada, papel, almofada, papel. Diz ela que não só batidas dessas, que muitas outras. Por mim, vejo-lhe a vida toda encaixadinha de mesmos, nem sequer a surpresa de ela surgir a explodir de um vácuo qualquer, porque o hábito de aparecer assim de surpresa. A vida encaixadinha de mesmos, de iguais, de carimbos. 

Mas dizia-vos que me ligou porque o Sr. Francisco, braço reto, esticado, na mão um carimbo, É para si. E o mel dos olhos, não para o Sr. Francisco, para o carimbo, a seguir as letras sóbrias de Idalina Costa Santos. Uma gratidão eufórica dos órgãos dentro dela tomou conta do momento. E os olhos tomaram a transparência e a paralisia das emoções fortes. Saiu-lhe um desconcertado Obrigada. Obrigada, disse-me. Obrigada. Muito obrigada. 

Que isso sempre foi, muito grata. Dizia-me que devemos agradecer a vida, mesmo que de carimbos. Mesmo que só batidas dessas. Inconveniente, a minha madrinha, não?