Um mar de muros

Queria recordar com toda a força de que fosse capaz. Repor aqui à frente o impossível rigor de uma imagem tão parada, tão feita num certo dia, numa parte pequena da hora, de passagem, passando. Há dias vi de longe o mar, recortado azul preto entre montes e casas brancas. Foi de longe, mas não tanto. Isto é, nunca fui, nunca estive ali, e vi o mar como se vê um desconhecido cruzando connosco a rua, todos os dias, e lhe percebemos um traço do rosto, depois outro. Muitas casas, vidros e pedras, ferros, papel. Mas dava para perceber aquela mancha esbatida lá longe, num escuro diferente daquele que a circundava como um presépio abandonado, que só podia ser o mar. Passo ali muitas vezes, mas não recordo assim escuro e lento o mar, não o tom daquela maneira, entre pedaços de terra e cimento, como se fosse sempre a subir e subindo muito até lá poder chegar. Tento lembrar em quantas e tão diferentes circunstâncias passei ali daquela forma, ou semelhante, mas não posso. Lembro repentes, caras de pessoa, nomes, o corpo quase igual. O passo é outro, diz que ninguém anda duas vezes. E o traço dos montes mexe também com o das casas, não consigo. Eu não tinha visto assim o mar. E pude reconhecer também a cabeça de um homem, cabeça escura, baixa, a tarde encolhia-se já sobre a noite ou isso parecia. Por isso não sei se o moreno daquela cabeça era mesmo do homem ou imprecisão ocular minha, maneira inclinada de ver as coisas. Fazendo filmes com elas, uns com os outros, ver sempre do outro lado do muro. Mas a cabeça movia-se muito, para aqui, para ali, como se o homem cavasse terra ou semeasse. Talvez isso. Parecia o gesto de quem semeia com primor um recanto de horta, e deposita no movimento a alegria e a contenção de querer avivar o chão, de manter o corpo fresco no calor e na humidade do fofo. Não sei em que momento me apercebi daquele corpo, daquele mover alegre entre árvores e campo. Eu queria ver o mar, procurava o mar nos intervalos das coisas, distinguia figuras marítimas, algum barco, e vi o contorno do homem. Não me viu, não podia ver, mas quero pensar que cada um de nós sabia, à sua maneira, não estar ali sozinho. Tão longe, tão em cima de um bocado de mar. Às vezes a terra é só essa estação de comboio, um café tomado à pressa nalgum recanto mais feito ao romantismo. Outras vezes é só um perfume do nosso despiste. É provável que me tivesse recordado de uma canção, e cantado baixinho umas quantas linhas, poucas e sempre as mesmas, uma e outra vez. Só naquelas partes em que a gente cresce mais com a música e começa a cantar por cima do som, das madeiras e bateres do som. Acho que era e era mesmo a “Sempre Ausente”, de António Variações. Terei parado naquela mancha escura de mar, naquele pequeno corpo que distribuía sementes maiores que casas e montanhas. Só me lembro daquele homem, lá no meio, e a música passando fina, tão baixo, entre nós. Depois deve ter começado a fazer noite, mas eu ainda ficava. 

Granfondo: Não é fado normal

Vinha no balanço por intervalo e quando a canção começa a crescer então alguns de nós batem palmas, outros procuram o rosto de um amigo não muito longe, queremos perceber o chegar da música e como bate e como começa a ficar a música em cada um de nós, por isso mexemos e olhamos depressa, temos aquela sensação do amigo que passa perto e não acaba de chegar, mas vai chegando, e depois tudo se começa a baralhar e confunde, começam essas terras a mostrar onde a gente não está e onde se calhar nem sequer quer estar, lugares ao fim e ao cabo bonitos, ou lugares de que a gente pode gostar, lugares fora de lugares, lugares bons, e a intuição mete-se gorda connosco e começamos a dizer ou a pensar que aquilo não é normal, ou primeiro pensamos muito fundo cada um de nós e depois dizemos como segredo, muito baixinho, nos pés da fala ou da falinha como aquele amigo disse, que isto não é normal, que não devia ser assim, que a guitarra vai por um sítio maluco, que faz até um estremecimento no corpo tipo navio, como se a gente andasse embarcada mas só de noite, nas horas do dormir e do esquecer, ainda que às vezes só desejemos dormir tão depressa quanto possível, por gumes uma viagem, e voltar a um dia parecido no dia seguinte, com coisas próximas e vizinhas, a música às vezes também faz isso mas por mais tempo, durando-nos muito mais tempo, ao ponto de acreditarmos ser possível retomar o passado todo ele num achado momentâneo de entusiasmos, quando crescem em nós emoções até então de pedra e compreendemos que algo em nós tinha começado a mudar, mas quando?, quando começou isto a ser diferente?, e depois sossegamos e voltamos a pôr as coisas nos sítios e revemos as coisas assim paradas, notamos certo cansaço e sentamos ao lado das coisas, e então aqueles traços rijos do passado voltam a desaparecer, quase sempre de forma violenta e imperceptível, e ainda corremos para os alcançar, fechamos os olhos ou erguemos o rosto e por momentos julgamos poder recolher uma ou outra imagem, mas não, acabamos por esmorecer e alguma coisa nos distrai e queremos sair à rua ou apreciar uma comida abundante, passar um disco que há muito não escutamos ou fazer as tarefas lá de casa, e tudo isto porque a música fez um gesto diferente ou nós ouvimos diferente, como nunca, como jamais nos fora possível, até porque esta é sempre a primeira e única e irreparável vez de todas coisas, e a música chega de um lugar sem nome mas à espera de nome, e a música fica, a música vai ficando em todas as casas e todas as músicas, e batemos palmas, poucas, só para começar, queremos ouvir por dentro do som e tocar onde só a cor nos permite por momentos poucos momentos morar, subir um bocado da montanha e montar ali a casa, a casa que é para sempre, a casa que vamos fazendo um pouco por todo o lado, e morar ali em silêncio, ficar sempre no silêncio dessa música tão estranha que não se cala nunca, a música também é uma casa, pensamos, portuguesa poesia, o teu corpo também é casa, e quando juntamos mãos e braços também estamos a crescer casas, e gostamos de pensar nisto, acreditamos, já podemos sorrir uns com os outros, tocar ombros, avançar por onde queríamos ir e que depois estragou caminho, fazer força para que a malta esteja bem, querer envelhecer perto e cada vez mais perto mas não ficarmos só nós, certo calor de sermos nós a passar uns pelos outros, dizer aquelas coisas que temos guardadas para dizer, falar forte, falar da gente, e chega o momento em que já lá estamos, temos coisas à volta, ou não temos nada mas estamos, e começamos a ligar um pouco menos à música, já andamos um pouco mais dentro da música, perguntamos, reconhecemos, pedimos perdão, temos tudo pela frente, olhamos aquele sítio de longe e só então percebemos que é um fado normal.