Rebuçado, Berlim, Uma mulher e a sua vida, Nº 23 (Slow art)

Rebuçado

O meu pai e o meu avô materno
partilhavam o matutino.
O primeiro lia-o seriamente
antes de ir trabalhar.
A seguir eu levava, brincando, o novo
mundo ao reformado, dez portas
e oito décadas mais à frente.
Não sei se o lia.  

O desemprego da Grande Crise,
a guerra e a ocupação nazi,
a luta pela reconstrução,  
a reforma, recente e reduzida,
quando por fim havia amplo emprego
e hippies a cantar por todo o lado. 

Sem manchete nem memória, o novo
mundo, em plena crise do petróleo, entrava
de calções e recebia um rebuçado.


Berlim

Poucas memórias são memoráveis
mas lá estava eu em cima do Muro
numa nuvem de jovens gafanhotos
famintos de História em primeira mão.

Do lado capitalista, saquinhos de plástico  
repletos de cascalho colorido
alimentavam falsos testemunhos
por um punhado de marcos.

Do outro, aluguei escopro e martelo
(uma foice não ceifava nada desse
betão armado), subi a um escadote
comunitário e arregacei as mangas.

Por uma unha negra (o operário
só me dera dez minutos) levei
duas lascas da Guerra Fria para casa,
uma delas vagamente grafitada.

Depois de viúva, a mãe arrumou
as memórias, confiando as minhas
à minha metade mais sentimental: 
«caso ele se recorde um dia».



Uma mulher e a sua vida

Um homem e a sua vida
Yehuda Amichai

De uma tia doce e enrugada
como um figo seco pelo fim do outono
todo o mundo louva a sabedoria. 

Assim a sobrinha, sua menina   
de quarenta anos, apaixonada,
ao apresentar-lhe o namorado careca. 

Na sala, a tia oferece ambas as faces   
a beijinhos estranhos e familiares,
escuta, observa, serve chá de erva-príncipe     
em chávenas da Vista Alegre   

e puxa a sobrinha para a cozinha.
Lá, com o bolo-rei fatiado, dá-lhe
a sua benção salomónica: «Fode,
minha filha! Fode, mas não te cases».




Nº 23 (SLOW ART)

 

para a Zé

 

Pintemos o quarto outra vez,  
outra vez o quarto como novo.

Não digo de branco, talvez
cor-de-rosa meia-idade.

Mais vivo do que o verniz de unhas
tão na moda entre senhoras que

contam os seus dias sentadas
no sofá da pedicura.

Menos primário do que o encarnado  
dos caloiros da paixão. 

Não chamemos nenhum pintor,
nenhuma arquitecta de interiores. 

Sejamos nós mesmos, tu e eu.
Tiremos os cortinados     

e dois pincéis aos nossos filhos,    
desses de Educação Visual.

Todos os dias um quadradinho, 
não mais do que uma hora.  

IMAX em Alvor

Fora de controlo
curva após curva
aproxima-se o desastre
uma lomba dura imprevista
um buraco não incluído no mapa
crianças apanhadas de surpresa
Preparo-me para o choque final
mas no último instante
o condutor faz uma travagem brutal
no meu esófago
e sai com um sorriso da minha boca
Não parece ser nada que não se resolva
com compridos e uma personalidade
radicalmente diferente
Levanto-me aliviado
revejo a rota com ele
e prometo voltar dentro em breve
antes de partir
No corredor já há gente à espera
para a próxima sessão
 

Santo Agostinho no Intercidades

O cabelo dela era uma tentação de éguas selvagens.
Indomáveis contornavam o seu rosto e pelo vale
do pescoço corriam até às colinas do peito.
E prendiam o meu olhar
num êxtase de Santo Agostinho:
Senhor, dai aos meus olhos a castidade – 
mas não ainda! 
Só para disfarçar, cada vez que as crinas dela
galopavam na minha direcção,  
eu fazia penitência e flagelava a vista
com as borbulhas do garanhão ao seu lado.

Delícia de betão

Antes da aula nocturna entrei no bar

No placard havia um anúncio

de uma jovem Engenheira:

Mestre dá explicações de Betão Armado

Tlm: 96 . . . . . .

Mexendo bem o açúcar no café

vi-a espancá-los com delicadeza

em cofragens de latex negro 

com veias de ferro a latejar 

numa mistura tão suave e dura    

          E a minha colher sempre a rodar ...