Ao longe um cão ladra às estrelas — Haikus

 

À beira do rio

o reflexo

de todos os verões.

 

No telhado do velho palheiro

dormita

um jovem gato.

 

Dourado

sobre a vinha velha

o último sol do dia.

 

Passa o rio­ —

onde o reflexo

da minha juventude?

 

No monte ao sol

a pele de uma cobra —

preservativo seco.

 

Festa na aldeia vizinha

grilos no jardim

da velha casa.

 

Ao longe

um cão ladra

às estrelas.

 

No bairro abandonado

os gatos vadios

são reis.

 

Na aldeia

uma de cada vez

amadurecem as framboesas.

 

Rio abaixo

levada pela corrente

uma abelha.

 

Abre a framboesa

antes de a meteres

à boca.

 

A Lua há momentos

em cima de um pinheiro

agora noutro.

 

No poço

cai uma maçã —

que terei esquecido?

 

Ouvir os outros

como se ouve

uma tempestade.

 

Como se ouve

o vento

ouvir o vazio.

 

Ouvir palavras vazias

como se ouve

o vento.

 

O caminho mais longo

é o do silêncio —

regresso a casa.

 

A videira abraça

ausências

e distâncias.

 

Longo é

o caminho

do silêncio.

 

À sombra do negrilho

que secou

a infância.

 

Horas em branco

preenchendo

páginas de vazios.

 

Quanto teremos

que acabar

até ao evidente?

 

Acordar com o som

da primeira água

da agueira.

 

Ao sol três caixas de figos

e as mãos do meu pai —

anoitece.

 

Termina o torneio

de sueca

o sol põe-se.

Portugal, Agosto 2023

Symi

 

No mar o meu sangue

no meu sangue

o mar.

 

Põe-se o sol

elevam-se

as promessas de sonho.

 

Quanto mais tempo

ficares no paraíso

pior será o acordar.

 

 

Ovos estrelados e bacon

acompanhados

de um gato.

 

A caminho do templo

merda de burro

e turistas.

 

Depois de foder

mergulhar num mar

da mesma cor.

 

Os teus olhos fechados

contra a almofada —

mergulho na frescura.

 

No cimento fresco

os passos duram mais

que a sua pressa.

 

Esta sombra fresca

os figos esmagados

na terra.

 

Vêm e vão os barcos

na memória —

de quais amigos?

 

Chama-me o mar

ao sonho

e à perdição.

 

Onde dormita uma gata

e o seu gatinho

marcham galinha e pintainhos.

 

Encostada

à tumba de Nireu

uma ovelha morta.

 

Symi, Julho 2023

Haikus Malteses

Xlendi Bay, Malta

 

Na figueira maltesa

um pisco canta

o fim do verão.

 

Rapidamente se esquece

o que milénios de pó

escondem.

 

À beira do mar

todos os amores

a espuma das ondas.

 

A caminho de África

três patos descansam

ao lado dos turistas.

 

Cabem nas pupilas

as falésias gigantes

o mar possível.

 

Longe destes olhos

que fechados

tocam o infinito.

 

O mar nada revela

ondula um momento –

eternidade para a carne.

 

Prende-se o mar

com as mesmas amarras

que o amor.

 

Onda contra a onda

que regressa –

uma mosca observa.

 

Num copo de Chardonnay

põe-se

o Sol.

 

O olhar de Calypso

na praia –

o verão parte.

 

Sobre a merda das pombas

pousa graciosamente

uma borboleta.

 

Vinda do mar

a tempestade –

aves silenciosas.

 

Sobre o fresco cagalhão

ejacular –

manhã de Novembro.

 

No caranguejo morto

a sombra

de um pequeno peixe.

 

Caranguejo morto

ao sol

perde o verde.

 

Pequeno camarão transparente

lutando pela vida

como um elefante.

 

As ondas brilham

ao sol –

mais um barco passou.

 

São alimento

a morte e o sol –

consumindo vida a vida.

 

Puxa a linha

o pescador –

outros regressam.

 

O sol e o mar

nas salinas abandonadas

continuam o trabalho.

 

Por trás

do farol apagado

põe-se o Sol

 

Malta, Novembro 2022

Bagos de Bastardo


Nas folhas da videira

o reflexo da canícula –

silêncio no poço.

Com esta mão partida

ao que soarão os grilos

dos meus versos?


À volta da ermida

os toalhetes

dos encontros furtivos.

Quase impercetivelmente

a leve brisa e o tempo

arredondam as fragas de granito.

Arredondadas pelo tempo

e a leve brisa

as fragas de granito.

Há mais vento

quando passo

por choupos.

Quando passo

por choupos

há mais vento.

Gosto de me sentar

no silêncio do granito

ao vento.

Ah o som do vento

no granito

esculpido por milénios.

Como um beijo

de despedida

último sol de Agosto.

Nas silvas

do dólmen

a pena dum corvo.

Que rápido secaram

as amoras

dos caminhos.

Em cima da fraga

espero a tempestade –

vento de Setembro.

Chegará a tempestade

que o vento de Setembro

anuncia?

Semeadas de vazio

as casas onde

a ruína cresce.

Na muda presença

é onde habita

o maior silêncio.

Branco ainda

este sol

de Setembro.

Nas folhas da couve

brilham

refrescantes pérolas.

Bastou uma noite

para terminar o desassossego –

palha molhada.

Um banquete para pegas

e javalis

a vinha do meu avô.

Setembro –

do mosto

apenas uma memória.

Logo abraçam

as silvas

a fertilidade abandonada.

Onde crescem agora silvas

batiam-se

por um marco tombado.

Vinhas perdidas

lapides tombadas

eis o legado.

No meio do caminho

para a vinha perdida

cresce a videira brava.

Uvas da vinha velha

amoras dos caminhos

pequeno-almoço do poeta.

Na sua breve vida

o que teme

a borboleta?

À beira do rio

sentado

só eu passo.

Pequenas bolhas

o rasto do caminho

da lontra.

Açafrão do prado

no caminho –

aproxima-se chuva.

Nos bagos do bastardo

a doçura

das tuas mamas.

Setembro

regressam as moscas

do inferno.

Tarde de Setembro –

do que se despedem

os ramos da oliveira?

Agosto-Setembro 2022

Torre de Dona Chama-Cidões-Sabrosa


Bandini, chegaste à primavera

 

Paris

 

Na grande cidade

que teme

o pequeno pardal?

 

Ostras e Sancerre

ao fim da tarde

na Place de Clichy.

 

Saber além

do que os olhos julgam

ver como Dali.

 

Estômago vazio

que fome

de silêncio.

 

Torre de Dona Chama

 

Morreu o gato

quem me acompanhará

no silêncio?

 

Que vazia a sombra

do marmeleiro –

morreu o gato.

 

Dura mais a dor

do que

muitas vidas.

 

Que grande pode ser

a ausência

de algo pequeno.

 

À sombra do marmeleiro

uma ausência

dormita.

 

Cantam grilos e pássaros

como se nunca

o inverno.

 

Embalado pelos grilos

e quilómetros de cansaço

adormecer sob a figueira.

 

Cantam ao desafio

o grilo

e o verde primaveril.

 

Sobre o verde radiante

fogo de artifício colorido –

Primavera.

 

Parece ensaiar a última

parte do Bolero de Ravel

a natureza.

 

No lago verde

resistem os peixes –

ano seco.

 

No mundo das flores

a maior estrela

é o grilo.

 

Traço um verso

em silêncio

e a videira cresce.

 

Partilhando o mesmo charco

peixes e rãs

temem o verão.

 

É Maio

e mal se vê

a Serra de Orelhão.

 

Neste coro primaveril

até o burro

participa.

 

Mal se mostram as rãs

aproveitando

a última frescura do poço.

 

Que dores de cabeça

prometem os primeiros

rebentos da videira?

 

Debaixo de um seixo

a casa de um grilo –

silêncio.

 

Depois de regar

as videiras

sento-me e escrevo.

 

Ao lado do gato enterrado

florescem

as rosas vermelhas.

 

De flor em flor

a abelha partilha

o amor alheio.

 

Sente-se o verde

subir ao nariz –

pôr-do-sol.

 

Vem-me mostrar

uma mão de ovos –

mãe.

 

Rãs e grilos

e o cantor principal

um melro.

 

Anoitece

o canto do melro

refresca o ar.

 

Apoiado na enxada

o velho coveiro

olha a rama das batatas.

 

O velho sacristão

rega a horta –

manhã de primavera.

 

Depois de regar

murcha

a glória-da-manhã.

 

Murcha a glória-da-manhã

mal acabo

de regar o orvalho.

 

Depois de regar a vinha

sento-me

e leio Bashô.

 

Nas papoilas ao sol

o sorriso vermelho

daquela loira.

 

No ervilhal

já poucas flores

restam.

 

À sombra das favas

uma rã

e uma papoila.

 

Aberto sobre a mesa

o livro do mestre

apanha sol.

 

Em São Gregório aos seis anos

o ervilhal

uma floresta encantada.

 

Regando as alfaces ouço meu pai:

“se não fosse o sol

era uma escuridão.”

 

Mais uma vez cago

ao toque

do sino.

 

Pôr-do-sol

no lagar romano

um toque de eternidade.

 

Flor de giesta

esteva e rosmarinho

o aroma do pôr-do-sol.

 

No cimo da fraga

acompanhado pelo silêncio

lembro o desejo.

 

Levanto-me da fraga

crepita o musgo seco

ou os meus joelhos?

 

Que procura na camomila

ao sol

o percevejo?

 

Salpicando o caminho

de amarelo

os sargaços.

 

Piquenique de há décadas

espalhado ainda

no bosque.

 

Brotam da rocha

estevas e carrascos –

pôr-do-sol.

 

Este vento de eternidade

dobra a esteva

e a rocha.

 

Na boca

como um primeiro beijo

o morango silvestre.

 

Sussurro o nome

Jim Morrison

uma rã começa a cantar.

 

Se não chover

o que será

destas vinte rãs?

 

Enquanto o galo canta

alguém

afia uma faca.

 

São Leonardo da Galafura

 

Onde o eterno

é um horizonte

que o olhar alcança.

 

Sobre a eternidade

da rocha

pousa uma borboleta.

 

Cidões

 

Enquanto na cabeça

escrevinho um haiku

um cuco canta.

 

Resta da noite apenas

a sombra fresca –

manhã de primavera.

 

Contorcionistas

do tempo

as cepas velhas.

 

Dragões hidras

e quimeras

na vinha velha do meu avô.

 

Como eu

uma esteva soprada

por vento alto.

 

Silenciosamente a figueira

julga a inércia

da carne.

 

Foz do Tua

 

Ondas esmeralda

rasgando

a eternidade granítica.

 

Abril/Maio 2022

 

João Bosco da Silva