Exijo que me tratem pelo nome!

 

Há quem me saúde por “sôtor”.

Há quem me saúde por “sôtor” e incline ligeiramente a cabeça.

Há quem me saúde por “sôtor”, incline ligeiramente a cabeça e coloque a mão no chapéu fazendo menção de o retirar.

Há quem me saúde por “sôtor”, incline ligeiramente a cabeça, coloque a mão no chapéu (e mais do que fazer menção de o retirar) retira-o mesmo.

Há quem me saúde por “sôtor”, incline ligeiramente a cabeça, coloque a mão no chapéu retirando-o e executando todo este malabarismo de honrarias enquanto conduz uma bicicleta.

E ainda há quem ao ver-me aproximar pela mesma calçada prefere, (talvez com o receio de conspurcar a minha passagem), prefere - dizia eu - desviar-se para o meio da estrada. Regressará dezenas depois à segurança do passeio.

um, dois

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andávamos camuflados     usavam-se uns grandes fatos de neve que nos tapavam as feições, as pernas e os pés tortos e identificáveis         andávamos camuflados    lembro-me,     sobretudo,             era Verão e suávamos debaixo dos fatos              sentíamos o calor na pele e o frio na pele              o suor a secar    

e

era sempre em transmissão  de um para o outro  que nos encontrávamos        achei sempre que        existíamos em intermitência ou estática   como a televisão

não cumpríamos planos, éramos            sobretudo os outros      gosto sobretudo da palavra sobretudo porque também éramos outras coisas   mas éramos mais as que vestíamos             : os outros :

 os do inverno acérrimo  no verão contundente                       éramos esses

   do surro a escorrer pelas ruas     como uma lesma     mas não era baba   era menos espessa   e não       deixávamos um rasto intenso       o odor marcava nos        mas não sobretudo

 

                        Sobretudo                   

      os fatos das neves  com padrão militar de ensaio                              nunca passámos despercebidos   aprendi a língua do avesso  porque andávamos    sobretudo camuflados   nunca nos desencontravam

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A C O R D A R A  N O V A M E N T E  C O M  V O N T A D E  D E  F A Z E R  D O  M U N D O  M A T É R I A


[Perfil de Catarina Real na Enfermaria 6]

Tudo o que é felino reescreve: uma carta de Pedro F.

Querida amiga,

 

Quando me chamaram para rever o teu texto, não o li. Fiquei-me pela primeira frase: “quero-te bem”. Nunca te tinha conhecido, mas pareceu-me algo artificial, estava à espera que me falasses directamente ao coração, por gentileza. Já ninguém me propõe trabalhos desse género, sabes. Estou desempregado. Antes, quando revia os grandes mestres da literatura, achava que todos eles me falavam. Agora, porém, já não me dizes nada. Por isso ainda estou em silêncio, à espera que me fales. Vejo agora que risquei uma frase tua. Falhaste uma concordância. Sujeito singular, verbo plural. Decidi então abrir a janela e saltar, porque com a janela fechada seria pouco prático, podia magoar-me. Saltei, mas foi violento, para minha surpresa acabei por morrer, nunca pensei que cinco pisos fossem assim tão levantados do chão. Não posso dizer que tenha sido inteiramente agradável; o solo é demasiado duro, devia-se mudar isso, e quando se morre as coisas doem muito mais, mas é um daqueles assuntos sobre o qual ninguém quer falar. Foi nesse momento que percebi que a verdadeira arte da revisão está em deixar ser. Não corrigir nada. Por isso é melhor não ler, e deixar estar. Outro gato, entretanto, que estava na sala a fazer poses para um fotógrafo, considerou toda a cena de mau gosto, e fez questão de o publicar. Rodopiou cinquenta e quatro vezes, o que acaba por escrever o dígrafo “sh”, se soubermos ler nas entrelinhas. Eu não tinha tinta vermelha na altura, nem lápis azul, pelo que deixei a morte sobreviver-lhe. Se ainda achas que os gatos não apreciam revisores, devias olhar outra vez. Andas desatenta. Tudo o que é felino reescreve. Deve ser por isso que os músicos se queixam das gravações, não há literatura ao vivo, a que há não tem palavras. Por isso, quando me chamaram para rever o teu texto, não me surpreendi. Era a minha profissão. Nunca me tinha matado por um erro de concordância, mas há sempre uma primeira vez. Um dia já me tinha ferido a mim próprio, quando alguém tentou falar no passado e acabou o verbo com uma coisa em “sh”. Não era o gato. Ao gato teria perdoado. Teria sido um descuido, toda a gente sabe que os gatos ainda se dirigem a alguém plural precisamente no plural, especialmente quando se referem a factos do passado. Mas aquilo irritou-me tanto que tive de ir ao hospital ver se não havia um problema qualquer do foro fisiológico na minha traqueia, toda a gente sabe que a traqueia alberga um número considerável de preconceitos gramáticos que relembram a grande invasão dos Arianos. Decidi tentar a ajuda de um profissional; dirigi-me, portanto, ao Grande Mestre Invisível, mas dado o absurdo da empresa, acabei por lhe rever simplesmente uma carta, porque mais vale ver de novo do que nunca ver. Fiquei-me pela primeira frase: “quero-te bem”. Que porcaria. Já não se fazem grandes mestres como antigamente, quando havia línguas mais originais, agora é tudo dialecto bastardo. Malgré tout, achei-o bom escritor, andava a revê-lo há bastante tempo, não que pudesse dizer “há bastante shs”, mas também poucos de nós correriam o risco de dizê-lo.  Lembro-me perfeitamente desse momento. Estava na Jamaica, e uma longa ponte atravessava duas margens do oceano; o céu estava alaranjado, mas a minha pele ainda não tinha mudado de cor, continuava moreno. Senti-me algo feliz por estar finalmente em casa, que é aquela onde nunca estive, tu conheces a sensação, não é, já lá estiveste(...), já sabes que as coisas às vezes se desenrolam só do lado que não queres. Não sei se gostas que te tratem por tu, mas neste ponto da revisão, sinceramente, já não me interessa. Não sei porquê o Haiti, aliás, já nem sei porquê o pensamento, desde que li a tua frase-cliché, “quero-te bem”, tenho andado um pouco arredado do bom gosto, e por consequência da vida em geral. “Quero-te bem” dá vontade de pôr um ponto de exclamação ao contrário no princípio da frase, como fazem os espanhóis. Aliás, julgo que todas as frases deste género começam com um ponto de exclamação invertido. Deve ser para começarmos a exclamar logo do início, para não haver surpresa, nunca deve haver surpresa numa boa exclamação, o que me leva a pensar que nas Canárias, não que eu alguma vez tivesse estado lá, pelo contrário, é a minha casa, deviam falar espanhol. Mas sem pontuação, por favor. É uma questão de tacto.

 

Com os melhores cumprimentos, e aguardando resposta

 

Pedro F.

APOCALIPSE

Árvore erguida, jorrada dos teus ossos de granito vivo, eco e forma do sangue, arranhada, ferida pelos quatros ventos e as sete estrelas, árvore de granito, sacudida por todas as correntes de arte, mas que teimas em ser a tua pedra, poema.

Poema de cinco sentidos que todos os dias me arrancas à morte. Ergue-te mais, ainda mais, ainda mais uma vez. Cantemos.

E tu poeta que dizem obscuro os que te lêem e não te escutam, a quem roubaram três vezes a vida e a morte até que as consumaste por tuas mãos, mas continuas a viver dentro de nós, do poema. Quero levar¬-te comigo, erguer¬-te o corpo de terra, da terra, e levar-te comigo como a voz sem preço.

E tu também que iluminaste as palavras na luz mais negra, também tu pedra viva, como aquela pedra que é navio e navega pelo tempo, sujeita a uma bela longevidade que não é sem fim, porque a água cava nela a rota que a leva e que ela traz consigo, mas que mesmo assim perdura quanto pode. Quero levar-te comigo, porque é preciso gritar à beira do abismo, inaudito dom de humanidade, tu, outra voz que só morrerá de viver noutras vozes.

Vós sabeis que a vitória é nossa inimiga e que a sua hedionda face jovial é o nosso pesadelo – nós estamos do lado da derrota. Vós sabeis que não queremos a verdade, porque, hoje, a verdade fala a fria fala da noite da noite, da morte morta, da morte sem vida, sem olhos, nem boca, nem mãos.

Fixámos um destino, um destino pequeno, um destino que cabe nas mãos, uma pequena pedra que ninguém conhece, nem nós, que a descobrimos como um cego descobre a pele funda de cada coisa. Essa pedra é o côncavo, a concha, o aconchego da mão, a pressão na mão, da mão. Não procuramos a verdade, porque somos irmãos das coisas, vivemos com elas, e com elas e por elas respiramos, terra, ar, mar e fogo.

Um raio de luz, o raio de luz que não se consegue separar nas suas fibras. Chega¬ se às coisas, está nas coisas, afeiçoa¬ se a elas, transforma¬ se na sua forma, aquece¬ as.

A verdade existe, deixá-la existir. Hoje, porém, os que a perseguem com todos os seus poderosos instrumentos, são capazes de a encontrar, mas deixaram-na em que estado?

Uma frase obscena não me sai da cabeça: os gloriosos malucos das máquinas voadoras. Mais alto, mais forte, mais rápido. Aí, tão altos, tão fortes, tão rápidos, estais tão fortes, tão altos, tão rápidos, ó arcanjos da morte branca, que não conseguimos sequer imaginar-vos. Por mim, desço, deve ser isso, umas escadas escuras, penetrada de estilhaços, com a cabeça a rebentar de ordens loucas, sirenes, poeira e fogo sem sentido, fugida de mil guerras. Só quero sair daqui, não pedi isto, não encomendei esta comida.

E de novo nessas terras de nomes estranhos se formam os rios humanos de estropiados, com raras palavras coladas aos lábios como beatas apagadas. Voltam as mesmas imagens, que é como se nascessem cá dentro e para nascer me rasgassem de novo a carne como outras tantas farpas de fogo. Chegámos a um ponto em que até a piedade, a compaixão, o riso ou as lágrimas, são matéria de vergonha e estão a mais.

Que raio de reportagem insuportável pode ainda extrair um resto de humanidade destes fragmentos, destas letras que se espalham pelas estradas, quando as bombas dispersaram a fala e as poucas palavras? Por vezes, das janelas altas fico a olhar quem passa cruzando-se com as línguas de aço que saem da bocarra das ruas. Não se ouve nada por detrás das janelas. Estarão a escrever um livro, o livro, lá em baixo?

Civilização, quero ser, quero ser, o único escravo, o único escravo no teu mundo de homens livres. Um escravo ao menos ainda pode aspirar à liberdade, à liberdade, trazê-la, trazê¬ la consigo, escondida, fazer-lhe um abrigo, na sua própria carne. Foram os escravos, os escravos, que a fizeram.

Casas de terra tornando à terra, como os mortos que cavaram a própria cova, fazendo no chão o lugar do corpo, sujos da terra que os iria cobrir. Não tinham o direito de se calar nem de falar. Porque havemos nós de falar ou de nos calar? Mas que falar ou que calar?

Arcanjos da morte, deixais grandes marcas no chão e nos corpos. Vincais o tempo com as marcas que deixais e às ruínas dizeis: "Sois passado". Ficam no ar paredes imperfeitas, a provar que por ali passou o tempo irrevogável, imaturo, o que não foi crescendo nas nossas memórias nem teve tempo de se fundir em nós. Um tempo que não fizemos, nem nos fez. Um que está ali fora, como um exército ocupante. Minutos que a custo expulsamos para uma rua vazia como nós.

Quero crer que uma noite o piloto de um bombardeiro soluçou. Quero crer que uma bomba humana está desfigurada, num hospital, a repetir sem fim: "A minha alma está morta". Palavras irrisórias, tardias, onde se precipita e se esmaga tudo, como num buraco negro. Movimento dos corpos despojados de si, despossuídos, que se retorcem ainda como se estivessem vivos.

Ou melhor, se posso dizer isto, corpos que caem connosco nas cataratas, levados num remoinho sem sentido mas que tem por destino fatal o abismo.

Archeiro, verga o teu arco, prepara as flechas. A violência que é vida é o teu alvo e o teu voo.

Não sou bom, nem santo, nem herói, nem pretendo sê-lo. Apenas estava a instalar-me na casa nova, a arrumar a roupa nos armários e ia abrir a janela por onde entraria a luz. Havia uma janela para a luz entrar. Tinha tudo bem pensado: passaria a mão pelos móveis devagar até me impregnar de móveis, havia tudo de cheirar a lavado até o meu corpo se desfazer no ar e ser ar, as paredes iam aquecer-me com o seu sol.

Subitamente, e não tenho a desculpa de estar numa ilha exótica, nem de haver tornados, a casa ruiu. Fito o focinho estranho do céu que me fita e ocupa todo o espaço, outro abismo para o alto. Quer uma palavra minha, mas tenho de lha comprar, é o dono das palavras. Não posso dizer que são palavras de contrabando, nem que as envenenou. São as mesmas palavras que eu tinha, as mesmíssimas. Quem não as cantou?

"O meu coração que odiava a guerra" - disse o poeta. E quando deixou de a odiar, entrou-lhe dentro o sangue do inimigo, a voz do inimigo, o coração do inimigo, do odiado odioso inimigo. É esse o momento do perigo e temos de passar por ele.

Verga o arco, archeiro, pois também tu vais ter de odiar. Não esqueças, não perdoes, não fraquejes. O teu ódio há-de ser um ódio meticuloso, gelado, mudo. Vais ser imperfeito como estas casas, como estes mutilados, como todos os injustiçados. É urgente, não há tempo para mais. Ergue-te da terra, sujo, cansado, sem amor, morto de sono.

Tu que, ao cruzares uma desconhecida, sentes crescer em ti uma roseira de luz. Tu cujas mãos choram de alegria diante dum gato só por ser gato. Tu que, na bicha da padaria, secretamente sentes a padeira nascer e crescer em ti durante anos, com um amor de vidro transparente.

Vais ter de odiar.

Odeia com um ódio gelado, feroz, eficaz, certeiro, um ódio das mãos, da cabeça, de todos os teus órgãos, como os nenúfares, os jardins de estrelas, o frio das vidraças, a paisagem oca dos desertos, tudo o que tu queiras, mas mantém-no longe do coração, não lhe abras a porta, tem-no como um armário fechado numa cave que nem exista.

A violência, que é vida, seja o teu alvo e o teu voo.

Tu sempre aqui a reviver os mesmos momentos, como quem revira o colarinho gasto duma camisa velha, querendo dar¬ lhe nova vida, mas só para o gastar ainda mais. O mar dança sobre si próprio, de novo e de novo, vai e vem. Dobra-se como um guardanapo de medusas, chama o Inverno, o Verão, a Primavera, o Outono. Pulsa, mas mesmo assim não aprendeu o tempo e tu também não: a onda precisaria de encontrar as ondas antigas, deitar-se longamente sobre elas, sentir o seu molhado. Tactear o rasto delas na areia, bebê-lo.

Tu precisas de sentir um sentimento pesado, denso e líquido como o ferro em fogo ou a lava, a puxar-te para ti, para o fundo. Fundar-te num chão duro para te ergueres outra vez. Seja o ódio esse salto.

Chamam paz à guerra e guerra à paz os que peroram contra a violência.

Um eléctrico na noite leva na barriga as suas esculturas de luz e com elas pedaços de ti, quem sabe a última esperança de beleza. E na janela da frente reflecte¬ se a tua janela, a única iluminada, e tu nela que te fitas a ti próprio, tentando perceber¬ te a ti próprio. Havia uma maneira de fazeres as pazes: estares assim cansado, cansado como estás. Mas quanto tempo podes estar cansado, com essas facas de fogo frio que remexem em ti?

Vê, vê como eu fui apanhado com a lista das compras, ou meio nu, ou a recitar palavras incompreensíveis no meio das bestas joviais armadas. Escreve isto, por favor. Escreve: andou a aprender a lentidão dos gestos, passava horas, semanas e anos a ver surgir o mundo das mãos, como um fruto. Era como uma reserva, um verdadeiro pudor. Escreve, escreve. Não te cales. Era como um recato, um autêntico pudor. Suspendia o gesto, sem o parar, apenas um esboço de carícia que ia ser, tinha tempo, tinha todo o tempo, tinha o tempo. Era tudo fácil e preguiçoso. Não tocava nas coisas, elas nasciam-lhe como um fruto. Elas nasciam-lhe como um fruto.

Isso, isso, escreve. Uma pétala nos lábios, uma pétala nos olhos, uma nuvem que assoa a montanha. Uma mulher, uns olhos de vidro vivo. Vós, escreve, escreve, vós roubastes¬ nos o dom mais precioso, mas virá uma inundação, um animal grande como o mundo, que é o mundo. O céu ficará escuro, porque nos roubastes o que era mais nosso, o que não se pode possuir. Hᬠde vir um mundo animal com uma voz rouca e profunda e caninos de fogo.

Roubastes¬ nos essa pétala nos lábios e nos olhos e o vidro vivo que nos consolava com a sua brisa loura quando lhe dava o vento quente. Um grande deserto sai dos vossos peitos e derrama¬ se por todo o lado. Mas os rios vão entrar nas cidades, crescerá a bela erva selvagem nos prédios abandonados, assim o quisestes.

A água e o fogo serão o vosso desastre. E quando não houver mais nada, apagarão o vosso nome até à quinta geração, mas haveis de sobreviver também vazios nesse mundo vazio, sem sequer o humano conforto da dor.

As Aventuras do Senhor Lourenço (preâmbulo II)

O senhor Lourenço sentia no corpo toda a pressão indefinida e prolífica da vida, às vezes julgava-se inadequado ao mundo, devia ter continuado na incubadora do velho hospital onde nasceu (Maternidade Alfredo da Costa) em Novembro de 1975. Talvez por isso nunca tenha desenvolvido “qualquer coisa de amargamente destruidor”, como “o homem sem qualidades”. Não havia nele esses impulsos demoníacos que protegem alguns excluídos de cair na irrisão de si mesmos.

            [visto de costas, serei eu “um príncipe do espírito ou um grande-escritor”? Vamos ao que importa, este é o 2.º e último preâmbulo sobre o Lourenço, depois de Proust, que pode prolongar magistralmente por 100 páginas a descrição das personagens, devemos ser modestos]

Lourenço aperfeiçoou uma metodologia que lhe permitia catalogar rapidamente alguém como amistoso ou perigoso, estimável ou detestável. Um método flexível, saíram e entraram critérios (por exemplo: o “parabéns” passou de pindérico a aceitável; ao inverso do “tal e qual”), fez e desfez ângulos de abordagem. Desta forma, apagava-se o mais possível com um gesto justo, mas evanescente, ao mesmo tempo que sorria ou punha uma face esfíngica. Sonhava, sem sucesso, ser um puro, desses, como Hölderlin, difíceis de discernir e que depois de morrerem alguém recupera para o estrato dos olímpicos.

Um dia perguntei-lhe:

– Não achas que há aí um pouco de batota?

– Como?

– Fazes desse método uma lei universal, mas ele é teu, não?

– Simplificas! Retorquiu, com a superioridade de quem domina o diálogo (coisa raríssima nele).

É verdade que reduzi esta questão quase à caricatura, deixem-me, pois, explicar melhor. Tinha como critério positivo o aperto-de-mão-viril, o que contradizia o seu cumprimento “picha-mole”, e ele estava longe de ser um génio onde a contradição é muitas vezes virtuosa. Sentia-se, aliás, bastante perplexo. Talvez por isso, quando percebeu que violava as sacrossantas leis da lógica tenha ido à net encomendar uma puta. Demorou uma hora a escolher, indeciso entre uma ucraniana de 30 anos em promoção e uma “estudante universitária portuguesa quente e meiga” de 24, poliglota e frequentadora assídua dos quadros de honra cognitivos. Acabou por ficar com a ucraniana por €100 (um bónus de €20 em cartão). Serviço ao domicílio meia hora depois (vantagem de viver em Lisboa).

Toque de campainha.

– Sim?

– Linha do prazer, é aqui?

– Sim, vou abrir.

Entrou no apartamento alguém com pelo menos mais 10 anos do que o anunciado, em sobrepeso e uma pele cheia de crateras mal disfarçadas com carradas de base.

– Senhor João?

– Sim, claro, sou eu. E você...

– Eu chamo o que o senhor quiser.

– Pode ser... Tina?

– Certo. Como vai querer?

– Oral e anal.

– Ai, eu não querer cu.

– Como não queres?

– Não ser bom.

– Mas não sou eu que decido?

– Por favor, eu não querer.

– Está bem, oral e manual (regressava ao fetichismo do aperto de mão).

– Booooom.

E lá fizeram aquilo, ora boca, ora mão, direita.

[esta cena não traz nada de novo à erótica ocidental. Mas ao lado do quadro prosaico há uma peça de sentido que reforça o traço agónico de Lourenço, encarnação de “o último homem”]

– Bem, Tina... aqui estão os €100, espero voltar a ver-te...

– O senhor gostar?

– Sim, sim, foi bastante bom.

Nenhum remorso, há muito que Lourenço usava de vez em quando prostitutas, e muito antes disso já tinha declarado que para si a prostituição era uma profissão pelo menos tão digna como a de medicina. Aliás, as senhoras e os senhores de bata branca faziam coisas bem mais imundas do que meter um pénis cheio de vitalidade num buraco do corpo ou apertá-lo na mão. Em boa verdade, Lourenço achava a prostituição bonita, não bela ou útil, não imoral ou insalubre, mas bonita.

Sem remorsos mas sem certezas também sobre a sua orientação sexual. Tina, ou lá como ela se chamava, não tinha dissipado, como mais algumas antes dela, as dúvidas que o contraste aperto-de-mão-mole / aperto-de-mão-rijo tinha inscrito no seu íntimo. Terá isto marcado uma ruptura profunda no Lourenço, fissurando o dique que continha a certeza da sua identidade? Não sei dizê-lo, foi nesta altura que se re-apaixonou pelo Livro do Desassossego, baralhando as razões que pareciam tê-lo tornado menos clarividente. A opacidade que ganhou por volta dos 40, pode, pois, dever-se tanto à confusão entre estilos de aperto-de-mão quanto a um reforço deslocado de Fernando Pessoa, que para não fazer mal, diz-se, deve ser lido na íntegra até aos 30 anos (a não ser que se viva de bolsas FCT).