Interior, apontamentos para um ficção

É um vilarejo cujo o calcário do caminhos
obriga os homens a um andar curvado,
ensimesmado, de uma inata errância –
o andar de um homem de algum modo
exilado, embora seja a mesma
a aldeia e mesma a hóstia mascada
e a distância é um abismo que se escava
em busca de seu incólume azul.

Em meio à violência, a melancolia
degenerou para uma suavidade acalanto.
Branco frêmito de chuva entrecortado
pelo guincho de porcos no abatedouro
e a desesperança, crescente, condensa-se
nas manhãs de céu baixo e na neblina
que faz arder a memória e a carne.

Nas esquinas, pick ups enferrujadas
e fios de eletricidade que se cruzam
e engaiolam o infinito. Há obras
interrompidas: montes de areia,
tijolos empilhados, pedras em britas,
a chuva de ontem que ainda goteja
de uma laje inacabada.

De súbito, dois pierrots
(ágeis como acrobatas de um circo
mambembe, inúteis como bailarinos
que encenam uma sonata ao luar
para uma plateia de crianças cegas) –

Dois pierrots, enfim, empertigados
desembainham espadas e duelam.
São homens  - igualmente
tristes brutos vingativos.

O que morre, crucifixa o azul com os olhos
e não consegue delimitar uma única fronteira:
o que é nuvem, o que é chuva,
o que é sol, o que é abutre,
o que é a vida que se desenlaça.

Duelaram pela miséria de uma mulher
de vestidos esgarçados:
grávida, mas que ao sentir
o que gera em suas entranhas, pressente
o arpejo de um mar que não conhece,
mas que traz na fissura dos ossos.

O mar de um país de assassinos.

Quatro Poemas de Tomaz Amorim

Contemporâneas  

essa sensação de ter chegado tarde
na manhã logo depois da festa
algum perfume ainda na maçaneta
cinza quente na churrasqueira
um grito que ainda acaricia a vidraça
mas ninguém à vista, um silêncio contraditório
com a abundância alegre da louça usada
com as pegadas de cinco dedos no quintal
as marcas de dois e quatro lábios nos vidros
a confusão de ter encontrado o lugar certo na data errada
(o perigo dos botões de latão na sala blindada de comando, 
sempre na iminência) 
mas uma moça de cabelo curto canta em dialeto inadivinhável
de vogais entoadas com tanta graça e duração perfeitas
alguém que marca o ritmo estranho nas palmas, nos estalos da língua
que compasso derivado do começo ou do fim do mundo é esse? 
meninas com os braços cruzados em estrelas
dançando com seus cabelos infinitos
quem sabe que horas são, qual será o século
em que essa gente vive tão despreocupada
Não, 
é agora, sempre terá talvez sido
uma entonação, uma expressão modesta
que interrompe
sem tempo para lamentar ou ansiar
ela canta agora e só são simultâneas as lágrimas
que tamborilam no meu colo
só são contemporâneas as palmas e os beijos que estralam juntos
embaraçados nesse tempo misterioso dessa brisa e dessa voz 

 

Este abismo  

Que me olha e
é todo pupila, ciclo- 
pe cego

Onde caio, des- 
norteado, desorientado
sudoeste
Um cair claro-es- 
curo, um cair nada- 
ndo, planado

Um deserto aé- 
reo, vida em êx- 
odo, em éter

E as diferenças, a des- 
igualdade aerodinâmica
daqueles que caem

De queixo baixo e rabo
empinado desço mais rápido
me convém? 

Se rolo olhos para o alto se
concentra inconfundível
o pontinho iluminado

Queda vazia e pro- 
messa de profundidade
inda que de impacto

Salto em retrolem- 
brança, até ser menor
que o reflexo na retina

Caio para cima, des- 
abando para os céus, ad- 
vindo de baixo. 

 

Lilith  

Lilith, você é uma borboleta
e eu sou um tiranossauro rex
de braços pequenos e pernas musculosas
eu choramingo, rouco
suas asas de cetim vibram
desfiam e depois se repenteiam
te digo: estou sozinho, Lilith, 
ninguém é um repouso para mim
as vozes embaixo da água ficam caladas
de vergonha
o caranguejo excitado gargalha
e sua carapaça quase trinca
no céu gira uma roleta vermelha e branca com numerozinhos pretos
o sol quica nuclear de espaço em espaço
ouvimos daqui de baixo
pinga, o flamejar sacoleja
as sombras se embebedam
depois se vê novamente
quem terá ganho esta rodada? 
certamente não eu, Lilith, 
eu apenas arranho a terra com as garras traseiras
corro desajeitado atrás de gazelas
acho bonito o jeito que você voa
tão diferente daqui, estranho pensar que
um de nós não seja um videogame ou um anjo
eu não ouso te pedir porque já transbordei em minha vergonha
mas que fique registrado
se eu fosse honesto diria, uma noite
minha nuca retangular encostada no chão
você pousaria no meu olho esquerdo
e eu fecharia os olhos
pronto. 

 

birds flying high  

discos vinis de diamantes
fagulhas de agulhas faiscando - sim - raspando
e arando em translação harmônica
ondas num meio isotrópico sem ar
éter licoroso denso aromático
galáxias e seus respiros pantanosos
bosques ofegantes foguetes iluminados
a cabeça a ponta menor da estrela pentatônica
caminho batido de terra amarrotada
tubarões antepassados afiados em nossos caninos
anteriores às árvores respiradoras às caminhadas bípedes
e melancólicas nas praias cinzas bretãs
não - pés cheios de membranas
mãos cheias de dedos cheias de dúzias de unhas sujas
conchas inchadas de fetos frescos adormecidos
estradas artérias picadas vias lácteas
senderos luminosos
girar delicado de pulsos
do quadril
voz ampla entregando quem já foi de volta um pouco até aqui
a declinação lenta do ombro sob a cabeça
da língua naja sentada amparada sobre o plexo
braços longos línguas largas sibilamento
ninhos nos cabelos ninhos nos tóraxes nas axilas
um tabuleiro preto e branco de xadrez
um 360º rabiscando chão num decolar de calcanhares
seu nariz entre meus dedos médio e anelar
seus olhos repousando em digitais
- touch my mouth with your hands
ombros não cabides de camisas mas poleiros de araras
um moicano colorido de araras
um rabo de pavão capa heróica arco-íris prismática
araras pousadas nos meus ombros poleiros
cada toque não mais que magnetismo
pontas eletrosféricas esferográficas flutuantes
cumes pirâmides aspirando-se invertidas
fileiras de Cleópatras energia de dez Cleópatras
faiscante céu multidimensional azul
cachoeira de onde se derrama aqui agora
sobre nós céu azul cavaleiros mongóis sob o céu azul
bicos curvos de carcarás nos céus azuis
engatinhamento de bebê balbuciando
notas agudas da visão concentrada do mundo
jorro de galáxias escorrimento de líquen nos caules vivos
um calor uterino - sim - um cheiro doméstico
- birds flying high you know how I feel 


Três poemas de Lucas Perito

Escopismo

contemplo um corpo já morto
uma estátua oca
um artefato de carne
carrego uma palavra ou duas
e toda a memória do mundo

 

Réquiem: herdade

Desfilam entre ervas,
Nutridos de raiz,
Onde soam as cornetas
Vão dobrados.
Carregam um cortejo
De velhos corpos
Desfeitos em azul
Seco, o outono gesticula
O último domingo.
Heras engolem a pedra
Riscam os vestígios.
Em mora,
Nos filhos,
Sobram os detritos das
Horas mortas.

 

Felicidade

Para Mia

Entre dois continentes
Mastigo uma tulipa
Os dentes manchados de jabuticaba
Sepulto o desejo num novo desejo
Lentamente deslizo
Desfaço meu ser em outro ser.


As águas-rubis

Naquela noite dormi ao lado dele, que me voltou em sonho.  
Relatou-me a estranheza de sentir  
a queda livre no Abismo.  
Eu sabia que ele tomara o bote, aquele  
que navega as águas-rubis abaixo,  
as veias afora,  
o caleidoscópio das emoções desconhecidas.  
Sei que ele sabia ser tempo  
de encarar o precipício:  
não olhar para trás, não temer quebrar o pescoço.  
Luzes afora, a ciranda de rosas acesas adentrando o Círculo Mágico.  

Havia Apolo em seus olhos, e Zeus em minha respiração.  

Quatro poemas de Ismar Tirelli Neto

Postal do Olimpo

A ausência acorda  
Luminosa, seguida  
Ausência remira
Esferas cinza  
Um penedo branco
Batido por baixas
Claras como o dia
Horto de orelhões
Desativados
Santinhos de campanha
Eleitoral  
Vasta equimose
Com algo de mar  

Comediante 

Ao sítio que me faziam
A mim contrapus
Um outro sítio ou  

então

Calcei o cerco
(Fui magnífico) 
Subi risonha muralha

em torno

Da cidade
Que me cercava
A mim provi  
Perímetro

Grande e gargalhada
Tranca

Postal para KM

Lembro sempre de você nos melodramas
fora do ventre que vaga largo  
pátio do mundo, e chove
e fecunda a testa
também ela uma manta de colo
lembro sempre de você nos melodramas
nada menos vago  
que rilhadas cabareteras
cabaretando
pelo iniludível de lágrimas, rendas, sósias
vertidas sobre almofadões  
o canapé vermelho
a que me conduz a bofetada
a bofetada pergunta
como se formaram os lagos de rímel? 

enlanguescer até bem longe
enlanguescer até a América  

Este some pelos próprios gestos
mão espalmada & mão esplanada  
entre dia e noite esfarinhado  

Acena e seca
andando de nenhum

Desgalhados de forte ventania
rondante como

Eu, bolsos abarrotados de eólitos  
monólogo fundido na chuva