Emparedado

Construo os muros da minha solidão, apátrida. Quero ter para onde ir, quando se apagam as luzes todas. Vou-me governando, e só preciso de três paredes. As minhas costas, e tudo o que está para trás delas, são o suficiente para ser a parede que falta, para encerrar o espaço da minha prisão voluntária. Crio listas, tento não me esquecer de nada, desde ontem, de tudo aquilo que necessito enquanto não volto. Tapo as tomadas todas, quase para sempre, para me proteger da tentação da carne ligada à corrente. Hidrato-me, bebo de uma garrafão de água destilada e os meus rins agradecem. Neste espaço de paredes, tenho um caixote de madeira com um cheiro de fruta da época que já passou, apodrecida na memória. É a minha única mobília sólida, se não contar com os outros objectos. Em cima deste caixote, de lado, coloco o meu gato empalhado. Malvado companheiro, que desertou da minha vida antes do tempo. E não conseguiu sequer esconder um sorriso, ele que tinha as minhas paredes para o fazer. Mantive-o assim, sorridente, com três flores cada uma da sua cor secas, cravadas no seu corpo peludo. Sou um criativo moderado, que a minha mobília não me deixa muito espaço para imaginar outro espaço. O chão, sobra. De livros, também estou servido. Tenho aqui o Camões, para não me esquecer dessa outra pátria que é Portugal, e um outro sobre os segredos e as virtudes das plantas medicinais. Apanhei muitas nos caminhos, e ainda não sei para o que servem. Noutro canto, tenho um elefante pequeno, do barro que eu próprio moldei, com uma figura triste. Fica com a expressão virada para uma das paredes, a ver se a comove. Ainda uma imagem, que trago comigo dobrada ao meio. Coloco-a no centro do caixote, por cima de um naperon de renda branca. Esta imagem pode ser tudo, e é também a minha origem. É a fotografia do casamento dos meus pais, onde aparecem com as mãos fechadas um no outro. Há prisões que se escolhem.  

Exactamente uma hora menos dez pássaros

Ao segundo passa e se conta à boca fechada, sempre pela direita enquanto não houver outra distracção. Se sai desta localidade em linha recta, por carril. Se fundem paralelos, logo desaparecem do fim para o princípio de alguns veículos próximos de um silo estacionado na paisagem abandonada. Encostas barbeadas com a raiva do pulso que não sossega, até ver sangue por si escrito numa disposição seca. A sombra que faz uma arquitectura de passagem inferior à localidade, outra, apontamentos de usos e costumes publicitados na badana dos caminhos. Matéria descendente, o banco estreito se desagua ao lado de um tubo de queda gravítica. A solidão dobrada pela calandra pessoalíssima de cada uma das pessoas que, assim, se procuram pelo engano das lentes. O rosto dissimulado pela tampa de uma caixa de visita, impresso na profundidade de uma criança. Perturbação, azáfama de contornos. Construções em quartel. Complexo de bombeiro, uma piscina abandonada pela memória líquida. Volume preenchido, ao centro. Alto rendimento. O nome do atleta descalço por conveniência ao terreno que pisa. O corpo uma zona industrial desmantelada, a parte que pertence ao mar foge para um ponto longe. Reunião imóvel de sacos bem fechados, dentro se leva dessa cortiça expandida pelas lágrimas abandonadas para fora de vidros em movimento. Cobertura especificamente inclinada para fora, como está construída. Uma passageira em pessoa eleva-se, imperturbada pelo gesto próprio da resignação. Outra cobertura, sim. Se lhe enrugam telhas pela testa, em um lugar de cota prévia à catástrofe. Altimétrica, a maior parte de uma cor e o conceito de massa rotunda de pele em redemoinho. Pé-de-vento, estrada inclinada nuns graffiti brancos de habitação plural. Passagem, outra, inferior. A imagem de Cristo, urbano em oposição a uma colina. Incivilizado depósito de água, em altura, indicado por placas à margem da via rápida. Uma linha vermelha. Paragem. A alma em movimento se dissipa pela excepção de um homem que descansa o corpo da paisagem do lado esquerdo, as tatuagens o seu telhado exposto aos pássaros, elementos flectidos à vista. O declive que o envolve, abraçado por árvores nuas. O sentimento é um pigmento imóvel. Matéria para arder, volver. Direita sombra artificial, luzes de presença pelo túnel do qual se diz alguns metros. Objectiva paisagem inteira de luz, que inunda o fim em frente. Cidade. Castelo, grua, Panteão, draga, contentor, rebocador. O país mesmo da cidade e da localidade, é piscina artificial em tons de azul esbatido. Quase não é azul, ao lado de uns braços de rio. Tem uma estrutura simples que não o suporta inclinado, por cemitérios impermeáveis. O cacilheiro vesgo a fugir para fora do olho que vê isto. Águas-furtadas. Casario rasteiro, onde morreram drogados no pouco espaço que os separava das paredes e nasceram poucas árvores. Muros de suporte no lugar de tudo danificado. Aqueduto livre das águas. Pilares toscos betonados contra o terreno, incompreendidos agora à vista de todos. Prédio engolido pelo exército silencioso da vegetação. Parque de estacionamento. Pessoas sentadas a olhar des-Norte, um sentido possível pelo carril. Mão no peito, óculos-escuros, palmadas nas costas. Reunião informal, uma manifestação de insensibilidade ordeira. Mão no braço, outro. Menina, menino. Crianças na Linha 7. Semáforo. Parque de manobras. Torres gémeas. Plataforma. A carruagem, visivelmente, em decomposição estanca o movimento do sangue pelas mãos, pelos braços. Escorre do outro lado ao vidro, me suja. Não é meu, desço escadas em carne viva. Vou, já venho. Alguém fala pelos aparelhos. Não ouço. Subo escadas, por baixo das escadas. Escadas rolantes. Não quis vir por aí, chego bem a tempo de um pássaro na berma do suicídio. Se esqueceu eles das asas, ou é aventura programada. Matematicamente se exercita de zeros, pela largura do fosso calçado por um número de carril. Vaso comunicante. Aviso. O chão estremece num lamento dilatante. Óleo quente. Portas se abrem. A respiração aspirada por um barulho de motor. Procissão de malas fechadas. O diálogo que se solta por alguém que se apanha do ar. Uma freira passa do lado dentro ao pássaro, um bando chega. A voz no altifalante, voo raso pela linha de cota zero do cais. Faróis acesos de dia, no rosto da locomotiva. Pulsações digitais, números na cor do sangue. A mala no braço pendurado da mulher. Informação: chávena de café em branco no fundo azul, dois cavalos dois campónios verdes claro em fundo mais escuro de verde. Roldanas metálicas. Quatro pássaros de súbito, o da frente com comida pelo bico. Extremidades de âncora na poça, barulhos de motor em corpo suspenso. Pássaro que se não demora. A senhora que se aproxima do senhor. Indica com o dedo, visível a direcção. Fim. Mão na cintura. O senhor olha para mim. A senhora também, e usa óculos. Aviso sonoro. É uma voz de senhora. Alguém fala pelos aparelhos. Está afastada. Não ouço. Barulho de motor próximo. À pele, avança por mim. Um rapaz com o cabelo rapado nas laterais da cabeça. Mão no bolso. Alguma barba. O sol por cu apertado, tarde de verão, vestido com a timidez de uns calções. Brancos. Barulhos de motor. Pretos. Gestão e manutenção de edifícios. Pest Control. As batidas da hora cardíaca em sopros. Dois pontos. Alguém fala pelos aparelhos, veste um pólo verde. Desaparece íngreme pela comunicação vertical entre pisos. Escadas. Outra criança, gorda, descalça os sapatos. Brancos. Usa chapéu com motivos redondos. Brancos. Alguém indeciso. Não ouço. Duas linhas depois um homem. Ambos braços, terminados em mãos que se adivinham infra-estrutura de um plano cortado. Ao acaso, passar repetidas vezes as unhas pelo rosto antes de este ser tapado pela mortalha transtornada de chapa e fixações. Rasgos, brânquias de respiração. Portas que se abrem. Uma conversa, um aviso sonoro. Um homem prostrado na aresta de um muro, que o protege da comunicação. Outra, vertical. Escadas. Olhos cravados – braille de solas – no chão de pássaros. Desaparece o aviso sonoro. A máquina desaparece. O barulho de motor desaparece. Silêncio que não existe. De um homem e mulher. Tarde é recente, duas setas obrigam o número a ficar quieto na posição dezasseis vírgula vinte metros. O eme é no fim. Casas decimais. O drogado estanca a estátua fendida do corpo pelo início das escadas. Comunicação vertical. Olha a via rápida do outro lado da fachada envidraçada, agarrado a um copo de papel fumegante. Ouço-lhe os grãos. Usa um casaco preso pela cintura, calça ténis. Brancos. Uma figura a tempo de um pássaro simultâneo a outro aviso sonoro, a uma máquina, a um barulho de motor. Transforma-se a paisagem, passam os veículos desta hora pela estrada em frente. A hora, mesma. Eu mesmo só já aqui, para a contar da esquerda para a direita. Rectângulos pontuais no revestimento da superfície construída. Hortas pobres de gémeos, passagem ínfima de esqueletos. Bainhas de cana, barreiras de insonorização que separam o barulho do motor – um mundo – das vozes da rádio que se transmite, sonâmbula dispersão, pelos homens em viaturas. Miniaturas de braço ao peito em gesso, com percursos a cumprir. Neste dia a uma hora. Moradas horrendas, mandadas construir à distância de um fio de telefone enrolado se sabe lá quantas voltas num pescoço em si mesmo transfronteiriço, entre o peito habitado pela dor e os olhos que não olham. Flores inomináveis às cores, passagens de um homem só. Picadeiro. SOS. Gabiões preenchidos com o lastro de profundidade límpida de um curso ou reserva de água. Um avião se alastra pelo sossegado instante de nuvens pictóricas, irreais, copiadas do céu artificial de um artista inexpressivo. Se leva o todo consigo, setas na mesma direcção do mistério. Coberturas inclinadamente industriais, com o passado degradado em cargas de pátina escorregadia e restos da refeição dos pássaros que se não contam. Postos de transformação. Linhas de alta tensão. Rotundas de pele. Estrela de inertes. Carros-bomba. Painéis solares. Juncos afastados do seu leito de cheia, composições concorrentes de linhas distintas. Urbano sentido suburbano, visto de outro ponto. Um metro, se tanto. Manilhas pelo terreno abandonado à boca do túnel. Pontos plantados de luz, afastados à mesma distância pelo alçado onde se fixam. O rio pela esquerda. Padrão de velas que se descobre na margem oposta. O barco e a ponte no cruzamento de pontos distintos em altimetria, salvo seja. O hospital das doenças tropicais, à distância de um braço mordido por um cão estrangeiro.  Águas estagnadas. A entrada curva na cidade de lado, alfazema circunscrita à casa do guarda da estação do meio, onde as chuvas não param. Largos pingos de gente tempestuosa, outras coberturas, invertidas, compactadas por camadas férteis de veias. Vida de que se depende gota a gota, asas cerâmicas no papel amarrotado de um rosto, de quem o vê por óculos. Obliteradores dos dedos ou a eles relativos, contam-se escombros implantados no final de um ponto. De embarque. A parte sobrante, outro segundo. Um tempo tolerado pelo estômago, refeição como as outras, esquecidas velocidades pela via do tracto tracejado, espaço sim espaço não pelos dez pássaros. Não contam nada, os pássaros, menos a um título.

Flash de sangue engolfada pela boca

E penso que há blocos sonoros e táteis onde essas criaturas-eventos ocorrem. 

Ali era o escuro da sala de cinema vasta pela sua solidão p&b. A música que fazem ecoar lá dentro me desloca para aqueles movimentos sonhados: a abertura de camadas sedimentadas pelos discursos dominantes, desfacelando-se, correndo pelo rio a paisagem interior; aqui eu te conheço, Manaus. Brota-se um mundo, habita-o na língua alheia – o botânico alemão, o xamã caxinauá, os padres espanhóis, os portugueses com suas manias excessivas. O mundo é uma fera indizível, se diz numa canção.

Nada; nem as mensagens piscando nos bolsos, ou as ligações perdidas de alguma urgência inútil e familiar, e-mail de noticiário catastrófico ou demissões, me tiram das imagens que estão rodando, sempre. Entre o filme e nossos silêncios me intriguei com o corpo na outra extremidade da mesma fileira. Traços que se recortavam líquidos, com o lançar imprevisível das luzes da tela. Cabelos curtos, olhos como dois reflexos de estrelas-no-rio. Uma presença suave e fictícia, sentada no tempo tênue. Demorei muito naquele imaginar. Minha delicadeza ali, o verbo amoroso entre nós-silêncio, nos deixaríamos partir, que vida errada levávamos nessas avenidas e ruas de São Paulo; será que ela perceberia, a minha delicadeza? Um estrondo nas luzes da câmara de ecos – o herói multilado. Levou um soco na boca, bem no meio desta chuva da rainforest.

Depois que as luzes se acenderam a delicadeza seda flutuante se levantou, o corpo me olhou por instantes e sorriu; éramos só nós dois na sala, estivéssemos a frente da cidade, soubéssemos segredos; e depois foi logo em direção à saída, daí para o calor das ruas. 

Nos nossos passos me percebeu, pensei em segurar seu pulso, entrelaçar-lhe os dedos, mas seria ridículo, apenas disse "vamos nos mandar pra Manaus". A minha delicadeza riu.


Clarissa Comin, dois textos

vestíbulo para uma anti-prosa 

 

Tenho o demo dentro de mim e assim floresce a grande prosa.  

Caminho cabeça baixa, fuçando os vãos daquela tarde – inverno de 2003 – o chão de bancos rosados, ao lado da casa assaltada pelos policiais, beijos e anões; chegam os informes sobre uma mancha escura grudada nua num canto invisível, crime inafiançável! Meus leões disfarçam para não voarem tuas veias abaixo, para poderem adubar e raptar o diesel e o carvão, para devorarem na porta o disco, bolacha-canção, e deixar só verocidade.  

Isso foi ontem, segredos encontrados numa caverna. 

Deixei-me enganar pela toalha dobrada em A4, se querendo livro, salpicada de letrinhas corante-86.  

Não sou Champollion.  

Sou estraga-prazeres: proparoxítona terminada em ó 

 

nebulosa nº 3 

 

apontar os mesmos defeitos usando o dedo do meio esquerdo porque a última vez que estive aqui era essa mesma ponte agarrada a uma coisa cheiro de casa mal amarrada à cara clara exalando coisas amargas e perguntava de onde vinha o gastro amor imaginário de onde vinha esse fantasma engarrafado há milhas que me lia daí de onde vinha aquela água pesada levando ao mesmo tempo para longe esse medo tolo de deixar sentir também tinha aquilo do aumento impreciso das taxas cambiais e do cultivo de feromônios em campos fechados regados com água mineral livre de metais nodosos e eu pegava o caderno amassado mentia que estava tudo pago percorrendo imagens looping and roll de uma noite cinema em que o dedo roçou a ponta do cabelo alheio o brilho do passo estreito forçando a barra pra caber num espaço exíguo 50 x 50cm bom seria ter senso ser meu do-it-yourself atacar quimeras chamar umas fadas vestidas de tapetes numa ilha etérea etc etc mas o povo é viciado em dar corda para boi dormir espantam inimigos pra depois sentir-lhes falta acostumei-me com o desalinho da falta de tempo visto-me de pinho e escovo sapatos cabelos dentes com uma mão só mas agora não tinha mais isso sobraram relicários de gravatas camisas botas mal passadas sangrando a céu aberto uma perna enfiada de qualquer jeito ocupa a reta entre dois pés um não e um quadrado mágico só você sabe montar no entanto saberia você dizer por quê começou a chover esse cheiro de ontem de letra posta de molho sem fermento no fim eu só peço uma coisa no fim se pudesse dizer algo à toa à deriva último respiro antes de fechar a página seria ver a fonte nascer uma família inteira para nos dizer. 

[Ver Perfil de Clarrisa Comin aqui]

o dia em que perdi a cabeça

eu estava em casa um dia meio doente, cansado, muito trabalho, aquela correria e tudo mais. e era quase hora do almoço. friozão lá fora, resolvi: era dia de feijão com pimenta.

pus a panela de pressão com agua no fogo, adicionei temperos, sal e os grãos. e voltei pra sala pra continuar respondendo emails.

achei estranho a panela começar a “assobiar” rápido. mas tudo bem, eu estava concentrado. o tempo deve ter dado aqueles saltos de quando a gente se perde em pensamentos.

marquei mais ou menos os 10-15 minutos de assobio e voltei pra cozinha. daí a descorta. o respiro da panela não estava bem encaixado; não tinha mantido bem a pressão.

isso aborrece. e agora? ligo de novo pra cozinhar mais? abro pra ver? tive preguiça. ajeitei o respiro na posição certa e: fogo!

estava ali por uns segundos contemplando o vapor, a panela, a vida, o nada, quando a panela explodiu. BUM! e eu acho, sem certeza, que vi tudo acontecer em camera lenta. por um milésimo de segundo contemplei a beleza plástica daquela erupção de metal e comida.

não por muito tempo. a droga da tampa, uma parte dela, voou em direção a mim e se chocou como um tiro de canhão contra a minha testa. e é claro, foi aquela lambança de massa cinzenta e sangue por todo lado.

fiquei ali parado ainda contemplando a cena, com a mão na cabeça, o tampo aberto, o sangue escorrendo. pensei um instante no aborrecimento. sabe como é na europa. vem aquele monte de bombeiro e polícia, paramédico. ia dar aquela trabalheira.

como estava meio desmiolado, achei sinceramente que deveria pelo menos dar uma leve geral na bagunça, a começar pelo meu cérebro, que estava escorrido pelas paredes e chão junto com a comida.

não queria deixar as células se desoxigenarem. a imagem que me veio foi das células como peixinhos fora da água. eu tinha que juntar o quanto desse e por de volta no lugar.

a cabeça estava doendo pacas. parecia que ia explodir. quer dizer, você entendeu.

peguei uma travessa de porcelana que, olhando rapidamente, pareceu limpa. e foi, com cuidado pra não pisar em nada importante, procurando pelo menos os pedaços maiores.

eu já tinha vivido uma situação parecida na infância quando quebrei o copo favorito do meu pai, um copo do corinthians, da celebração oficial de sei lá o que. (nunca liguei pra futebol.) o copo caíra no chão, quebrou como a minha cabeça, e no chão ficaram pedaços de todos os tamanhos.

lembro como hoje dessa experiência absolutamente fatídica na minha vida.

copo quebrado, a merda estava feita, agora restava ver como resolver aquilo. e por anos volta e meia me pego desejando que a vida tivesse botão de rewind. sei lá, umas quatro chances, pra não complicar muito a vida do sujeito. cagou feito, rewind, e bola pra frente.

mas como no caso do copo do meu pai, a principio eu tive esperança. muita esperança. primeiro porque a maior parte do crânio tinha ficado no lugar e segundo porque encontrei o tampo principal, o pedaço de osso que cobria quase inteirinho o buraco.

mas daí é aquela coisa: fui juntando os pedaços de tripa com feijão, separando o que era meu na tijela, tentando pegar mesmo o menorzinho. e de perto olhando pro chão, ia encontrando fiapos que eu não sabia, pelo tamanho, identificar se era meu ou do feijão.

na verdade, apesar de estar naquele momento claramente vivendo um momento de negação, eu sabia lá dentro que aquilo tudo era uma besteira. - claro, eu pensava, que aquilo já era lixo. não tinha nada a costurar nem a emendar. fora a contaminação. mas você sabe como é a teimosia em situação de desespero. demora pra ficha cair.

nessa altura, eu já ouvia vozes do lado de fora da casa. gente que tinha escutado a explosão e estava querendo saber o que tinha sido. acho que vi alguém de raspão quando olhei de relance pela janelinha basculante na cozinha. mas o sangue nos olhos e a sensação de que era tudo verdade e que rewind não aconteceria só aumentaram o meu pânico.

a minha travessa estava um terço preenchida mas eu também já estava passando do estado de negação pra revolta. a massa cinzenta restante me dizia que aquilo era aquilo, mas ainda assim eu lutei.

os bombeiros tocaram na porta justo na hora que eu estava passando agua pra ver se tirava o resto do feijão pra dar o resultado da coleta pro medico, pra ele ver, ser testemunha de que eu tinha feito merda, mas que tentei me redimir.

o bombeiro já estava olhando pelo basculante quando gesticulei pra ele que estava indo abrir a porta. mas na verdade eu ainda não tinha decidido se seria melhor colocar os restos da cabeça na geladeira ou de volta pelo buraco do crânio.

não ria de mim, seja razoável. além de estar com menos de 100% da capacidade mental - por razões que dispensam explicação - eu estava em choque e com adrenalina correndo nas veias. além do que, mesmo repensando no assunto, vejo que houve uma lucidez ou uma tentativa de, talvez. porque pela minha quase total falta de conhecimento na área médica, achava que a solução obvia, a geladeira, poderia não ser tão bom quanto proteger e transportar as partes no habitat natural delas, digamos assim. compreende?

mas antes de eu me decidir, bombeiros arrombaram a porta, o que, pra ser sincero, quase me fez derrubar a travessa no chao. já pensou? que merda. ter que catar aquilo, pedaços de porcelana cortante, os pés dos bombeiros agitados.

logo que me viram, tive a impressão que eles fizeram um grande esforço pra manter a calma. eu tinha consciência, apesar de ainda não ter me olhado no espelho, que a cena não era pra quem tinha estômago sensível.

as coisas daí correram rápido. (engraçado, isso, a vida não ter rewind mas ter fastforward.) foi isso que eu senti. quando me dei conta, a travessa foi tirada da minha mão e um enfermeiro bem forte me abraçou pelo lado do corpo para eu sair do apartamento.

por um instante quis gritar que eles tomassem cuidado de fechar a porta. é que temos duas gatas. elas são de casa, não podem sair porque se perdem. mas se eu estendi a mão pra falar alguma coisa, acho que logo mudaram de assunto.

aqueles quatro ou mais paramédicos, bombeiros, policiais, vizinhos mais adiante. o mundo estava rodando e em fastforward e as minhas lembranças daquela situação são meio caleidoscópicas, com cores e formas se misturando e se recompondo. bonito até.

a situação do bendito copo do corinthians voltou à minha mente - veja, então, como era funda a memória. naquela situação, sozinho em casa, tentei heroicamente juntar os fragmentos do objeto. havia um maiorzão, vários médios, e um monte de tamanhos variados, entre caquinho de vidro e pó. não haveria como. colar aquilo seria acionar um processo irreversível que se concluiria com uma fantástica surra de cinturão.

a minha “ideia genial”, então, foi usar os poderes da invisibilidade que estavam ao meu alcance e se traduziam em: dar sumiço daquilo e me fazer de desentendido. afinal, um troço que ficava guardado numa mala velha no guarda roupas. era um plano. mas, sabe-se lá como, ele descobriu; deve ter feito engenharia reversa com o meu raciocínio. pensando agora, deve ter sido.

o fato é que levei não uma surra, mas duas. pelo menos foi o que ele disse. porque pior do que quebrar era ter escondido. e por isso até mais do que pelo copo, o meu corpo precisava sofrer. (mas, se me permitem a rápida digressão, a dor maior daquela história não foi a surra, mas saber ter decepcionado ele. essa dor-vergonha ainda ronda sempre que alguma coisa a chama de volta ao palco das lembranças.)

e foi assim que o episódio terminou. me puseram sentado na ambulância (porque eu estava consciente e pra eu não perder mais sangue), e fui espetado com uma droga que da sensação física de abrir espaço agressivamente nas minhas veias, se tornou rapidamente uma gostosa paz etérea.

ouvi o barulho da rua e os ruídos do motor da ambulancia se tornarem um burburinho cada vez mais suave e eu me peguei sorrindo para o que pareciam ser fadas quase invisíveis flutuando suavemente ao meu redor.

tudo durou algum tempo impreciso, talvez não mais do que a distancia entre a minha casa e o fim da rua. flutuando como sementinhas voadoras de dente de leão, essas criaturas (?) foram gradualmente caindo como flocos de neve. e ao tocar o meu corpo, elas não rolavam pro chão, mas ficavam ali, presas à minha calça jeans.

adormeci olhando nos olhos do meu pai. não o de hoje, homem velho e amargo, mas aquele da minha infância, meu herói. eu quis pedir desculpas por ter aprontado de novo. mas a minha boca e lábios estavam dormentes. ficamos assim nos olhando e senti ainda mais paz, e que nada ia ficar bem ou mal porque não havia nada para melhorar ou piorar. tudo estava bem, tinha sempre sido bom e isso era tudo.