Sobre o amor

Para a Sara

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O meu marido nunca me fará isto, diz ela, a minha mulher nunca me fará aquilo, assegura ele, e no fim, não bem no fim, por não haver fim para as histórias de amor, descobrem que são ambos humanos, que os contos de fadas que lhes haviam contado sobre o casamento não se enquadravam em nada com a natureza humana, ou melhor, que os contos de fada existem mas requerem afinações, exigem a inclusão de drama e dor, e que pouco ou nada se salvará um casal que não se deixe levar pelo sentimento que os une, o amor. El pasado, livro de Alan Pauls, é muito sobre isto de duas pessoas que todos, mas mesmo todos, sabem que se amam muito, quase ao ponto da loucura, perderem anos a destruir-se com acusações, com ódios, com rancores, com ciúmes e vinganças, para depois, exaustos de tanto buscarem alimento para o buraco negro que os consome, acabarem juntos, abraçados na cama, a não desejarem mais nada do que ficar para sempre ali, com o coração de um a fazer respirar o outro. Parte do problema passa por sermos animais idiotas, capazes de ir à lua, de fabricar foguetões, mas tantas vezes inaptos para enxergar o óbvio, o que está à frente dos nossos narizes. O óbvio, por exemplo, é a certeza de que o sentido da vida, ou aquilo que achávamos ser o sentido da vida - aquele sonho grande de ascender a rei e ser adulado por uma legião de fãs - , era um escape, um medo de viver a vida real, de amar o próximo, de ser frágil. O real sentido da existência é a menina que nasceu, o filho por vir, a partilha de um jantar, um sorriso, sentir o abraço daquela mulher ao nosso lado deitada, aquela mesma mulher que nos deu origem aos sonhos e nos fez bem, sem sabermos da existência desse bem. Causamos sofrimento ao outro tantas vezes por amá-lo, por ainda não termos crescido, por não sabermos o que fazer a um sentimento mais forte do que o cérebro, por não sabermos se o sentimento que nutrimos é correspondido, por mil e uma razões que nos desviam desta necessidade vital que é aprender a amar sem mais, com fé, com a certeza de que depois daquilo não haverá mais nada na vida a não ser escuridão. Em vez de raiva pelo mal que a pessoa amada nos causou, a pessoa em sofrimento pode assumir que esse mal foi causado por outro mal, e que esse outro mal causado por outro mal, e isto até ao infinito, até perceber que no peito esventrado circulam um amor e uma bondade superiores ao osso, à carne, ao pêlo, e que não há ego, orgulho, vaidade ou ressentimento que não se consiga vencer, quando dois corpos que deviam ser um só se encontram no mundo e não sabem existir um sem o outro. 

Confissões no Comic Cosmic Cafe

I.

Aqui me sento, engolindo a golos lentos a vida fria,
Lendo as paranóicas páginas de Kerouac, enquanto todos se riem
Em inglês e francês à volta das suas mesas, longe de imaginarem
Que a sete palmos do balcão eu me questiono:
Porque é que algumas mulheres me tentaram meter o dedo no cu?
Geralmente estou dentro delas, mas o que elas querem é entrar-me dentro,
Como se fosse uma vingança por todas as vezes em que morreram com o olhar
E um abraço apressado. As cervejas caminham à minha volta e as gargalhadas aumentam.
Se calhar, estou a pensar alto em dedos finos que me tentam violar,
Coisas do último tango e cerveja cor-de-laranja e a vida engole-se
E a porta abre-se e fecha-se e mais gente entra no copo sempre cheio,
Cada vez mais difícil de aguentar, sorrisos de joelhos à espera de um orgasmo
Aos oito anos de idade, seco, no palheiro de alguém,
Há mil e mais anos atrás, antes da invenção da palavra orgasmo.
Riem-se os olhos azuis que me tentam penetrar com as meias negras
E a saia demasiado curta antes do fim das nádegas,
Rio-me eu na caneta, porque ninguém acredita que perdi a virgindade na primavera
Dos meus oito anos nos bancos traseiros de um Mini branco abandonado numa eira,
Com o irmão dela no lugar do condutor a ver se alguém vinha
E vim-me eu, mais um orgasmo seco (veio-me o gosto)
Seguido de uma dor que acompanhava cada nova entrada e saída
E ela a dizer para não parar ou nunca mais e eu não consegui mais e nunca mais.
E Kerouac, perdido no seu Big Sur, olha-me com chamas nos olhos de Humphrey Bogart
Com os meus olhos no reflexo amarelo do copo de cerveja, enquanto a vida me bebe
E só a morte é inevitável, a vida não.

II.

Tanta gargalhada com um copo quase vazio,
Um velho hippie olha-me com os seus óculos oleosos
E eu longe, em Moçambique onde está a irmã do meu amigo Pete,
Que me fez rir às gargalhadas quando me disse que eu era
O homem mais bonito que ela já viu ao vivo, exagero de quem me podia
Ter metido o dedo no cu, mais uma, da idade da minha irmã,
Não fosse eu sentir-me ainda culpado por ejaculações
Em faixas negras, faixas brancas e sofás alheios em salas desconhecidas,
Por isso jogamos poker pela madrugada fora, enquanto a cerveja passava
Para o lado onde moram os antepassados, até a vontade ser de dormir
Com ela ao lado, com medo de mais uma vez eu todo língua e dedos
E ela toda um calor viscoso à minha volta. Aposto tudo,
Acabo com a cerveja num último golo gigantesco e espero
Que a promessa nunca dita naquela noite se cumpra
Em explosões azuis nas curtas noites do verão do norte.
Mais uma mão cheia de alguém que não poderei ser, nem ter, além de três
Ou quatro orgasmos, que depois se tornarão em adiamentos de derrota.
Tudo é uma mentira que se conta com seriedade e braços cruzados
Num café com uma cerveja à frente e a distância segura
Do que se é atrás da retina longínqua do tempo.

III.

Uma madrugada igual a tantas outras e eu com o mesmo passo
Apressado de Rimbaud e a (quase) mesma fome de experiências
E vida, até que um amigo de um amigo se senta no meu colo bêbado,
Me abraça como mais uma e me pergunta se eu quero que ele me chupe
E que ele costuma fazer isso com os amigos e álcool forte
E eu sinto-me impotente na impossibilidade de me dissolver no sofá
Até deixar de me sentir numa fobia que desconhecia, culpa da forma
Como todos na terra são machões ou simplesmente não era o meu tipo
E muito obrigado mas não obrigado, afinal há experiências que ainda não,
Que nem sei, o inferno já é meu, os mapas são inúteis neste lugar onde sou,
Mão no queixo e olhar vazio de intelectual, enquanto o sol ameaça pôr-se
Antes de um Domingo sem igrejas, hipocrisia e pão do que se cola ao palato,
O mesmo que provou o meu esperma embriagado,
Sangue de uma multidão de perdidos.

IV.

Os The Smiths, apesar de ter deixado de acreditar no amor
Desde grandes fogueiras, continuam a perseguir-me,
Abençoados e noites longínquas em cidades de estudantes,
Eu, um eterno, sempre armado em mestre de esfomeados por morte
E razões para continuar, sentidos injectados como doutrinas pouco sólidas,
Mais valem uns dedos além meias húmidas, sedentas de sumo quente
E doente enquanto a música se asfixia na sua impossibilidade
E um dia confesso-te o porquê do meu inferno, a razão pela qual nunca
Me poderás amar e não interessa, enquanto eu continuar a beber a vida,
Longe daquele verão dos dezasseis anos, de Hemingway e dos aviões
A tornar a realidade demasiado real contra torres longe de Tolkien.
Não pedi nada disto, não fiz nada por isto, nem mereço seja o que for,
Por minha culpa, minha tão grande culpa, não peço, mas desespero,
Por outra noite a olhar o tecto esburacado numa manhã de Domingo
Aos sete anos e meio, pouco antes do fim do mundo.


14.04.2011
Turku

Sobre um poema de "Os Poemas Fingidos" de Pedro Braga Falcão

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Dentro em pouco, será lançado este livro de Pedro Braga Falcão (agendado para a Barraca, Lisboa, dia 29, com leituras a três na bela livraria Flâneur, Porto, dia 31 de Março de 2018). Acho que vai haver revelações, tanto mais que será a nossa editora, e poeta, Tatiana Faia a escrutinar o trabalho do Pedro. Chamo-lhe “trabalho” para não repetir palavras (aprendi isso com a minha professora primária, que sufocou a empatia à nascença). Em boa verdade, poderá uma obra ser considerada trabalho? Que diabo de palavra é esta que consegue misturar economia, teologia e fisiologia, acabando, sem o saber, no reino mais conservador da metafísica? Enfim, avancemos: Pedro Braga Falcão, parte dele, quer estar à margem da actualidade, por isso (ou por outra razão, mas aqui calha bem estabelecer essa relação) traduziu as Epístolas e as Odes de Horácio (Cotovia) e um dos seus livros de poesia chama-se Do Princípio. Sei parte disto também porque ele o confessou numa espécie de autobiografia para a Enfermaria, embora a arte do oximoro, que por vezes encanta ouvintes (usa ainda a viola, com a qual ressuscita música antiga, a quem, como é sabido, ninguém resiste), deva acautelar juízos perentórios.

Conheço o Pedro há pouco, ou melhor, encontrei-me com ele duas vezes, numa já tínhamos bebido uns copos (e sem autocensura entra-se no reino do disparate, excepto os bukowskianos), na outra, há poucos dias, estávamos envolvidos por uma multidão de estudantes a satisfazer uma das necessidades mais básicas da Pirâmide de Maslow (comer), contexto pouco propício à visão oblíqua que extrai segredos importantes do parceiro discursivo. Mas enfim, percebi, entre outras coisas, que acha a filosofia moribunda (eu fui atrás, quando devia ter cruzado ferros), o homem mais interessado na esperança de vida do corpo (bons auspícios para antropotécnica) do que em cuidar do espírito e os ritos teológico sem a raridade que lhe confeririam o poder mágico de trazer a transcendência até nós. Portanto, duas conversas e aproveitar o sentido do que vai escrevendo, também para a Enfermaria, ou está nas críticas às suas obras contaminará pouco a minha hermenêutica (uma hermenêutica fenomenológica, perdoe-se o centauro pretensioso). Não do livro inteiro, mas de um poema, um único poema que, sem resumir o sentido, ou sentidos, da totalidade, pode indicar o tom para apanhar o autor pelas costas (o velho sonho de capturar o universal no singular). Modo de dizer, sabe-se (embora poucos acreditem) que os autores são ultrapassados pelas obras, e mesmo estas vão sendo reescritas pelos leitores. Contudo, autorizo (e creio que até facilito) o autor a rir-se desta leitura, devo-lhe isso.

O poema é o 11.º do terceiro capítulo do Livro II:

Como essas crianças aí, estupidamente felizes,
porque não ter a estupidez de uma felicidade,
e comprometer-me ao estilo de mexer os braços?
Ser de uma estupidez intolerável.
E não entender nem um pouco mais do que entendo.

Ser como os que desprezamos, nós,
os que vivem na cabeça e deixam o corpo órfão,
à espera do dia em que lhe dirigimos a palavra,
na doença, na podridão dos nervos,
nos intestinos virados do avesso.
E aquela criança estupidamente infeliz
porque lhe morreu a mãe e não tem ninguém,
que não brinca e baixa os olhos e não nos vê?
Será que nós, os sábios que idolatram a ignorância,
fomos ou queremos ser estúpidos como ela?
Ou a ambivalência das grandes frases e frustrações
nos deixa perplexos perante a nossa estupidez?
Ou de tal modo ociosamente retóricas
as perguntas se desfazem num humor sujo
a que todos nós chamamos o néctar dos deuses.
E ainda assim confessamos que a ciência,
essa deusa macabra, não brinca
como brincam essas estúpidas crianças.

Pedro Braga Falcão evoca aqui a antiquíssima questão sobre a origem, a proveniência da felicidade. Problema que exige um certo grau de sofisticação intelectual, daí que os pobres de espírito (haverá tal coisa?) vivam felizes ou infelizes, enquanto os ricos de espírito (haverá tal coisa?) reflictam sobre como viver feliz ou infeliz (que às vezes declinam nos termos tristeza e melancolia, combinando-os com um cigarro e um copo de vinho tinto reserva). E isto são dois mundos irredutíveis, não há qualquer transvase de sentido entre eles. No primeiro andamento do poema critica o destino por lhe ter recusado a linha de vida das crianças “estupidamente felizes”. Lamento frequentemente ouvido nos eruditos quando se cansam da bibliomania que os aprisiona; mas seria estranho que repentinamente deixassem o corpo visitar lugares afastados das estantes ou mesas de trabalho (regressou a palavra equívoca), reeducar o corpo demora muito tempo, e vá lá saber-se se eles querem verdadeiramente isso. Sobretudo, como diz Pedro Braga Falcão, porque os que “vivem na cabeça” “deixam o corpo órfão”. Mas o idílio da estupidez, entramos no segundo andamento, pode não ser o do intangível Caeiro, antes o de uma criança sem mãe, uma estupidez da miséria e do sofrimento. E claro, a tensão entre a realidade vivida e a realidade fingida só podia criar a ambivalência que reverte o jogo dialéctico inicial, mostrando que os campeões da semântica (com a sua fé absoluta nas palavras) são, afinal, grandes estúpidos (às vezes, poucas, magníficos). E nem a ciência resiste, porque o seu poder fantástico de descrever os diagramas das leis naturais não a dispensa de uma estupidez essencial em relação ao que é propriamente humano, escapa-lhe que nós vivemos com um pé no jogo e outro no cemitério, brincamos e moremos, não de uma só vez, mas em modo gerúndio: vamos brincando e morrendo, e isso escapa à “deusa macabra”.

Portanto: Pedro Braga Falcão, cuja poesia mistura muitas vezes o Antigo Testamento com a paideia de gregos e romanos antigos – epicuristas e estóicos, menos cínicos –, heróis que se deixavam alegremente vencer pelos caprichos do Cosmos (talvez o chaosmos de Joyce), quere-se, antes de mais, lúcido. A sua poesia desnuda os nervos que decidem o movimento das coisas, das ideias e das emoções, e os nervos não mentem, nem lhes interessa a beleza poética, revelam as coisas como são. Neste caso, a estupidez é estúpida e quem a glorifica vive rodeado de dicionários e esqueletos andantes, ou então, como dizia uma personagem célebre, “sofre de fartura”.  

Tadeusz Rożewicz, Trancinha

Tradução de Anna Kuśmierczyk e João Ferrão

Quando raparam
todas as mulheres no transporte
quatro trabalhadores com vassouras
feitas de tílias varreram
e reuniram os cabelos

Por baixo dos vidros lavados
deitam-se os cabelos rígidos dos sufocados
nas câmaras de gás
nesses cabelos há alfinetes
e pentes de ossos

Não os atravessa a luz
não os divide o vento
não lhes toca a palma da mão
ou a chuva ou os lábios

Em enormes arcas
nuvens de cabelos secos
dos sufocados
e uma trancinha cinzenta
um totó com uma fitinha
puxada na escola
por meninos traquinas

– Museu – Auschwitz – 1948

Victor Heringer (1988-2018)

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A notícia mais triste de escrever: Victor Heringer, autor da Enfermaria 6, faleceu ontem no Rio de Janeiro. Entre os principais livros, contam-se Automatógrafo (2011, poesia), vencedor do prémio Jabuti pelo seu primeiro romance, Glória (2012), e um brilhante segundo romance, O Amor dos Homens Avulsos (2016). Victor Heringer era um dos jovens escritores mais talentosos da língua portuguesa. Era também, desde uma idade precoce, um verdadeiro homem de letras. Não temos palavras para a tristeza de assinar esta nota. Foi uma alegria e um privilégio conhecê-lo e editá-lo. Em jeito de homenagem, publicamos aqui, de novo, o seu texto para o nosso Caderno 4. Modos de Escrever, em que Victor Heringer fala da sua oficina e do que significa para ele escrever. Os outros textos que ele publicou na Enfermaria estão disponíveis clickando na etiqueta. Até sempre, Victor!


Sobre escrever, segundo métodos diversos

Victor Heringer*

 

Método rotineiro

Quando perguntado sobre minha rotina de escritor – uma pergunta bastante comum –, respondo com uma ladainha quase sempre restrita aos seguintes tópicos:

(a) não consigo estabelecer horários ou metas empresariais para escrever (5 páginas de 9h às 13h diariamente, por exemplo);
(b) reescrevo muito (quatro, cinco vezes o mesmo livro);
(c) cada livro ou texto demanda um processo diferente (a repetição mata a alegria formal).

Método prescritivo

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Método ecfrástico

Há uma fotografia tirada por Larry Towell em Manágua, capital da Nicarágua, no ano de 1984. Uma mulher, diante de um tanque de lavar roupa, cospe em um papagaio. A foto, em branco e preto, sempre me pareceu uma bela imagem-amuleto para pensar o trabalho do escritor. A boca humana, capaz de certa originalidade quando se empenha, versus o papagaio, um animal ele-mesmo o mecanismo orgânico do clichê. O cuspe, um ato agressivo e repulsivo. Minha hipótese inicial: o artista é o inimigo do clichê, da frase-feita, do previsível. Como escritor-leitor, abomino o previsível, inclusive o imprevisível previsível, isto é, o cálculo canhestro do inesperável.

Mas a legenda da foto de Towell, que só vim a ler anos depois de me deparar com a imagem, explica que era verão escorchante em Manágua. A mulher cospe no papagaio para aliviar o calor do bichano. Trata-se, portanto, de um ato de carinho. Minha hipótese matizada: o artista é inimigo, mas também amante do clichê. Sob perigo de se tornar incompreensível – oposto absoluto do chavão –, deve-se achegar ao lugar-comum (não só no sentido de trivialidade, mas também no de comunidade) e refrescá-lo.

Nessa dança, no jogo de distâncias, cada autor tem seu estilo.

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Método fisiológico

Nasceu-me um calombo no dorso do punho, por muito digitar e usar o mouse. Isso a literatura me deu. Horas de trabalho solitário prejudicaram o refinamento social. O ciclo de sono é uma bagunça. O regime alimentar depende do dinheiro, que não vem constante. Ganhei duas hérnias de disco, causadas pela alternância entre sedentarismo prolongado e ímpetos de atividade física intensa (subir montanhas, correr maratonas, mudar de cidades). As viagens, contraparte geográfica da busca formal, me gastaram as pernas e as raízes. E como diz Pablo Neruda naquele filme, enquanto abocanha uma cebola, os escritores são barrigudos, muito melhor é ser carteiro. 

Método Harold Bloom

Machado de Assis e Manuel Bandeira são meus dois pais. As obras me influenciam como autor, mas sobretudo ajudaram a forjar minha identidade, que aos poucos (esta é a esperança do ficcionista) vai se diluindo nos meus próprios livros, até que eu possa ser ninguém em paz.

Machado me deu os olhos, Bandeira me deu o coração.

A linhagem machadiana não é difícil de acompanhar: Laurence Sterne, Luciano de Samósata, Cervantes, Schlegel, Unamuno, os irônicos. Já a virtude de Bandeira é a ternura, e essa aprendizagem é feita corpo a corpo.

Dorival Caymmi me deu a utopia praieira.

Georges Perec e Donald Barthelme me deram o senso de alegria formal. Valêncio Xavier, Wlademir Dias-Pino, os concretistas brasileiros, Letícia Parente, W.G. Sebald e Arthur Bispo do Rosário me ensinaram a ser um escritor promíscuo. Toda linguagem me interessa. A fotografia, o cinema, o desenho, a música, a performance, todas as práticas e códigos contaminam o trabalho.

Lydia Davis, Cesar Aira, Beatriz Sarlo, Kawabata, Octavio Paz, Cioran, Gombrowicz, Tabucchi, Marília Garcia, Eduardo Coutinho, Calvino, Paul Salopek, Gaudí, Violeta Parra, Murilo Mendes, Hilda Hilst, Nelson Cavaquinho, Travadinha, Leonardo Fróes, Francesca Woodman, Lucian Freud, Vivian Maier, Malevich, Benjamin, Nanni Moretti, Guignard, Chris Marker, Cartola, Orson Welles, Kobayashi Kiyochika, Pedro Cornas, o Quinteto Armorial µ

Método aforístico-ontológico

(1) A escrita é um processo de incorporação, como um transe mediúnico[1] ralentado no longo dos anos.

(2) Mais do que se tornar ninguém, escrever é se tornar qualquer um. Para o escritor, não há a confortável ilusão da identidade, só as ansiedades das mil personalidades.

(3) A ficção – o conceito, seus tentáculos – domina tudo, a ponto de despertar a patética vontade de me transformar em obra de arte.

Método apocalíptico

O fim está próximo. Sempre esteve.

Foi sempre contra a morte que cantamos.

Só o fim nos une.  

Um minimanifesto — Salvar tudo, lembrar tudo o que fizemos. A arte no Antropoceno é o domínio público. Amar as digitais engorduradas que deixamos nos objetos, todos os fonemas, todos os ritmos, todos os amarelos no papel-jornal, todos os álbuns de família miúda. Tudo o que foi nosso nos interessa. Amar: renovar significado. É uma tarefa impossível, falta tempo para tanto: aí reside a nossa tragédia.

Contra o varejão das almas, do coração e da cabeça!

Método alegre

A uma ex-namorada com quem planejava passar o restante da vida, disse: quando eu morrer, se alguém perguntar, diga que eu era alegre escrevendo. Sou feliz escrevendo, assim como só sou feliz em viagem, em trânsito. Deslocável. A alegria de encontrar um novo modo de dizer, um novo processo textual ou um novo personagem é a mesma de descobrir uma mesquita num beco impronunciável, um amigo de albergue ou uma trilha de montanha onde torcer o tornozelo.

Eu tinha certeza de que morreria antes dela.

Estamos vivos.


* Victor Heringer nasceu no Rio de Janeiro em 1988. Prosador, poeta e ensaísta, publicou os romances O amor dos homens avulsos e Glória (prêmio Jabuti 2013), além do volume de poemas automatógrafo. Escreve crônicas regularmente para a revista Pessoa.

[1] Para uma reflexão mais detida sobre a relação escrita/incorporação/corpo/transe, no contexto dos ritos mediúnicos, v. entrevista dada ao Caderno de Ideias do Instituto Cultural Freud, do Rio de Janeiro:

CADERNO | Você considera que uma relação com o seu corpo real também se cria a partir daí, no sentido de uma transformação perceptiva? 

Victor Heringer | Sim, vou dar um exemplo ligado ao transe mediúnico, que se relaciona, para mim, com a incorporação de que falei acima. O gestual característico dos pretos velhos é bem conhecido: as costas encurvadas, os movimentos lentos, os passos arrastados e a voz quebradiça não são exatamente "atuados", no sentido cabotino de fingimento. O cavalo, que baixa a entidade, sente o peso nas costas, a dificuldade no andar e as cordas vocais deterioradas – embora, num fiapinho de consciência, saiba que não é assim. Isso ocorre com certos atores, eu imagino. E também se dá com alguns escritores, na fala, nos atalhos mentais e às vezes até mesmo na dimensão mais imediata do corpo.

(A entrevista completa está disponível on-line: http://bit.ly/2gJioLu)