Novos possíveis

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I

O sobre-homem (Übermensch) nietzscheano passava-se do sentido, a sua condição de outro homem, mais do que de super-homem, permitia-lhe viver intensamente sem carecer de qualquer sentido pré-estabelecido. E mesmo ele, demiúrgico, apenas introduzia um pequeníssimo grau de sentido no decurso das suas acções. Tudo isto para favorecer a novidade, a inventividade e, com isso, curto-circuitar os velhos valores provenientes da cultura cristo-platónica, causa primeira da desnaturalização do homem, do amor tóxico pelo Transcendente e da imposição de uma moral para escravos.

Diferentemente (talvez pudesse dizer “pelo contrário”), Gilles Deleuze e Félix Guattari, lendo, em nostalgia, o Maio 68, escreveram que ele prometeu novos possíveis, daí a palavra de ordem que se lhe podia aplicar: “Algum possível, senão sufoco” (Du possible, sinon j’étouffe – Deux regimes de fous. Texte et entretiens 1975-1995).

Sinto uma certa perplexidade por ver dois comentadores enamorados de Nietzsche enquadrarem a revolução dos estudantes franceses numa frase que, creio, o deixaria triste (Nietzsche teria preferido: “Algum impossível, senão sufoco”). Mas bem, foi um grito pronunciado “à bout de souffle” (em desespero de causa), um grito filosófico e antí-filosófico, político sobretudo, escolhido talvez depois de uma noite de copos (que Nietzsche detestava). Era preciso irrigar com palavras a vontade, às vezes cega, de mudança. E o futuro parecia estar cheio, quase pletoricamente, de possíveis, enquanto o presente entrava num impasse (político, com o velho Charles de Gaulle, espartano, a censurar os ventos da mudança; social, resistência aos novos hedonismos febris e consumismo desenfreado, mas também o desejo de liberdade sem porquê; e filosófico, a velha escolástica continuava a ocupar os principais lugares dos templos do saber (universidades e “grandes écoles”), onde mais do que a verdade ou o questionamento crítico, contam os privilégios do prestígio social e da segurança económica.

Bem, se podemos separar o sem-sentido nietzscheano da vontade sôfrega de possível de Deleuze/Guattari, podemos, simultaneamente, aproximá-los porque eles foram comunicados como gritos, sinais de afirmação de vida por vir, e assinalam a ferros quentes a crítica aos seus presentes, a forma como julgavam intolerável viver no seu tempo.

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II

E hoje? A crise global que atravessa o social e o ambiental, com ramificações, claro, no político e geopolítico, lança um manto de chumbo sobre o presente, que, ao contrário das crises do século passado, parece não poder apontar a alternativa de futuros luminosos, pelo menos facilmente. E esta talvez seja a grande diferença em relação à crença entusiasta no futuro que quase sempre percorreu a história da humanidade (mesmo nas escatologias invertidas da Grécia antiga e clássica, onde a Idade de Ouro ficava no passado). Estamos, pois, encurralados numa crise aparentemente sem fim e pressionados pela urgência climática.

Porém, porque temos um mecanismo qualquer que impede o suicídio generalizado, agarramo-nos a alguns sinais de mudança, antevemos pela frincha da história alterações ao statu quo, que basicamente se consolidou em torno do consumo e do prazer (muitas vezes misturando-os). Novos possíveis parecem querer emergir, feitos não da força da imaginação, como no Maio 68 (L’imagination au pouvoir, dizia-se), mas de outras racionalidades, menos centradas nas competências e apetites individuais e numa produtividade predadora. Há uma vontade tangível, embora frágil, volátil, de vidas mais frugais, ambiental, social e psicologicamente mais sustentáveis.

Recorrendo a alguns estudos realizados ultimamente em França e a dados de L’Observatoire société et consommation, tomando por razoavelmente credível a informação que recolho das interacções quotidianas, acreditando que o que sinto corresponde a qualquer coisa de relativamente comum, e, claro, colocando nisto tudo um pouco de fé, deixem-me expor algumas linhas de novos possíveis, aceitando, e até querendo, como Nietzsche, o sem-sentido da actualidade.

Parece que nos últimos 10 anos cresceu muito a ideia de consumir mais responsavelmente, com mais sentido, ganhou-se consciência de que a maneira de fabricar o que comemos, vestimos ou utilizamos tem um impacto no meio ambiente e na qualidade de vida dos trabalhadores produtores. Há cada vez mais pessoas a exigir, de si e dos outros, comportamentos eco e sócio-responsáveis. Desenvolve-se a frugalidade escolhida (mesmo se a luta pelos aumentos salariais se motiva bastante na vontade de consumir mais), comprando pouco e preferencialmente produtos locais, em segunda mão, prolongando a vida útil do que já se possui (veja-se a moda do retro). Parece emergir uma nova cultura material (substituta dos “trinta gloriosos anos de consumo” pós-Guerra), elogia-se a abstinência em vez da acumulação, a temperança, a reparação, a partilha. Prefere-se o tempo livre ou o lazer em vez da ostentação de objectos e estilos de vida caros (financeira e ambientalmente). Escolhem-se empregos menos cronófagos, ainda que pior remunerados. A economia colaborativa está na moda. Consumir menos começa a ser sinónimo de “consumir melhor”. Seduz-nos o minimalismo (less is more), a parcimónia. Retornamos a alguns princípios franciscanos: livrar-se do material para potenciar o espiritual e criar uma harmonia com a natureza.

É verdade que nesta redução ao essencial emergem novos sinais de distinção social. Já não se trata do carro “bomba”, das jóias, das roupas de marca, da mansão grande e kitsch... mas continua a haver hierarquia, pela erudição, as experiências culturais exclusivas, as férias exóticas, o tempo livre... Enfim, retira-se sentido de um lado e coloca-se noutro. Porém, parece-me preferível, por exemplo, a bazófia presente no uso correctíssimo da língua portuguesa ou numa erudição cinematográfica à la Cinemateca de Lisboa, do que a de um carro espampanante. Agridem-se menos os ecossistemas e os parceiros sociais desafortunados, ou pouco performativos.

 

não estavas lá

o chris brown bateu na rihanna
e eu não estava lá
só cheguei mais tarde quando ela
já estava pisada
na capa de uma revista qualquer.
a rita abortou sozinha
numa sala onde a fizeram dizer
como quando onde
porque é que deixaste
sua puta, onde está o teu namorado
agora? onde está a tua libido
agora? e eu só cheguei
sete anos mais tarde
para lhe dizer que lamento toda a solidão.
a maria casou-se com um dependente
químico para poder deixar de ser
emigrante ilegal viu-o enfiar opióides
pelo cu acima e coca narinas abaixo
anos mais tarde ficou pior
para além de cheirar ele votou no AfD,
a maria teve medo quando
ele levantou a voz então saiu
e foi para a estação de camioneta
já fazia neve e alguns graus negativos,
acho que ela teve frio. só cheguei
uma semana depois
para lhe dizer que ela não devia
ter de passar frio
em noites como aquela
o comunista de há muitos anos
quis bater em mim mas
em vez disso optou por
esmurrar a parede
de certa forma fiquei agradecida
sou péssima a mentir
ou a espalhar maquilhagem
pior ainda a explicar sem modéstia que
consigo deixar um homem louco
mesmo que isso signifique um punho
a dois centímetros do meu rosto
e por isso mesmo achei que
não seria urgente - só cheguei muito mais tarde
para me dizer que lamento que ainda
sei como se entranha na garganta
o som seco de um punho na parede
e ainda gosto de pensar que não era eu ali
quando o pequeno chris brown de trazer na algibeira
se masturba avidamente com a mesma capa de revista
enquanto me sopra ao ouvido:
não estavas lá.

Seis Juncos


1.

Na relva o gato
descansa
os anos futuros.

Embalado pelo vento
balança vazio
o baloiço enferrujado.

Dois garotos
na água - 
eu nenhum.

Um mosquito
pica-me - 
obrigado amigo.

Esta mesa onde escrevo
tive-a já
em sonhos.

Logo a água esquece
os barcos
que passaram.

Nunca me deixou ficar
a água que
pelo corpo passou.

Tanta carne
familiar
onde não entrei.

Uma mesa à janela
virada para o mar - 
um tesouro.

Este céu que vejo
o mesmo 
onde adormecemos longe.

Quase se revela
a Lua
e já seca o esperma.

A pequena bandeira
tão estrangeira
como as outras.

Indiferentes os mosquitos
voam por entre
as gotas de chuva.

Tantas voltas
para se acabar
na mesma escuridão.

Kaskinen, Agosto 2018

2.

A caminho da montanha
sempre 
o verde.

Não esperes a borboleta
enquanto a vaca
pasta.

Pela estrada fora
sempre
enquanto há pernas.

Ignorando as nuvens
as vacas
pastam.

Desconhecendo distâncias
o abraço eterno
das montanhas.

Debaixo da macieira
a sombra vazia
espera.

Sob a macieira
espera
a sombra.

Cheira a estrume - 
primeira
felicidade.

Cheira a estrume
a infância
tão verde.

Música de incontáveis
chocalhos
na montanha.

Mil aldeias
pequeninas - 
tocam os sinos.

Que jovem
a eternidade
dos homens.

No pequeno ribeiro
corre a vida
toda.

Esta partida
para lado nenhum -
vida.

Sem a memória
dos olhos
as pedras mudas.

Suíça, Agosto 2018

3.

O mar apaga
os corações
desenhados na areia.

Escritas na areia
as promessas de amor
que o mar apaga.

O azul que não coube
nos teus olhos - 
o mar.

Quando pequeno
as cidades
como as ondas.

Grão de areia
um aborrecimento
como o tempo.

Este grão de areia
toda a minha
vida.

Numa mão cheia
de areia
toda a humanidade.

Também o pôr do sol
um punhado
de areia.

Moledo/Vila Praia de Âncora, Agosto 2018

4.

Voam as libélulas
a hipocrisia
afoga-se no vinho.

Nesta casa pequena
podia haver
mais um copo.

Sempre difícil partir
quando se chega
tão pouco.

Não tentes apagar
o que não podes
esquecer.

O poeta escreve
na máquina - 
estão a fazer pipocas.

Canta um galo
e regresso
verdadeiramente.

Ainda os lagares
tão vazios
e as moscas desesperadas.

Ao Sol da manhã
não precisa de açúcar
o café.

O deslumbramento 
dos tolos 
fascina-me.

Quem cortará
o presunto - 
vespa no dedo.

Aberta a melancia
sobre a mesa - 
quem a esqueceu?

Longe, tudo
sempre - 
a vontade.

Pastam as mulas
o Sol
que a terra guarda.

Tantas portas
se abriram 
pela fome.

Enquanto parto
três juncos
o rio passa.

A vespa pica
até as mãos
mais inocentes.

Em frente ao rio
de joelhos
nasce um haiku.

Passa o rio
com ele
nós também.

Quantas vezes
só o exosqueleto
parte.

Cidões, Agosto 2018

5.

Só a fome
não esquece
os amigos.

Sempre do mesmo tamanho
aos olhos
de uma mãe.

Cantam os grilos - 
quantos anos
perdidos.

Noite de Lua Cheia -
tudo o perdido
o que somos.

Houvesse silêncio
para escutar
os grilos.

Basta o luar
para iluminar
este caminho.

Não temas
o esquecimento
pouca a máquina.

Não percas tempo
comigo - 
ouve os grilos.

Nos grilos
a voz
da eternidade.

Sê constante
como o luar
e os grilos.

No canto dum grilo
não cabe
o orgulho.

Resiste-se a tudo
menos
à má vontade.

Chove sobre
a terra quente -
renascer.

Cai a chuva
sobre a terra quente -
pescoço de mulher.

A tua pele dourada
gotas de chuva
sobre terra quente.

Na língua a tua pele
dourada -
chuva de verão.

Mijar à chuva
acrescentar nada
ao resto.

No rumor da brisa
nos pinheiros
a infância ainda.

Alguém racha lenha
na canícula - 
inverno tão longe.

A minha fé
pelas rochas
toscas.

Na pedra intocada
pelo homem
a minha devoção.

Torre de Dona Chama, Agosto 2018

6.

Que familiar cheiro
o daquele corpo
estranho.

Mais um ano
acabado - 
fim de verão

Turku, Agosto 2018

Biblioteca

“It took me a really long time to realize that

art is actually a process of removing anxiety”

Jeff Koons

Ninguém tem culpa
ouvi ao passar pelo corredor.
As duas falavam mal de alguém
mas não sabia quem.
(falar mal aqui sempre foi natural
mistura de alguma razão com frustração). Entrei.
Demorei a escolher o livro
ia da parede da pintura
à parede da poesia sem me decidir.
Demorei sim demorei
mas lá escolhi o livro certo. 

Já está? Vai demorar muito mais?
Tem de se despachar!
E na cabeça de quem dizia isto
vinham as imagens prensadas de pressões diárias
e os momentos de humilhação
sair às 8h em vez das 7h
ouvir o evento R, T, S, X, Y sem interesse
aturar a birra de um ou outro luminoso astro
que por ali passasse com muita pressa.
Sou ia dizendo para os seus asseados botões
uma lutadora Luto todos os dias por esta
cadeira que é minha.
Tenho de afastar estas tipas pois ninguém
me roubará o lugar
o meu ganha pão de boa secretária
obediente
(um girassol murcho)
A escrava segundo alguns
A passiva-agressiva segundo outros. 

Compreendi o Ninguém tem culpa
 a culpa daquela eterna irritação. E esse raio
permitiu-me entre o já está e o
despachar
conter a minha língua de loira agressiva
antes de disparar em flecha alguma
palavra afiada
e ser outra vez uma mera mal educada.

 Sim todos temos culpa
culpa dessa exploração
culpa por só pensarmos no livro
antes de te dizermos Bom dia
de irmos a correr na busca incessante
(que não levará a nada)
do paladar do saber poético
e negarmos-te
provavelmente
a mais uma pausa merecida
em silêncio
num dia esgotante
a arrumar livros cheios de pó
entre a tua insatisfação e a tua rinite alérgica.


Barbara Stronger
23.02.19

Jac Leiner - Hip-Hop book, 1999-2000..jpg

Jac Leiner - “Hip-Hop book”, 1999-2000.