a primeira urina da manhã

instruções:
recolha a primeira urina da manhã,
desperdiçando a primeira e última
parte do julgamento ordinário.
urine directamente na opinião pública,
procurando que esta nunca toque
nos valores ou na moral.
se é violador, recolha-se discretamente,
haverá provas na pele da glande (prepúcio)
e se é mulher, separe os conceitos “corpo” e “liberdade”.
de praxe, uma coleta após período
de duas a quatro horas
sem uma mulher violada
numa cidade de 214.587 habitantes
não é suficiente
para obter uma amostra significativa.

L,o,r,e,a,l,P,o,r,q,u,e,E,u,M,e,r,e,ç,o,!

 

“Este é o espaço em que deveria colar
  um verso de um grande poeta, certo?
Um de um homem de barba rija para
me levarem a sério, certo?”

                          - Barbara Stronger


Mereço sim! E,u,P,o,s,s,o,T,u,d,o,!. Sob
retudo por ter de aturar o idiota x e y
das 10h às 15h sem respirar. Mereço
porque estou farta de fritos e de copos
amassados com dedos gordurosos.
Depois de muito secar o cabelo e
de esticá-lo na prancha elétrica
,,,,,,,,,,,
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  ,,,,,,,,,
   ,,,,,,,,
   ,,,,,,,
  ,,,,,,
xxx
 ,,,,,
   ,,,, O meu rabo de cavalo fica pronto. 

Pronto para fazer ricochete na cara
de mais algum imbecil que me possa
aparecer pela frente a pedir-me o
número de telemóvel! Não se vê
que sou Lésbica? God sake! E

nisto vem o poeta da esquina dize
r-me que isso de piadas não é belo!
Mas quem foi que disse que eu pro
curo a beleza? Essa gente é cansativa!
Sempre preferi um enorme nariz de
Honoré Daumier a um rabo de David.

Barbara Stronger


Captura de Ecrã (9175).png

Honoré Daumier - “Vista de um atelier”, 1855.


Baby shoes

For sale: baby shoes, never worn.

Ernest Hemingway

Durante a gestação do primeiro neto, o avô fez mais de uma dezena de sapatos minúsculos, ignorando a opinião desmotivadora da filha. «São bonitos e inúteis. Os bebés não andam. Para quê tantos sapatos?» Não respondia. Limitava-se a sorrir, olhando com orgulho para os sapatinhos de pele com atacadores, em várias cores, alinhados na prateleira da oficina onde gastara praticamente a vida toda a fazer sapatos para pés adultos. Agora que se reformara, e prestes a ser avô, finalmente podia fazer o que mais queria — sapatos de bebé. Pequenas obras de vestuário belas e inúteis; peças talhadas com tempo, pormenor e rigor. O nome do menino, cravado nas solas com caligrafia fina, conferia-lhes algo de joalharia — Ernest. Sou eu. O avô morreu no dia em que eu nasci, horas antes, e não pôde ver-me de sapatos calçados. Eu também não tenho memória de os ter usado, só o registo nas fotografias é que o comprova. Durante anos guardei-os na esperança de um dia ser pai e de voltarem a ter uso. Estão novos. Acho que só mos calçaram para as fotografias. A minha mãe, nunca entendi porquê, ridicularizava o trabalho do avô. «Um disparate. A trabalheira que teve a fazer sapatos para quem não anda.» A mãe morreu antes do meu acidente e não pôde perceber que os sapatos são importantes, mesmo para quem não anda. É claro que, desde que deixei de caminhar, não lhes gasto as solas. Mas nem por isso deixei de gostar de sapatos, quando são bem feitos. Lá porque sou aleijado continuo a ter direito a usá-los. Por isso, desde que capotei dentro do carro e deixei de conseguir dar-lhes uso no chão, continuei a comprá-los. Tenho uma grande coleção. Vale bastante dinheiro porque, lá está, tal como os sapatos que o avô me fez, estão novos. Mas ultimamente deixei de os comprar. Estou a juntar dinheiro para fazer uma grande aquisição. Mesmo no mercado negro as armas são caras. A pensão de invalidez é insuficiente. Ainda falta muito até ter o bastante e estou ansioso.

Então lembrei-me de vender a coleção de sapatos. A de bebé e a de adulto. Vou despachar tudo. Para onde irei posso ir descalço, embora, verdade seja dita, me custe. Os pés cobertos sempre dão alguma dignidade ao morto. Por isso, venderei todos os sapatos exceto um par. Chega bem.

Vou colocar um anúncio.

Vendem-se. Sapatos de bebé e de paraplégico. Como novos.

Vox propria (Phantasia a seis)

Phantasias commigo mas não tens seis

não tens seis que excappam à vez e nem se

nem se o Thamisa fosse outra torre seriam septe

por isso aspiras e manténs-te devagar trauliteira

que à frente sempre se dorme melhor e respiras

não que respirasse fosse melhor commigo na altura

descaías sempre que phantasiavas e desferias

círculos no ar não que houvesse rios nem pedras

tudo o que atirávamos aos círculos rodava

não porque não tivessem geometrias apenas

apenas o sabíamos apanhar quando tocavam

no chão no chão lembras-te de lá estarmos

do outro lado da terra do lado das libações

de sentirmos na pelle o phantasma dos outros

dos mortais dos cadáveres dos prontos

a virem ter connosco não que os esperássemos

não que isto não que aquillo não somos deuses

ou melhor não és deusa nenhuma phantasias

como sempre fizeste mas só quando se põe o sol

que antes estás dentro das trevas engolliste as trevas

e tens aquele ar de quem já passou por isto

quando phantasio contigo já não tens seios

vives na tua cabeça que não tem phantasmas

escorre ao longo do rio com ar de ribeiro

mas quando tens sede phantasias commigo e eu

do outro lado da ilha ignoro-te como sempre

como sempre fiz desde criança quando soube

que estavas phantasiosa phantasma phantástica

como quando as florestas não ardem ou divagam

como fraccas estudantes de aenigmas e reclamas

reclamas agora pelos seis pelas seis phantasias

e pelo pobre Thamisa que te tropeçou te escandalizou

com os seus cemitérios mas lembra-te dos milhões

que nunca se enterraram não que os não amassem

mas porque morreram ao sol e à chuva

e mesmo assim talvez nunca tivessem phantasiado

commigo que os abriguei da chuva milhões de annos

milhões de annos depois nos meus versos mas tu

tu já não phantasias commigo caíste na noite

que eu formei nos teus lábios mesmo que os não

que os não pintasses com a mesma phantasia dos teus olhos

e ainda assim quase pathético quase moderno

deixei que a minha letra pousasse em ti

e deixei que me deixasses um nome o meu

e que me phantasiasses como só tu na névoa

poderias dizer acerca deste infinito.

 

(Orlando Gibbons, Fantazia in G minor a 6 (32), L’Achéron)

Cláudia Lucas Chéu: Autora convidada de Maio

vitorino coragem.jpg

Cláudia Lucas Chéu

Portugal (1978)

 Poeta, dramaturga e argumentista. Frequentou o curso de Línguas e Literaturas Modernas (FCSH) e concluiu o curso de Formação de Atores (ESTC). Tem publicados os textos para cena Poltrona – monólogo para uma mulherGlória ou como Penélope Morreu de TédioEuropa, Ich Liebe DichViolência – fetiche do homem bomCírculo Onanista; Bank, Bank, You´re Dead, pelas edições Bicho-do-Mato/Teatro Nacional D. Maria II; A Cabeça Muda, pela Cama de Gato Edições; Veneno (Coleção Curtas da Nova Dramaturgia — Memória), Edições Guilhotina, 2015. Em prosa poética, publicou o livro Nojo (2014), (não) edições. E em poesia, o livro Trespasse, Edições Guilhotina, 2014; Pornographia (poesia), Editora Labirinto, 2016. Em 2017, foi publicado o seu livro Ratazanas (poesia), pela Selo Demónio Negro, em S. Paulo (Brasil). Publicou, em 2018, o seu primeiro romance Aqueles Que Vão Morrer, Editora Labirinto; e Beber Pela Garrafa (poesia), pela Companhia das Ilhas, em 2018. Lecionou Escrita e Dramaturgia na Escola Superior de Educação de Lisboa. Frequenta atualmente o mestrado em Filosofia (Estética), na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.