Tonturas

são aquelas tonturas
de um desejo inconsequente
fulcros de confiança
na montra de um oculista
que caminha num raio de luz
borboletas de medo
pacifistas
voltejam
no estômago inquieto
de um rapaz de oito anos

poema da minha infância
a colheita de um ano estéril
escolhido por um pintassilgo
árvore de galhos cheios
que roubou as promessas
de jasmins brotados
num dia funesto

quem refresca o meu copo
sozinho
no bar do aeroporto
ó pintassilgo
onde a noite se cruza
nas linhas de rabiscos ilegíveis
potencial sangrento
que escorre
para fora do caderno preto

DOIS POEMAS DE ROBERTO BOLAÑO TRADUZIDOS POR FREDERICO KLUMB (2/2)

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Em algum lugar seco e enorme, 1949

Você e eu vestidos confortavelmente observando a linha reta
do horizonte enquanto no céu as nuvens correm como no filme
que às vezes você sonha em fazer Você e eu sem filhos observando
a linha reta entre dois tons de amarelo que antes eram
uma só massa amarela e que nunca saberemos em que diabos
se converterão (nem nos importa!) Você e eu em uma casa alugada
sentados junto à janela a verdade você diz é que eu poderia
chorar por toda a tarde a verdade é que não tenho fome e sim
um pouco de medo me embebedando outra vez nós dois sentados
junto à janela reta – ou não? – enquanto às nossas costas
os pássaros saltam de galho em galho e a luz da cozinha
cintila Você e eu em uma cama – lá estamos! – observando
as paredes brancas – dois perfis que se continuam – ajudados
pela luz da rua e pela luz dos nossos corações frios que se negam a morrer


O burro

 Às vezes sonho que Mario Santiago
Vem me buscar com a sua motocileta preta.
E deixamos a cidade para trás e à medida
Que as luzes vão desaparecendo
Mario Santiago me diz que se trata
De uma moto roubada, a última motocicleta
Roubada para viajar pelas pobres terras
Do norte, em direção ao Texas,
Perseguindo um sonho inominável,
Inclassificável, o sonho da nossa juventude,
Isto é, o sonho mais valente entre todos
Os nossos sonhos. E assim sendo
Como negar-me a montar a veloz moto negra
Do norte e sair cortando aqueles caminhos
Antes percorridos pelos santos do México,
Os poetas mendicantes do México,
As sanguessugas taciturnas de Tepito
Ou da Colonia Guerrero, todos por um mesmo caminho,
Onde os tempos se confundem e mesclam:
Verbais e físicos, no ontem e na afasia. 

E às vezes sonho que Mario Santiago
Vem me buscar, ou que é um poeta sem rosto,
Uma cabeça sem olhos nem boca nem nariz,
Somente pele e desejo, e eu, sem perguntar nada,
Subo na moto e partimos
Pelos caminhos do norte, a cabeça e eu,
Estranhos tripulantes de uma rota
Miserável, caminhos embaçados pela poeira e pela chuva,
Terra de moscas e lagartos, arbustos ressecados
E tempestades de areia, o único teatro concebível
Para a nossa poesia. 
E às vezes sonho que o caminho
Que a nossa moto ou o nosso desejo percorre
Não começa no meu sonho mas sim no sonho
De outros: os inocentes, os bem-aventurados,
Os mansos, os que para a nossa desgraça
Já não estão aqui. E assim Mario Santiago e eu
Saímos da Cidade do México que é ela mesma o prolongamento
De tantos sonhos, a materialização de tantos
Pesadelos, e retraçamos os estados
Sempre até o norte, sempre pelo caminho
Dos coiotes, e nossa moto então
É da cor da noite. Nossa moto
É um burro negro que viaja sem pressa
Pelas terras da curiosidade. Um burro negro
Que se desloca pela humanidade e a geometria
Dessas pobres paisagens desoladas.
E a risada de Mario ou da cabeça
Saúda os fantasmas da nossa juventude,
O sonho inominável e inútil
Da valentia.

E às vezes creio ver uma motocicleta preta
Como um buraco negro afastando-se pelas estradas
De terra de Zacatecas e Coahuila, nos limites
Do sonho, e sem compreender
Seu sentido, seu significado último,
Compreendo entretanto sua música:
Uma alegre canção de despedida. 

E talvez sejam os gestos de coragem que
Nos dizem adeus, sem ressentimento ou amargura,
Em paz em sua gratuidade absoluta e com nós mesmos.
São os pequenos desafios inúteis – ou que os anos
E o hábito nos fizeram acreditar inúteis – aqueles que nos saúdam,
Que fazem sinais enigmáticos com as mãos,
No meio da noite, na beira de uma estrada,
Como nossos filhos queridos e abandonados,
Criados orfãos nestes desertos calcáreos,
Como o esplendor que um dia passou por nós
E de que haviamos esquecido.

E às vezes sonho que Mario chega
Com a sua motocicleta negra no meio do pesadelo
E partimos rumo ao norte,
Rumo aos povoados fantasmas onde moram
Os lagartos e as moscas.
E enquanto o sonho me transporta
De um continente a outro
Através de uma ducha de estrelas frias e indolores,
Vejo a motocicleta negra, como um burro de outro planeta,
Dividindo em dois as terras de Coahuila.
Um burro de outro planeta
Que é o anseio desesperado de nossa ignorância
E de nossa coragem. 

Uma coragem inominável e inútil, é certo,
Mas redescoberta nas margens
Do sonho mais remoto,
Nas divisórias do sonho final,
Na trilha confusa e magnética
Dos burros e dos poetas.

 

Frederico Klumb é um escritor, poeta e cineasta brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, em 1990. Cursou Cinema na PUC-RJ e publicou poemas e contos em revistas especializadas, nacionais e estrangeiras, a exemplo de Modo de Usar & Co, Continente, Escamandro, Garupa, Dusie e Incomunidade.

Em 2016, publicou o volume Almanaque Rebolado (Azougue / Cozinha experimental / Edições Garupa), um guia artístico-pedagógico para criação poética, escrito a vinte mãos e fruto de residência no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica (CMAHO).

Em 2017 a plaquete Arena (coleção megamini / 7letras), além do curta-metragem Agharta, exibido em festivais nacionais e internacionais de cinema, a exemplo do Festival Internacional de Curta-metragens de Hamburgo.

Participou de antologias como Golpe: manifesto (Nosotros editorial) e da exposição Rejuvenesça: Poesia Expandida Hoje.

Em 2018 publicou máquinas mancas da manhã (pela Edições Garupa), além de diversos vídeo-poemas, que podem ser vistos em sua página pessoal no vimeo.

Em 2019 publicou Bichos contra a vontade, também pela carioca 7letras.

O Porto de Naxos

Podíamos ter atravessado a terra
sem nos conhecermos nunca
Erguido uma casa
aberto um filho, um sopro
que levantasse como o milho
e atravessasse a cintura
de um rio para as nossas mãos 

Ter pousado o corpo exausto
como nas cordas respiram as aves
a roupa batida ao sol, a criança
que atravessa o centro do pai fugido 

Podíamos ter aberto sulcos e
sobre a terra tirado do fundo de nós
uma luz que nos seguisse
e diariamente recomeçado a tristeza 

A lição

Criada: E ainda por cima eu avisei-o, ainda há pouco!
A Aritmética leva à Filologia, e a Filologia leva ao Crime…

Eugène Ionesco, A Lição

 

há esta textura horrível
que não leva
a lado nenhum
não sei a língua
neo-Espanhol talvez
ou Oriental
mas parece
ferrugem na garganta
rrrr rrrr rrrr rrrr
arranha
quando se tenta achar
a palavra certa
e a meio da lição
o professor
fica sem palavras
não que o discurso
tivesse terminado
foi como se alguém
tivesse fechado a torneira
e ele ficou à espera
forçando
uma outra identidade
a revelar-se
o deus
que sussurra nas paredes
que inspeciona
as actividades no quarto
pelo buraco da fechadura
o que acode
ao desespero
de logocratas homicidas
retomando a lição
no ponto
que o olvido
a tinha deixado

e quando a mola
da faca imaginária
rangeu
e a aluna caiu no chão
não foram as paredes
que falaram
não Sr. Leitor
foi a morta
inerte no chão
que sussurrou
a fala em falta

e o público riu

pense nisso
Sr. Leitor
pense nisso
com cuidado

Essi

 

 

inspirado no poema "Lisa" de Roberto Bolaño, 

 

 

Mal acabamos de foder, disse-me que tinha estado com outro 
Havia dois dias, um gajo que conheço, já o tínhamos feito antes, 
Só te digo porque não quero que haja dúvidas, 
Não éramos namorados, mas tínhamos fodido 
Nas últimas semanas, saído juntos e quase feito amor, 
Naquela noite saí da cama e fui deitar-me no sofá do outro lado 
Do quarto, ela perguntou se eu queria que se fosse embora 
E eu disse que não, às tantas ela atravessa a escuridão 
E deita-se ao meu lado envolvendo-me num abraço, 
Como se me amasse, não percebi que dúvidas ela queria esclarecer, 
Eu virado para a parede, entre o desejo e o ódio,  
Sem saber por qual me deixar dominar, apenas com uma certeza, 
Que nada magoa mais que a honestidade crua do que amamos.  

 

Turku 

 

08.08.2019