A Noite

Marc Chagall, 'Maries au village' (Opera Gallery)

Marc Chagall, 'Maries au village' (Opera Gallery)


A noite escondeu o meu corpo
a minha mão sobre o teu peito
o teu nome na minha boca

A noite escondeu os meus ossos
o movimento
exacto das nossas coxas
apagou a nossa rota, a travessia
o catálogo das nossas naus

A noite fez de nós um caminho escuro
um poço sem ecos e sem baldes

Mas foi tarde, sobre a nossa carne
abria-se uma flor insondável
e o amor estava já cumprido

O lançamento do "Porque canta um pequeno coração", de José Pedro Moreira, é amanhã!

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lançamento de PORQUE CANTA UM PEQUENO CORAÇÃO, livro de poesia de José Pedro Moreira, com capa/desenhos de André Ruivo
///// Apresentação por Elisabete Marques
///// Leitura de poemas por Tatiana Faia e Victor Gonçalves

Resistência Lisboa, Calçada Marquês de Abrantes, nº 82, Lisboa
//////////////////////// Dia 5 de Outubro às 18:30h


as fontes pulsam
como se tivesses levado
uma pancada na cabeça
e um zumbido anuncia
um novo estado
de hiper-realidade
regressas
a um mundo árido
óbvio
vês
três jogadas à frente
sordidez e vergonha
ainda assim persistes
em anotar os números
fazer os cálculos
convertendo
em livro-razão do teu vício
o caderninho de infância
onde anos antes
à margem dos detritos
da mais grandiosa
guerra intergaláctica
sonhaste que um dia
um pequeno coração
poderia cantar

Quatro cidadãos conspiram lendo versos: leitura de poesia (4 de Outubro, Porto)

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Francisca Camelo, José Pedro Moreira, Mafalda Sofia Gomes e Vítor Teves têm livros novos acabados de sair (ou prestes a sair, no caso da Mafalda).
Assumindo o já sobejamente conhecido carácter dispensável da poesia, estes quatro poetas decidiram juntar-se para lerem alguns poemas. Num tempo de capitalização individual de todos os pequenos gestos quotidianos, haverá algo mais revolucionário do que a inutilidade de uma leitura coletiva de poesia?
Aparece e traz um inútil também!

No dia 4 de Outubro, na livraria Flâneur (Porto), às 17.30.

O DIABO*

“Foi contigo que aprendi

a cidade” – Eduardo Pitta

  “com a tinta que o inferno lhe deu !”

- Théodore Fraenckel

Foi contigo que na divisão do real conheci o ódio extremo.

Levaste-me ao mais intenso negro que em mim existia existe

ao oceano duplo de duas cores e duas inversões

ao lado que julgava não existir mas existe - essa

mancha onde toda a luz se perde do bem.

Levaste-me ao extremo sudoeste

a esse lugar onde o tempo não existe

ou se existe corre a passo lento de caracol

um caracol que desce na corda fina da lágrima

e me enrola e me aperta o pescoço.

 

Foste a ponta do meu sufoco.

Nele a águia num céu riscado de negro

chicoteava-me a película dos olhos

a pele sensível do meu eu interior frágil confuso

sem que pudesse pressentir a pedra que sobre mim se formava

uma pedra enorme que sobrevoava

cascalhos blocos contentores de ruínas

(era um ventre ensangue de espírito ferido).

Uma pedra enorme sobrevoava

a mais dura

a mais inesperada dura pedra

sobre mim.

E dentro da mancha negra que foi esse meu extremo

que por vezes era tingida de azul

quanto mais mentias mais crescia o grande bloco

que na hora da pétala impreparado caiu sobre mim

esmagando-me nessa mesma hora.

 

Sozinho sob o bloco nunca mais voltei a ser quem era.

E quem era eu antes de ser quem sou? Agradeço-te

disfarçado homem por me teres levado sem querer ao

limite do meu próprio sangue pois só assim

 pude chegar Aqui onde me esperavam.

Fizeste-me regressar pela força da minha força

ao centro imóvel daquilo que sou. À aceitação plena de

todos os meus erros incluindo o ter-te conhecido.

 

Se outra pedra vier

uma que me caia sem aviso com maior peso e estrondo

que me faça da minha adormecia alma a mais espalmada de todas

agradecer-te-ei esquecida a dor pois terei chegado à fina folha.

À folha onde poderei finalmente escrever “Sei quem sou!”

e escrita poderei então rasga-la

entrega-la              

liberto         

   ao ar           da terra

para             

   nunca                mais        

 regressar         a esta

                           forma      imperfeita

                                                                

  que             me                prende. 



*último poema de “Lodo”.

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Vítor Teves - “O Diabo”, (pormenor), 2007.


jonas ou a reinvenção

Manuscrito Walter, W.547, fol. 40r

Manuscrito Walter, W.547, fol. 40r

jonas,
voltaste hoje a israel.

era já noite e
bem sabes que
depois das dez
o silêncio jurídico do teu prédio
proíbe
banho água sabão azul.
depois das dez
és sempre essa
coisa suja e ruim em
repouso aristotélico
bactéria-verme e impureza

jonas,
queria lavar o teu corpo uma
última vez

talvez esteja demente
quando te digo que
passo as minhas tardes
com os rebanhos do mar,
talvez esteja demente
quando te digo que
alimento nas rochas
a lembrança de uma
humidade corrompida
em águas cervicais

jonas,
a vontade aperta-me as escamas
e as ondas queimam como o ar


espero-te três dias e três noites e
peço-te
que voltes comigo
para celebrar o batismo
da primeira traição