DIÁLOGOS SEM TÍTULO

NÚMERO UM

 

 

TATIANA FAIA
PEDRO BRAGA FALCÃO
(ao leitor competirá quem é quem)

 

Tenho uma sede de coisas que perduram,
umas são sérias, outras perdem-se mesmo.
Outras são tão sérias como o vento.
Mas outras perdem-se mesmo.

Como por exemplo:
os vivos que regressam enquanto dormes
vêm conversar contigo numa língua que não entendes.

Nunca percebes a língua que os mortos dizem:
estão desesperadas, as línguas,
mortas, como a transmissão
de um profeta dos anos sessenta.

A sua conversa é como o trabalho à tua frente,
será o que for sem mais beleza do que o improviso
e tu o que recebes tomas por paga
por alguma coisa muito tempo depois
como o sopro de um dia na tua cara,
de uma impressão?
De que estás em casa?

Enquanto não te calaste
perguntavas posso contar-te
entre os que podem pôr os pés no chão?
E continuaste a perguntar e a perguntar

Mas ninguém já põe os pés no chão.
Já não se usa. Está acabado.
Os pés usam-se para se matar.
Como se fazia na rádio.

Não. Espera. Usar. Tu usas-te.
E usas os outros todos os dias:
não as vestes, porque não cabem
nos olhos, na boca, nos ouvidos.

Nos ouvidos nunca caberás.
Repara: não é possível.
Encher toda uma cabeça
Com o eco de uma voz só 

Mas podes ao menos chegar?

Os versos não se fazem assim.
Os versos despejam-se.

Não.
Fazem-se como quem tira o que é preciso.
Não exactamente “como”... Não “como”.
Não se fazem assim, percebes?

Sim, os versos não se fazem como se querem.
A verdade é essa.
Os versos fazem-se como se querem.

Não.
Têm de estar vivos antes de tu chegares.
Tu entras na sua pulsação a meio,
partes os ossos do pulso
(só por princípio)
e achas que vieste para começar.
Mas chegar não é isto.

Antes de tu chegares
não havia a tua,
não havia “a tua febre”,
a tua paciência,
a tua vontade.
Antes de tu chegares,
tudo estava visto, explorado,
até quando as luzes se abriam,
se abriam como um mundo,
se abriam como um deserto,
se abriam como um veneno,
e as cobras declamavam:
não estás aqui.

Será um problema?
Muito mais tarde tu chegaste ao teu próprio eco,
por meio do trabalho de outro
aquele que te sentou na cadeira,
que te falou ao ouvido
que com um golpe preciso
cortou parte da orelha.

Devo dizer
Ultimamente o que escrevo
Encheu-se de gente mutilada
Como eles ecoam é o meu trabalho
E aceitei isto porque achei que era ofício:
Nadar contra a corrente

O meu eco acaba demasiado sempre.
É o problema dos ecos:
como as memórias demasiado curtas.

Não chegam como são,
rápidas à tua frente,
tirando as que se acendem.
As memórias que se acendem
Como lâmpadas carregadas
De electricidade, calor, precisão

Repara: nunca ninguém é tão rápido,
nunca ninguém é tão certo
como as músicas de que tu precisas. 

Mas onde não há ninguém
nenhuma música serve. 

Meu amor, nenhuma música
é tão grande como essa que ouves.
Nunca te esqueças disso. 

Mas resta isto...
Isto... vês?

O quê? O suspiro do Diabo?

Ou ter de correr,
percebes agora?...
para chegar, muito gelo
muita força,
por um pouco de luz, algum calor
Isso é ser nada.
Adianta-te ao espelho agora.

Nunca fui nada.
Outras considerações
Importam-me mais como
Gosto de correr,
mas faz-me mal aos joelhos.

O diabo trabalha no joelho
É onde me vejo melhor.

Não te vejas no gelo.
Faz demasiado frio.
Vem-te antes.
Vem-te sempre cedo demais.
Só assim poderás comparar
o sol à felicidade. 

Nada pode ser comparado à felicidade.
Ela chega nos intervalos,
envelheceu: respira com dificuldade.
Pergunta-lhe se veio à minha procura
por delicadeza ou preguiça.

À felicidade nada se pergunta.
Exige-se que nos prometa,
que nos faça, que nos foda. 

Então não podes separar nada.
Nada te faz ou te fode
Como o contrário da alegria.

Mas não há contrário da alegria?

Se a carregares ainda contigo...

Só se a carregares contigo?

Mas tu continuas a crescer,
ou a decrescer?
Há sempre,
é preciso lembrar-te:
tudo o que sabes
é sempre o que soubeste.

Mas, repara:
não há coelhos brancos, Lídia.

Não há comprimidos que te façam maior,
mas há certos b(r)ancos,
ou desconcertados,
onde te podes sentar.
Ou será inesperado?
Puxas o último cigarro,
(se fumasses),
mas porque cerras os olhos?
Sabes que no teu corpo
há outro corpo.

Mas outro corpo,
mas outros corpos não se suspeitam.
Não se espiam.
Não têm uma guerra fria,
e todas as guerras frias são carne,
são a última revolução.
Porque não o vês?
Ou quererás não o ver?

Não.
Todos os corpos chegaram como a chuva da manhã.
Como entrar neles sem os ferir?
Sem lhes emprestar a minha destruição?
Como sair de noite
Bater à próxima porta?
Surgir do outro lado

Mas, minha amiga, não saias de noite.
Nunca saias de noite.
A noite faz-te pesada.
A noite faz-te vagarosa. 

Não.

Não?

Vagarosa como enviar uma carta errada.
Gorda. Como uma vaca.

Mas que porra?

Uma profetisa da amazónia, digo.

Os profetas nunca viveram em florestas.
São húmidas.
Os profetas gostam de coisas secas.
Só assim assistem ao deserto.

Para que deus possa
fazer o seu trabalho de edição.

Deus nunca se cansa de editar.
Até nos silêncios dos que se riem,
até nas vírgulas dos que se fazem.

Segura-se nas vozes côncavas dos profetas...

As vozes, de facto, têm uma geometria definida.
Será demasiada?

Mas nenhuma voz humana é desagradável.
O que é dito, às vezes:
não as vozes. 

As vozes são demasiado sublimes.
Talvez por isso falemos demasiado.
Escrevamos demasiado.
Nós, poetas, calamo-nos sempre,
muito apesar dos poemas. 

Mas, já reparaste: nunca ninguém nasceu.
Nunca ninguém nasceu.
Porque estamos aqui então?
Não faz sentido.
Estamos demasiado sós.

Não demasiado sós
Não nascemos o suficiente

Sim, tens razão.
Mas eu não posso nascer.

Queres dizer:
porque já começaste?

Não, porque nunca comecei a nascer.

É preciso nascer em tudo.
Até num poema: como num jogo de xadrez.
Eu nasci em tudo,
continuo a nascer em tudo.

Eu nunca nasci em nada.
Uma fronteira faz-nos,
como quando dizes
que nasceste em tudo. 

E uma fronteira passa-nos.
Deixa-me começar a partir daqui.

Nunca vamos começar a partir de nada.
Os poemas nunca acabam e não começam.
Tu sabes disso.
Ninguém como eu ou tu sabe melhor.

Não acabam.
São o trabalho de uma polifonia só deles,
onde os poetas entram ou nunca entram.

Os poetas queriam entrar.
Não podem, não sabem.
São desadequados.
Por isso ficam sempre à porta,
à porta das laranjas,
à porta da China.
E depois dizem-se sacerdotes,
mas depois só não há sagrado.

Mas conversam com a porta,
Dizem-lhe coisas.

Quantas coisas lhe podem dizer?
Diz-me tu, sinceramente.
Diz-me.

 

Que entram nos poemas.
Que soam como um sino.
Que deixam o ladrão sorrir no escuro,
na noite a que voltam gorda como um gato
de olhos largos,
pronta a perder-se de novo.

Mas tu perdeste-te?

Tenho de ir, Pedro.
És o sal da terra,
quase nada te escapa.
Embora não ache o Cohen demasiado pagão para deus.


Banda sonora deste poema, a ser distribuída pelas diferentes secções, segundo critério livre do leitor, mas não a sequência*:

1.     Too Drunk to Fuck - Nouvelle Vague
2.     Smells Like Teen Spirit - Nirvana
3.     Come As You Are - Nirvana
4.     Devil's Whisper - Raury
5.     Vökuró - Björk
6.     Where is the line – Björk
7.     Flamenco Sketches - Miles Davis
8.     My Funny Valentine - Miles Davis & John Coltrane
9.     Puer natus est nobis - Los Monjes Benedictinos de Santo Domingo de Silos
10.   Coro final da Paixão segundo São Mateus - J.S. Bach
11.   Suzanne - Leonard Cohen
12.   So Long Marianne - Leonard Cohen
13.   Take This Longing - Leonard Cohen

(as duas últimas canções são simultâneas e uníssonas, porque têm história no final do poema)
*os poetas lamentam (o que poderá ser um título alternativo)