Gilgámesh, Enkídu (dois poemas do novo livro de João Gabriel Madeira Pontes)

Gilgámesh

Os bichos fogem à distância

Não nasci do silêncio
nas estepes ou da argila morna
da Mesopotâmia

A água não alegra os meus sentidos
mas o pão, a cerveja e esta cidade

que alguém lhe trouxe da feira
depois de apostar todo o salário na loteria

e perder a quina premiada.


Enkídu

 Há quem duvide disto

mas a criação da humanidade
não pode ser mero fragmento
na epopeia particular do herói

não importa qual herói
não importa qual humanidade

De toda maneira
dramas, façanhas e fiascos
quase sempre se acabam
em palavras estéreis

que devem ser batidas no liquidificador
com um toque de lima-da-pérsia
e uma pitada trágica de benzedrina

Os salões dos museus
também são alternativas viáveis

Destinado a ser o orgulho da Suécia
na guerra contra a Polônia
o navio Vasa afundou
em sua viagem de estreia

Hoje não passa de quinquilharia colossal
em algum museu de Estocolmo

Diz uma de suas biografias que, em visita
à capital sueca, Wisława Szymborska
comentou, referindo-se ao Vasa:

“É muito lindo quando, depois
de um conflito bélico entre nações, resta
apenas uma exposição num museu.”

Anos antes, os futuristas
clamaram por heróis
que glorificassem a guerra
e destruíssem os museus

Para eles, não eram simples palavras.

João Gabriel Madeira Pontes, Manobra de Heimlich, 7 letras, 2021

Canzione per te

Gosto daquela velha música de Sergio Endrigo
porque nunca mais a escutei

nas serestas de família

Do mesmo jeito, arrebenta os meus olhos
o violão de cordas arrebentadas

no qual ninguém ousa encostar a mão

seja por pena, seja por nojo

As pessoas me parecem mais interessantes
se não conheço os seus nomes

Prefiro-as extraviadas em cartas apócrifas
ou soltas em catálogos ordenados numericamente

Desculpe-me, H., mas as casas são fabulosas
apenas quando não digo: casas. Então, são fabulosas de verdade

É que, ao não dizer: casas
(assim, por inteiro, no sentido total e totalizante da palavra)
só me resta falar sobre os móveis cobertos

sobre o cinzeiro limpo, sobre a torneira fechada

Nestes dias temperamentais, o berço sem criança
tem me comovido mais que a ideia da criança

Há ainda as coisas que se cumprem
pela metade, sempre mais belas e convincentes: a ambrosia que enche
meio estômago, os trinta minutos, o chá de cacto

que não te rouba toda a consciência

Sob a marquise

espero a segunda vinda de Cristo
e torço para que o episódio não saia nos jornais
de grande circulação

Pensa em como seria
se anunciassem a chegada do Nosso Senhor
na mesma placa que agora informa

Consertam-se venezianas

Seguem em paz os coadjuvantes das próprias fantasias
Também eu quero tamanha paz, apesar de saber
que, nesta festa insólita, não me será dado um fiapo sequer

do mais breve sossego.

Sanduíche

Na cesta
de piquenique
agora aberta, entre

duas fatias de pão

uma faca
reluz ao sol

Você
analisa as fatias
de pão

Você
sente o cheiro
do trigo

Você
imagina o gosto
da faca

Daí você morde

Uma nesga de sangue
Um bocado de grama

As lagartas que rastejam
sobre as suas unhas

são ainda mais bonitas

porque rastejam
sobre as suas unhas

E nos sentimos
como Warren Beatty
e Natalie Wood
naquele filme

de 1961

cujo título original
também fala de grama

e de esplendor
e de juventude

Se um banhista
for morto

atrás desta árvore

que nos faz
sombra e companhia

mesmo assim
ficará tudo bem

porque somos
como Warren Wood
e Natalie Beatty
naquele outro filme

em que não morre
ninguém.

A educação na serra

I will not play at tug o' war.
I'd rather play at hug o' war,
Where everyone hugs
Instead of tugs,
Where everyone giggles
And rolls on the rug.
Where everyone kisses.
And everyone grins.
And everyone cuddles.
And everyone wins. 

Shel Silverstein

 

 Antes de chegar à casa
para assistir ao leve tremor das araucárias
descubro que a edificação fora projetada por Lúcio Costa
em algum momento perdido do século passado
e que, há poucos anos, o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
decidiu, mesmo sob protestos de moradores locais, erigir uma igreja
ao estilo gótico no frágil coração do bairro
Também descubro que parentes do dono da casa
um imigrante belga que desembarcara na Normandia
para lutar contra os nazistas
ajuizaram ação popular com o objetivo de interromper as obras da igreja
ou de, subsidiariamente, compelir o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
a implementar uma série de obrigações: a construção de estacionamento próprio
para os frequentadores, o isolamento acústico do templo, a adequação
da infraestrutura do prédio à rede de água e esgoto da cidade
etc., etc., etc.
Descubro, ainda, que o dono da casa – hoje quase centenário – casara-se
com uma imigrante americana, de família espanhola, após tê-la conhecido
em um evento da empresa de abrasivos em que ambos trabalhavam
Na época do encontro, ainda não existiam nem a casa, nem a igreja
tampouco L., o neto mais bonito do casal de imigrantes
que aparece, ainda criança, em algumas das diversas fotografias
espalhadas pelos cômodos do lugar, fotografias que aprenderam
a conviver com a farra das traças, com o cheiro da madeira
castigada pela umidade, com os risos que se ouvem
do lado de fora dos porta-retratos
O verão não grita sobre estes pinheiros, recém-plantados
para ocultar a efígie austera da igreja
que o grupo católico ultraconservador Arautos do Evangelho
mandou erguer nas imediações
As noites também preferem ser compridas
a emitir qualquer barulho que atrapalhe os vagalumes
ou as lagartixas à espreita dos vagalumes
Na rede branca estendida entre duas décadas, Ana P. me lembra Silvina Ocampo
ao brincar de esconder o rosto dos meus olhares, que, mesmo depois
de todo esse tempo, não cansam de cruzar-lhe as poses e as caretas
como a rios tímidos
Então, abandona a rede, joga-se na poltrona e espera a próxima chuva
enquanto J. costura, desmancha e torna a costurar
o sudário de sonhos que vaza dos seus desenhos inacabados
Não se fazem repúblicas sem novos desejos
e foi por isso – e não por causa da insolação – que P. ardeu em febre
dias depois de escutar um poema de João Cabral de Melo Neto
pela primeira vez na vida
Ana C. diz chorar sempre que lê O cão sem plumas
e se depara com aquelas imagens, insistentes feito prendas trágicas
A Ana C. de que falo nunca traduziu Katherine Mansfield
e segue tão viva quanto as esperanças de X., para quem o mundo
continua sendo capaz de fazer charme, apesar de tudo
Não quero ser obrigado a discorrer sobre revisionismo histórico
negacionismo climático ou crises constitucionais
Quero, isto sim, dizer que Clara também carrega, ao menos em parte, o nome
da mulher que amo
E. nos conta da sua infância em Miguel Pereira e de como o seu pai
é loucamente apaixonado pela música Nikita, cantada por Elton John
Com a câmera do seu celular, E. registra todas as nossas horas de distração no quintal
Ao fundo da tela, pode-se ver a arquitetura da igreja
Os pinheiros recém-plantados ainda são pequenos demais
para que se devolva à casa a sua velha paisagem.