Que tens para perdoar

Que tens para perdoar   se uma mesma suspensão

da terra tem a forma de uma pausa   que tens

a perdoar senão trocares os nomes dos deuses

e chamares trigo ao fogo   e chamares coxo

ao relâmpago dos relâmpagos   que tens

por perdoar senão a morte de todas estas

estátuas que naufragam contigo de madrugada

e assentam sob o caos da tua mão direita

geradora de formas   modificadora de roncos

mosto   calúnia   escândalo   que tens tu

de perdoar senão a última variação

do teu jazigo e a forma quase ingénua

como nunca te converteste  e talvez

desconcertante   como todos os rios se reduzem

à margem de Babilónia    a Grande

e já reparaste como os teus seios são jardins

e se suspendem das minhas mãos   como quando

me perdoavas   e dizias   apesar de tudo

apesar de tudo   e nunca ninguém soube dizer

tão bem essas palavras   apesar de tudo

quando sinto os teus braços   (pausa)

sabe-me bem e eu nessas alturas   ou seja

nessa altura recordei-me sempre de uma tarde

em que vi três humanos   um homem no meio   jovem

duas mulheres da mesma idade e todos

de braço dado   e que melhor perdão

para todo o filho do homem   para todo o desconcerto

do que essa partitura   e bem sei   tu sabes

que lamechas   que foleiro   que piroso

é toda essa merda   e dizias   devias talvez ler

mais um bocadinho   e escusavas de repetir

a mesma porcaria que já milhares de poetas disseram

com palavras diferentes   é certo   mas a mesma coisa

não te perdoo essa falta de protagonismo

nessas alturas   nessa altura fiquei sempre

em silêncio pensando para mim mesmo

como sempre disseste o que queria ouvir

a ponto de duvidar da minha própria existência

e apesar de tudo soube-me bem   demasiado bem

como um pecado que dura e para o qual

não há perdão nem recusa   nem um movimento

isto é   uma cruz que se veja   um espinho

que se crave onde realmente interessa   na perna

onde dói   onde a dor é verdadeira   no ombro

que não se pode mexer enquanto te operam

e a carne nunca a soubeste tão verdadeira

que perdão   meu amor   que perdão

pode haver para essa margem   para o estuário

para o lugar de onde nasciam barcos

para ir ao cu dos índios e os encher

das nossas doenças   que perdão   para esse

para esse casaco de couro encostado à porta

do metro   que digo   dentro do metro

repleto de tabaco   e que grunhe e que acena

talvez a um conhecido que o encara

e talvez finja que te conheça   e que perdão

para esse ronco e para todas as pontes de ferro

que exercem a sua violência sobre as costas

dos suicidas que foram outrora deuses

filhos de deuses e que louvavam à sua maneira

as águas   ou pelo menos o que sobrava delas.

Todos esses ténues irmãos

Todos esses ténues irmãos procuram

uma fina brecha no espaço do tempo   e eu digo

o tempo não é como o xaile que vias pousado

ou se fores como eu jamais viste   pousado

na cadeira antiga   e repara   disse pousado

porque pausado seria ainda uma expressão

que nos traria de volta   concentra-te   concentra-te

agora nessa cadeira   e imagina-a sólida

à imagem do teu irmão sentado   como quem

assenta ladrilho   ou assentou   num dia solene

em que se anunciava qualquer compromisso

à fachada de uma coisa qualquer   imagina

essa mesma cadeira coleccionada pelo teu sorriso

isto é   pela ténue brecha que todos os irmãos

nas vésperas de serem condenados sabem abrir

ao céu ou à imortalidade da renúncia   e sabes

nem todos nós conservamos a morte de joelhos

prostrados ou indolentes à espera que se faça dia

desenhando na curva desse xaile a que certa vez

deste o rosto da tua avó   a adivinhação

dos pássaros   nem todos nós deixaram de crer

que quando os antigos falavam do seu voo

isto é   das aves que voam   estavam a falar

dos homens   pouca gente sabe   que atrás

de cada suspensão eras tu que murmuravas   a asa

do tamanho de toda a mais pequena partícula

poucos sabem que não eram os antigos que desenhavam

templos no céu eram os pássaros já que previam

que o tempo se corrompia e desafinava

em pequenos ecos de véspera   ou melhor dito

em laudas tais que os benditos   os certos

eram os que escolhiam passar   como tu

como tua aliás   irmã   ténue irmã

que de alguma forma aprendeste a poluir

com a pontualidade que só os grandes deuses

têm    a pontualidade dessa cadeira onde

dizem   certo tempo se escondiam os ombros

da mãe da tua mãe   onde hoje uma geração

que se esqueceu de se agasalhar se lembra ainda

de uma fina ou quase ténue ruptura   alguns diriam

doce   em que nos conhecemos   isto é

uma ruptura qualquer em que sulcámos

o Elevador do Lavra e nos encostámos

ao assento da madeira   e dentro do amarelo

como só os eléctricos sabem ser   soam

todas as vésperas   ou todos os hinos

que reconhecemos apesar da matéria

tu sabes a que me refiro

àquela brecha   àquela sombra   em que constatámos

para grande incredulidade dos pássaros

e de outras formas de expressão náutica

que todas as vozes que jamais soaram

têm a definição de uma cadeira

ou do colo que a tua avó por vezes

te oferecia   outras te recusava.

Uma carta a propósito do Adriano da Tatiana Faia

Minha querida Tatiana,

   hesitei bastante sobre o formato desta apresentação. Pensei naquela vez em que apresentei o teu Quarto em Atenas, e em como a medida de uma carta foi claramente desajustada. Lembro-me bem de como o teu editor me olhava de lado, à espera que me calasse; nem esperou pela primeira frase para ficar aborrecido. Ainda assim, talvez sem a prudência que me recomendaria o amor-próprio, decidi repetir o formato, e correr o mesmo risco. Sinto que só numa carta te poderia falar sobre o teu Adriano, dirigindo-me a ti, com a intimidade de dois poetas que sabem que nunca falam sozinhos um para o outro.

Sabes, enquanto crescia tão mal como tu, e aprendia a arrancar sons de um instrumento que sempre se defendeu de mim, fui-me apercebendo de que havia em certos compositores uma qualidade indefinível, que nada tinha a ver com génio ou técnica. Tinha a ver com uma indizível presença de estilo. Bastam-nos três compassos para sentirmos a música de Bach. Uma sequência harmónica para reconhecer Chopin. Um compasso para sabermos que é Leonard Cohen que canta, mesmo antes de ouvirmos a sua voz. Acredito que a poesia é apenas mais uma forma de compor. E por isso, ao conhecer cada vez melhor os teus livros, Tatiana, tenho cada vez mais a certeza que estou perante um desses estilos irrepetíveis e, portanto, indefiníveis. Consigo até dar-te exemplos dessa tua idiossincrasia estilística, mas há sempre algo que ficará por explicar, que não define a tua voz tão própria. Por exemplo, posso-te falar sobre o teu modo particular de jogares com a expectativa da forma, contorcendo-a como te apetece. Fico sempre com a impressão que queres deixar o teu leitor descoroçoado, quase revoltado perante uma engrenagem que parece emperrar a meio do poema. Julgo que alimentas conscientemente essa sensação, com uma intenção quase sádica: gostas de lhe dar, quando menos espera, um murro do estômago, com aquela violência particular que só os versos têm. Vem-me à memória aquela tua estrofe magistral, sensivelmente a meio do livro, em que falas de

“um mistério irracional

 que Adriano tenta explicar

com dificuldade

 ao longo de todo o romance

 e que talvez não esteja muito distante

 de outro

 ainda mais difícil de entender:

 como exatamente se passa

 da infelicidade à felicidade”

e que serve como mote para o poema que se lhe segue. Esses versos acabam por ter o fôlego que têm porque são preparados por outros tantos maçudos, quase prosa académica, de uma insólita crítica literária à obra de Yourcenar, que não nos deixa adivinhar o que daqui viria. Grande parte do teu estilo tão particular decorre precisamente daqui, de uma tensão permanente entre o liricismo que tantas vezes te parece seduzir, da elevação das tuas referências literárias ou até da descrição dos teus gatos, e o teu enjoo e tédio por tudo isso. Tudo acaba por explodir numa torrente ilegítima de versos, longos, narrativos, tragicamente desassossegados. Sinto que te reconheceria numa qualquer antologia anónima do século XXI, pejada de poemas de megafone ou de intervenção, e de analogias pós, pré e anti-românticas, desabitadas de milénios. Descobrir-te-ia nesse livro, onde quer que estivesses. Talvez por isso fales num dos teus versos de uma “maturidade de estilo / para poetas”. Mas o que faz da tua voz uma voz tão particular, suspeito que jamais o vá saber exactamente. Deve ser por isso que nunca nos cansamos dos grandes compositores.

Devo-te, porém, confessar que li com uma certa clemência o texto que escreveste no final do teu livro, a prosa com que talvez tentasses explicar o processo de escrita do livro. Muitos compositores contemporâneos o fazem, especialmente aqueles cuja música ninguém entende. Tu, minha amiga, não precisas de o fazer. Até porque, como bem sabes, o teu Adriano é necessariamente diferente do meu – e a beleza da autoria está precisamente nesse processo de apropriação a que cada livro obriga. Aliás, se não tivesses escrito que Fernando Pessoa e o seu Antinous tinha sido uma referência para este teu livro, jamais o adivinharia. Nunca li esse texto e a minha intenção é nunca o ler. É quase uma heresia, mas alguns textos do Pessoa aborrecem-me de morte. Especialmente aqueles em que ensaia um classicismo que me parece mais pedante que clássico. Se conheço bem a prosa de Ricardo Reis, é apenas porque me obriguei a isso por motivos académicos, uma razão que é sempre uma razão de merda para se ler um poeta.

Enfim, com isto quero dizer-te que o teu Adriano já é tanto teu como meu. Transformou-se na minha própria reflexão sobre estátuas de mármore, e sobre “o afogamento talvez acidental” não de Antínoo, o belo jovem que desenterrastes em Delfos, mas da nossa própria experiência humana. Devo-te, ademais, dizer que para mim, Adriano é uma personagem acessória, quase fortuita, no teu livro. Uma ficção como qualquer outra: uma mentira tão grande como eu ou tu. Vejo Adriano como o pretexto do mármore, um pretexto de intimidade. Foi aliás o teu primeiro poema que me guiou nesse sentido; li-o como uma peça programática, que me serviu de bússola para todo o livro. Deixaste nele por escrito três vezes a palavra “memória”, que é verdadeiramente o leit-motiv do teu magnífico livro. Mas a tua memória não é semelhante àquela memória de musas, ao estilo de Vergílio, Mūsa, mihī causās memorā, uma memória que se conta a si mesma na patranha da humanidade, não, é uma memória de algas, é uma memória de arqueologista, que descobre no fundo dos oceanos a beleza corruptível de um jovem mancebo: a memória de um tempo cuspido, a memória vencida pela morte – a morte que venceu Antínoo, e que por pouco tempo iludiu Adriano, até o deixar também em mármore, ou mais precisamente, em quarenta estátuas de mármore. É a memória de uma mesma pedra – a do imperador, a do amante e a tua. É também a minha memória de jazigo, companheiro da tua morte, como tu és companheira da minha. É este, aliás, o clímax do teu primeiro poema, uma engrenagem implacável, contida até ao limite, e que explode quase no final:

“estive vivo poucas vezes

penso que é o que concluiu Adriano no fim

e para estar vivo esta talvez seja

a suspeita mais necessária”

Que versos fantásticos. E com que terror te ouço dizer no fim deste mesmo poema: “espero enfim com alegria / tudo o que de certeza me desapontará”. Que crueldade, minha amiga. Sabes, o teu poema inicial lembrou-me pouco Roma, e bem mais o início de um filme de Terence Malick. O segundo andamento de uma sétima sinfonia de Beethoven em que a câmara se vai afastando do sofrimento de um pai que perdeu um filho para todo o cosmos, para todo o tempo, para toda a universalidade da criação, para chegarmos a uma mesma conclusão, inevitável, constante: tudo é sofrimento, ou como diriam os budistas, dukka: o mais pequeno instante do tempo e toda aquela matéria negra, que nem os cientistas sabem explicar, têm a mesma essência atómica da dor humana, da nossa presença adiada neste mundo. E tu, minha querida amiga, tens o bom gosto de nunca procurares redenção no teu livro para porra nenhuma do que somos. Aliás, a tua poesia tem sido até este momento a-teológica, ausente de qualquer coisa sobre-humana ou sobrenatural. Nisso és muito diferente de mim, que tanto animo os deuses como o deus. Ao ler-te tinha tentado reconstituir no pensamento aquela famosa citação, que pensava eu que era de Yourcenar, que falava sobre o tempo de Adriano, na fronteira entre o culto rígido dos deuses romanos e o Deus cristão, supervisor do pecado. Andei doido à procura dela, e não a encontrei em lado nenhum. Foi com a cumplicidade de um sorriso que a descobri no teu texto final. Afinal não tinha sido Yourcenar a escrevê-la, mas Flaubert: “mesmo quando os deuses tinham deixado de existir, e Cristo ainda não tinha vindo, houve um momento único na história, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem esteve sozinho”.

É aí que tu vives como poeta, minha querida Tatiana, na solidão desses séculos, nas tuas próprias palavras, “ler para ti foi sempre / a única forma de rezar”. Isto leva-me a outra questão. Tu e eu sabemos que essa treta do classicismo é muitas vezes apenas classismo, ou ainda pior, um vómito escolástico de gente que nunca teve o prazer erótico de morrer na boca de Homero. Mas tu e eu também sabemos que Adriano é apenas a nossa própria transfiguração, como quando Pedro vê Moisés, Jesus e Elias, e se lembra apenas de lhes construir três tendas. Três tendas, o pobre tolo! Pois o teu livro é também isso: uma tenda ridícula, uma proteção fatalmente provisória contra o risco do esquecimento, o risco do mármore, o risco do museu, o risco de Delfos – o risco de não vivermos o tempo dos clássicos como eles o viveram, e de morrermos a sua exacta morte.

Julgo que o nosso amor partilhado pelos clássicos tem mais a ver com este reconhecimento de que os antigos decidiram dar uma forma musical a esse terror. Nesse sentido, o teu Adriano é não só um guia para os perplexos, como tu e eu somos perante a frieza outrora pintada dessas quarentas estátuas, mas é também um grito verdadeiramente clássico de revolta contra o horror, parvo, pequeno, agreste, da mentira da perfeição, da memória social, da imbecilidade humana – de gente que passa anónima e inerte, como todos esses soldados que percorrem o teu livro, mesmo o teu único soldado com um nome, Vittorio Sereni, um triste professor de latim – como eu! – alistado para matar, preso dois anos numa masmorra argelina, encerrado no enigma do mal sem redenção nem propósito.

Nesses oito poemas a que chamaste “Um italiano em Atenas”, não sei se te apercebeste de que as personagens principais nem são Adriano, o graeculus aficionado pela cultura grega, nem Vittorio Sereni, mais um títere da Segunda Guerra Mundial. Não costumo nem gosto de falar em presenças femininas na literatura ou chavões inconsequentes do género; acredito que a poesia é um contínuo universal que sofre apenas da contingência do tempo, mas não há como negar que é a voz da mulher o verdadeiro fio condutor destes poemas. Há uma presença constante destes versos que não é a de Adriano nem de Sereni: é a tua, a de uma mulher que se ancora, reage e dialoga com outras duas grandes pensadoras da humanidade, Martha Nussbaum e Margarite Yourcenar, que são as verdadeiras protagonistas destes poemas, juntamente contigo. São mulheres fortes e densas, tão difíceis como tu. Aliás, foi de ti que me lembrei enquanto lia esta tua estrofe, eivada daquela ironia que te é tão idiomática:

“em a fragilidade do bem

Martha Nussbaum

nunca menciona Adriano

e tenho de concordar

que não sei que o imperador

teria a dizer sobre filósofas

de repúblicas romanas do presente

e do frio nos seus olhos

quando elas acendem os cigarros

e da voz rouca

e cheia de estilo

com que imagino

a leitura em voz alta desse livro

de onde transcorre a aceleração

dentro dos quartos

da força com que é preciso viver”

A tua relação, porém, com essas mulheres fortes que convivem contigo nestes poemas não é uma relação de subserviência – nem o teu temperamento to permitiria. Muitas vezes pressinto que te irritas com Yourcenar e com a sua tonelagem clássica – como se te revoltasses contigo própria – que te faz ler as suas Memórias de Adriano como de um tragédia de Ésquilo ou Racine se tratasse. Imagino-te a ler em voz alta os teus poemas, e rio-me daqueles versos em que dizes que os críticos contemporâneos de Yourcenar gabavam o estilo da autora como “digno de um homem”. Aliás, Nussbaum e Yourcenar, e por vezes até a Tatiana Faia, acabam em alguns momentos silenciadas por uma presença feminina bem mais trágica e abrangente, porque mitológica. Refiro-me, claro, a Hécuba, a troiana que é a grande vítima da miséria da guerra, da mesma guerra que continua a ser a actividade preferida dos machos miseráveis do nosso tempo, dos Putins que espalham os cadáveres de Heitor à volta das muralhas de Tróia, sem o bom-gosto de o fazerem em hexâmetro dactílico.

Já me alongo demais, talvez. Vou-te só contar as circunstâncias em que reli o teu Adriano, porque há algo nelas que é quase oracular, e tu bem sabes que cada um tem a pitonisa que merece. Há cerca de três dias esteve um dia lindo. Em vez de te ler no escritório, decidi pegar na bicicleta, e fazer um percurso de que gosto muito, ao longo do Douro, pelo lado de Gaia, até chegar à Barragem de Crestuma, e daí regressar pela margem do Porto. Saí de manhã e só regressei ao final da tarde. Fiz três longas paragens ao longo do percurso. Na primeira, li a primeira parte do teu livro, a que chamaste “rua adriano” e o interlúdio que se lhe segue, “os gatos da rua de adriano”, não sem o espanto de considerar que investiste todo o teu estro de pintora não nas estátuas do imperador, mas num gato que vivia num prédio em obras. Demorei-me muito nessa tua rua. Daí, fui até Crestuma, para uma praia fluvial que naquele final de manhã era habitada apenas por uma jovem e os seus banhos de sol. Foi aí que li o “italiano na grécia”. Aquela mulher tinha a desconfiança natural de quem está demasiado sozinha ao pé de um tipo de barriga gorda e enfaixada numa ridícula licra colorida de ciclista, com óculos de massa e olhos diminuídos, lendo um livro de poesia com um lápis na mão. A companhia daquela solidão fez-me pensar, por violento contraste e como se de uma epifania se tratasse, que, pelo contrário, a tua poesia é um lugar habitado por gente a quem tu nos queres apresentar. A tua poesia tem quase sempre os pés numa rua qualquer, como já era o teu quarto em Atenas – um nome que nunca era aquele que o teu livro devia ter, cada vez percebo mais porquê. Foi uma revelação ler o teu livro neste tipo de movimento, porque tu és precisamente uma poeta de itinerância, mas que fica nos lugares para onde vai: viaja, não parte. Talvez por isso tenhas algo que é talvez o que mais me comove na tua escrita: a atenção do viajante. O teu mais longo poema – que para mim é o mais lúcido e bem construído, a par com o primeiro – é o oitavo e último poema do “italiano na Grécia”. Diriges-te a uma pequena moeda que percorre aquela humanidade que gemia já no primeiro poema. Tem a contingência da imagem de Antínoo, e completa o círculo da dor de Adriano, acorrentado ao amante morto no Nilo. Mas é também o círculo da dor de Sereni, que culmina no lamento de Europa, o de Hécuba, que repete serenamente a nossa violência, e é fundamentalmente o círculo da nossa própria dor, que tem o tempo todo enterrado naquela moeda. Julgo que é neste poema que se condensa toda a força da tua poesia: a força irónica da narrativa que se confunde com o verso, como cenário da nossa tragédia: “a possibilidade / de a morte vir à minha procura”, como tu escreveste. Vejo nele também a tua idiossincrática exigência realista, que te leva ao pormenor da oxidação do metal que deixa o cheiro nos nossos dedos, dos episódios absurdos da vida quotidiana dos intelectuais que estudam o minúsculos dos minúsculos sem se aperceberem do universo que encerra o pormenor, de todos esses temas que se vão articulando cada vez mais intestinamente com o tema maior de Adriano, isto é, o da memória, a tensão histórica entre o ontem e o hoje, a memória vivida no absurdo de um “alguém” que usa a moeda de Antínoo para comprar “uma cerveja numa viela suja”, uma memória que é também um gosto pela história da carne que vai percorrendo os teus livros, a história dos nervos, da tua própria encarnação num quotidiano que te obriga a usares essa mesma moeda num táxi amarelo, uma angústia que é também a angústia da poesia perante a força física da indiferença, aquele sentimento de impotência – a mesma do soldado a caminho do holocausto – perante a máquina do mundo, que constitui o nosso tão pequeno e necessário grito de revolta. Como tu dizes:

“uma palavra num poema

 devia poder deslocar facilmente

 um sentimento como um osso

 com precisão e alarme”.

Bem sabemos que não pode, minha querida amiga. No epílogo do teu livro, que li na última paragem antes de chegar a casa, já o sol se punha, enquanto escavavas Antínoo, disseste-me, aliás, uma coisa de que nunca mais me vou esquecer. É a imagem do arqueólogo que destrói o passado enquanto o procura, que faz desaparecer camadas de tempo até chegar ao artefacto que em equívoco julgava tratar-se do objectivo último da destruição da terra. Minha querida Tatiana, talvez seja esse um dos lugares mais certos da poesia, se é que os há. A arqueologia indefesa da nossa própria vida.

Enfim, gostava de ter uma frase bonita e redonda para acabar estas linhas, redentora, clássica. Também sabes que não sou de citações nem epígrafes. Sei que sou apenas mais um vulto que passa discreto na tua rua, habitada por tanta gente. Agradeço-te apenas a forma tão inquieta como sempre a edificas, de livro para livro. Agradeço a tua encarnação.

Bem hajas, minha querida amiga.

Pedro Braga Falcão

Vila do Conde,

7 de Outubro de 2023

Se tens noite

Se tens noite   confunde-a com o teu rosto

e deixa que o sereno retire das entranhas

da terra um pequeno ruído   uma haste

em que se erga um pequeno vulcão definitivo

um testamento ao fim dos dias   se tens noite

guarda-a devagar na minha garganta

suspira-a como se o transtorno que te causa

a unidade das coisas não te afectasse

como se fosses indiferente à pressa do consolo

ao amparo dos tristes   à comunhão dos séculos

se tens noite   meu amor   meu acalanto

se tens noite   não a deixes de cuspir

como quem naufraga   como quem espera o caos

que sempre se forma em quem sente as coisas

e se deixa seduzir e se deixa levar até entender

como somos areia repetida na mesma engrenagem

que espera a revolução dos outros para dormir

uma nobre sesta à eternidade dos Titãs

e se tens noite   meu bem   não te esqueças

de a atirar à roda   e à pólvora   e a todos

os rudimentos que fizeram de nós tribos sem tribo

planetas sem aves   estertores sem ruído

se tens noite   põe-na devagar na minha mão

que seja a primeira a dizer que a teve

como quem segurou um livro   se tens noite

se tens noite   que digo eu   estou farto

estou condicionado ao mesmo arbusto

às mesmas pinhas que tinham pequenas

reentrâncias de onde saíam sementes que nunca

eram pinhões   lembras-te?   como as púnhamos

na boca e tinham asas e nada daquilo

era o que nos prometeram   e quando era noite

aprendíamos a distinguir pinheiro bravo

de pinheiro manso   e claro   como podia eu

criança como tu   saber que os pinheiros lutavam

e que uns herdariam o reino dos céus enquanto

aqueles que habitavam a minha infância

deixavam-se sobreviver como agulhas   agora sei

e tu   se tens noite   diz-me se não é verdade

que não há mata mais erguida mais alcandorada

do que aquela em que o arvoredo nos retém

como um ponto de onde nunca se regressa.

Estou aqui sentado na minha casa

Estou aqui sentado na minha casa
que é grande como uma mesa de mármore
tenho um pequeno espaço de trevas à frente
vejo que está cheio de mim   vejo que está
num canto aborrecido do meu desespero
está sentado na minha casa   prostrou-se
à minha frente e então não tenho outra vontade
que não de anunciar   sente-se amigo   sente-se
ao que vem   sou eu   disse-me   sou uma história
uma diligência   um mito   comes carne
perguntei lá de onde estava sentado   cada vez 
cada vez mais me parecia um trono   e ela
ela diz-me   tenho estepes e perco-me de vista
e eu estava aqui sentado na minha casa
de gestos contidos   sabes   como quando conquistei
Paris e dei dois pulinhos de emoção   contidos
como quando era criança e julgava que toda
toda a gente estava a olhar para mim e ainda pior
que afinal tinha passado desapercebido   dei
dei dois passinhos de emoção   rejubilei contido
e hoje passei o dia na minha mesa do tamanho
de um estádio de mármore e sussurrei
és tu   és tu aqui   mãe com nome de seita
estou disposto a matar por tuas mentiras
por exemplo   que sou teu   que me queres
lembras-te   quando me fazias sentar do outro
do outro lado da mesa enquanto me negavas
um beijo   lembras-te   Mãe Rússia   quando
à noite te pedia um sorriso sem dizer palavras
e tu quase me aconchegavas antes de apagar
antes de apagares   e então   estou aqui agora
sentado à espera de um botão   de um erro
de uma falha de comunicação   para fazer de ti
Terra das Terras   Monstro dos Monstros
uma mesa bem grande   de um rio ao outro
ah   estou aqui sentado na minha casa
à espera que não haja hoje paredes para ela
que se possa transviar   intuir   rasgar
e formar muros de pedra   de madeira
lembras-te   como aquele que destruíste
aquele pobre carrinho   aquele pobre trenó
de brincar em que me arrastava à espera de ti
à espera de uma mãe e quando já de noite
decidia que nunca iria tocar em bebida
já tu estavas sentada à minha frente e agora
que agonizo como um comum mortal que acreditou
em histórias   vejo tão claramente que quis o que quis
e prostrei a meus pés os meus inimigos   rijos
eram tantos como as estrelas do céu   ou mais
agora aqui deitado na minha casa   rodeado
por pessoas que me temem mas não me respeitam
como a Mãe Rússia e os seus cabelos de palha
e os seus cabelos de puta   agora aqui deitado
ou sentado na minha casa   recordo me
inflo-me   exalto-me   se fosse poeta seria capaz
de escrever tudo isto   subjuguei os outros
os outros que foram nossos   dei cabo deles
trucidei-os   desfi-los   arruinei-os
porque foram ainda por cima irmãos desavindos
e com o seu sangue fiz um risco na cara
e chorei pouco   ou melhor   nada   porque
porque desde que me deste cabo dos brinquedos
mãe   ando com desejo de invadir a Polónia
os Normandos   os Vikings   e os Sumérios
desde que me possa sentar de novo na minha mesa
com mármore de vinte e quatro quilates
e ter alguém à espera do meu nojo   isto é
do meu lamento profundo pelo passado
e pela esperança de um grandioso futuro
cheio de cadeiras e de olhares sérios e tristes
porque afinal   irmão   tive que vos destruir
para saberdes que sempre vos amei
aqui sentado na minha casa
de onde se vê sempre o sol morrer
e onde não há trevas que me cubram
apenas uma mesa enorme debaixo da qual
me escondo à espera que as bombas caiam
num outro país que escolhi sentado.

 

à dancinha macabra de Adolph Hitler quando tomou Paris e à mesa grandiosa de Putin.

A música é a de Wagner.