Peter Sloterdijk, Europa, um continente sem qualidades

Peter Sloterdijk, lição inaugural no collège de france, 4 de abril de 2024

Peter Sloterdijk, o filósofo que melhor agita as águas, cada vez menos claras, do pensamento atual (em filosofia, o «atual» tem pelo menos um século), proferiu a lição inaugural do Collège de France neste último 4 de abril, o jornal francês Le Monde publicou um excerto que retomo, em modo de comentário, mais abaixo. É sobre a Europa, continente bem e mal-amado (ambivalência que faz parte da sua própria condição de possibilidade), cada vez menos capaz de corresponder às expectativas que ele próprio criou.

Sloterdijk é um autor bastante traduzido em Portugal (quase sempre na Relógio D’Água), aconselho, por exemplo, a Crítica da Razão Cínica (entre muito outros, Jürgen Habermas saudou-a efusivamente), Palácio de Cristal, Morte Aparente no Pensamento e Tens de Mudar de Vida. É verdade que, por enquanto, ainda nenhuma editora se atreveu a perder dinheiro traduzindo a sua opus magnum, Sphären (Esferas, três volumes, 2004 e 2009), mas o que há é suficiente para termos a clara noção da sua genialidade (na análise, no comentário e na poeisis conceptual). Mais clarividente e profundo, mais dentro, e fora, da história da filosofia do que Byung-Chul Han (a outra rockstar da filosofia alemã), pouco alienado ao anticapitalismo pós-extremista, como lhe chama, mais prolífico do que a maioria dos académicos e, já agora, incrivelmente livre (resistiu ao canto dos mandarins, alguns bons diga-se, da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt), apesar da carreira canónica na Hochschule für Gestaltung (Universidade das Artes e do Design de Karlsruhe, na qual chegou a ser reitor). Só ele se aproxima, porque sabe e não tem medo de se queimar, de uma gaia filosofia, que, longe do rigor mortis da filosofia analítica, assume a importância do conto filosófico (um eros discursivo que reconhece a necessidade de discursos longos e multiformes para explicar um presente complexo, ambíguo e pós racional).

«Nietzschiano de esquerda», como gosta de se apresentar quando quer inaugurar uma polémica, preferia que a dicotomia ética se baseasse no par «pesado e leve» em vez de o «bem e mal». Este último foi até hoje o motor incansável do pensar e do sentir humano, um transcendental, à sua maneira, com incríveis poderes performativos. Mas seria bem mais fértil distinguir o que torna a vida humana leve do que a torna pesada, as paixões felizes das paixões tristes. Construa-se, pois, uma nova ética a partir do que eleva e do que rebaixa, do que exulta e do que angustia e petrifica. Mas, claro, talvez o ser humano, que regressou aceleradamente às pulsões destrutivas (o fim da história só pode ser projetado num pós-humano, ou no fim do humano), não esteja ainda preparado para sair do conforto maniqueísta; como esclarece Sloterdijk, retomando Friedrich Nietzsche, aquilo que escolhemos (refere-se à filosofia, mas podemos usá-lo igualmente numa ética prática) «depende do homem que somos». (Temperamentos Filosóficos). E Sloterdijk é um homem permanentemente inspirado, sem os habituais preconceitos (bondosos, dizem) do intelectual engagé.

II

Na lição inaugural do prestigioso Collège de France, Peter Sloterdijk (namorando há muito com a França) falou sobre a Europa, esta em que vivemos, cheios de esperança e receio, gratos e ingratos por existirmos num palácio de cristal que já não consegue (alguma vez conseguiu?) ser a estufa perfeita que nos aquece mesmo quando um frio distópico atravessa alguns dos vidros partidos (ou ausentes, desde sempre).

Há uma certa amargura pela sensação de declínio europeu (somos o «velho mundo» desde Cristóvão Colombo), o «resto do mundo» mudou muito, já não é o «menos», mas o «mais». Não soubemos, não sabemos fazer a transição do colonialismo para o ensimesmamento continental, um continente fragmentado que ainda não conseguiu compor o seu corpo dançante. Assediados pelo distante e pelo próximo, temos, num paroxismo dissensual, uma Rússia que recuperou os instintos imperais que pareciam irrecuperáveis depois do malogro soviético. Mas temos também imigrantes, presentes e potenciais, a bater constantemente, esfomeados, à porta. E nós cheios de medo, numa angústia étnica sem precedentes. Somos, pois, um corpo, já não monstruoso, mas talvez frankensteinniano, vinte e sete órgãos sem uma cabeça que verdadeiramente os coordene. Como renovar, por outro lado, este continente sem colónias (e com poucos amigos), com uma história de domínio, político e espiritual, tão pesada? O passado em vez de trampolim forma um lastro de chumbo que nos impede de avançar (neste tempo seria antes «galgar»). Mas bem, somos os especialistas da decadência, sabemos, como ninguém, sublimá-la, fazemos, como Baudelaire ou Fernando Pessoa, poemas sobre o cansaço, a beleza metafísica da renúncia e do desvanecimento. Mas também a tememos tanto que estamos prontos a saltar para qualquer abismo se nos prometerem que nos afastamos dela.

Desta forma, diz Sloterdijk, quem ousar repensar a Europa «deve saber que haverá que formar conceitos para uma novidade política e cultural. […] conceitos para um continente sem qualidades» (próximo da ideia de ausência de qualidades do Ulrich de Robert Musil, não por falta de inteligência, pelo contrário, mas por um viés analítico que o conduzia à passividade, ao relativismo moral e à indiferença). Com 500 milhões de habitantes, refúgio para imigrantes porvir, clama por uma nova definição, para si e para os seus povos. A União Europeia é uma improvisação política, um grande corpo político sem «as convicções e postura imperiais». E se os seus habitantes assumem e, na sua maioria, validam este novo europeísmo, isso não os conduz às mesas de votos das eleições europeias. Talvez falte o sentimento de uma pátria vivida, ou talvez isso justifique alguma cólera contra a realidade opaca, quase extraterrestre, da burocracia das instituições europeias. Mas, no essencial, muitas incarnam uma ingratidão fácil e desmiolada: «O Europeu de hoje é frequentemente o consumidor final de um conforto do qual desconhece as condições de existência». Por isso, «na sua existência perfurada pelas falhas de memória» há uma frase de Stephen Deladus (no Ulisses de James Joyce) que se tornou realidade: «A história é um pesadelo do qual procuro sair.» Melhor, quem sabe, do que o «I would prefer not to» bartlebyano.

Talvez seja a altura de regressar à A Ideia de Europa de George Steiner, que nos reconforta com uma genealogia da civilização europeia sem nenhum lugar para o ressentimento. Mas assim perdemos o espetáculo de autodestruição que vai percorrendo, sempre percorreu, a Europa e o dever de a filosofia constituir, como pensava Nietzsche, a má consciência do seu tempo.

O inferno (não) são os outros

René Descartes foi um revolucionário, retirou a Deus (isto é, ao ecossistema religioso que dominada os costumes, a política e a ciência) o critério da verdade e colocou-a no ser humano (não foi assim tão linear, e Deus, mas um Deus de razão mais do que de paixão, continuou a desempenhar um papel importante na inteligibilidade do mundo). Com ele, o ponto de partida de toda a verdade possível passou a ser, como sabemos, o cogito. O ego cogito, centro da subjetividade transcendental, transformou-se, nas palavras de Edmund Husserl, no «terreno último e apoditicamente certo de juízos, no qual toda e qualquer filosofia radical deve ser fundamentada».[1] E o juízo apodítico fundador remetia para a identidade do sujeito, o célebre cogito ergo sum, se penso existo enquanto este ser pensante, que pode, é verdade, assemelhar-se a outros seres pensantes, mas a primeira evidência é a deste eu pensante, identidade autogerada e autocertificada.

Não será Immanuel Kant a revogar radicalmente a centralidade do ego, embora o configure em três faculdades (prática — moral —, estética e pura — entendimento), que estão aquém e além do sujeito histórico e, num certo sentido, novidade relativamente a Descartes, da própria humanidade (somente uma espécie racional entre outras possíveis). Temos de esperar por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (parcialmente contemporâneo de Kant) para que a verdade (agora mais dependente da racionalidade história do que da do indivíduo) e a identidade se definam a partir de novas condições de possibilidade.

Interessa-me aqui falar sobretudo da identidade, é a partir dela que veremos se o inferno são, ou não, os outros. E com Hegel abre-se, de facto, a possibilidade de o inferno estar noutrem. É bastante conhecida a dialética do «senhor e do escravo» (ou «servo»), ela resume todo um pensamento que explicitamente, e talvez pela primeira vez, coloca outrem na construção da subjetividade. A consciência deixa de ser a consciência de si, como no cogito cartesiano, ela só é autoevidente pelo reconhecimento de outrem, só ele me permite reconhecer-me. Como senhor ou como escravo, embora este processo de subjetivação seja um pouco mais complexo do que isto, porque uma certa liberdade, dentro do fatalismo histórico, mantém aberta a possibilidade de recusar ou modificar a forma como me reconhecem.

Seja como for, esta inter-relação eu-outrem como centro do processo de subjetivação foi uma das ideias mais férteis da modernidade. A sociologia, a psicologia, a psicanálise, a filosofia, a antropologia… não seriam, em grande parte, as mesmas sem ela. Na filosofia temos, por exemplo, Michel Foucault (pouco hegeliano, diga-se), a pensar o poder como relações de poder, a ação que uns têm sobre as ações dos outros. Mais do que os modelos jurídicos ou institucionais do poder, sempre dominados pela ideia de Estado, Foucault mostra (sobretudo em ensaios curtos ou entrevistas das décadas de 1970 e 1980, muito menos em Vigiar e Punir ou no curso do Collège de France sobre biopolítica) como o poder emerge, numa ontologia da aparição e desaparição, das relações eu-outrem. E se é verdade que há, e deve haver, instituições, elas são mais o resultado das micro-relações de poder do que a sua causa. Noutros termos, as instituições adequam-se às relações de poder que estabelecemos diariamente uns com os outros. É por isso que a democracia, diz ele, não pode emergir em qualquer lado, nem a democracia nem o fascismo.[2] Nessas relações, para que o múltiplo prevaleça sobre o uno, haverá sempre liberdade e resistência (sem isto serão relações de domínio), sendo, pois, mais agonísticas do que antagónicas.

No seguimento da dialética hegeliana (sem vos poder assegurar que as influências são diretas), Michel Tournier, em Vendredi ou les Limbes du Pacifique[3], mostra-nos como sem alteridade não se pode afirmar a identidade (Crusoe não era antes de aparecer Sexta-Feira). Mas talvez tenha sido Jean-Paul Sartre um dos melhores continuadores de Hegel. Para este filósofo francês, quando somos olhados por outrem, ficamos, aparentemente, sem defesas relativamente a «uma liberdade que não é a [nossa] liberdade. É neste sentido que podemos considerar-nos como “escravos”, na medida em que aparecemos a outrem»[4]. Isto leva Sartre a assegurar que a existência do outro coloca, de facto, um limite à minha liberdade. Dirá em Huis Clos (1943/44): «O inferno são os outros». Mas isso não anula a liberdade, podemos escolher como viver o «inferno», mesmo se «o pecado originário é o meu surgimento num mundo onde há o outro»[5].

Uns dias atrás, numa crónica de Michel Eltchaninoff para o Le Magazine Littéraire, encontrei um magnífico prolongamento da discussão sobre se o inferno são, ou não, os outros. Numa carta da década de 1930, Maurice Merleau-Ponty, autor da Fenomenologia da Percepção e amigo de Sartre, dá uma lição de engate (termo da época, cá e lá) a este último. Escreve o seguinte, no seguimento de um avanço erótico mal sucedido de Sartre em direção a uma tal de «C» : «Não és nenhum Apolo, tu próprio o dizes, mas és cativante, enérgico e engraçado (mesmo quando imitas o pato Donald). Podias conquistá-los a todos. Já agora, sabes que a Castora [Simone de Beauvoir] te preferiu a mim — parece que me achou demasiado simpático. Mas a tua filosofia de sedução está errada. Estás obcecado com o olhar e a posse do outro, o que sabes ser impossível. Colocas-te num confronto agonístico: gostas dela, cabe-te a ti conquistá-la. Ou o contrário. Acredita, ela compreende-o perfeitamente. Ou cede, mas ficará sempre ressentida com a tua vitória, ou... foge.»

O que fazer então, para que ela não fuja? Resumo: anula-se o sujeito (seria Sartre capaz de tal?) e desenha-se um mundo no qual outrem, neste caso a «C», queira viver, não apenas queira, mas sinta que não pode viver noutro sítio que não naquele, se desejar ser feliz. Um mundo de coisas encarnadas (a «chair» de Merleau-Ponty), embora sem qualquer privilégio para as pessoas. Parece fácil. Mas requer imaginação e, sobretudo, a mitigação do eu, modéstia em vez de bazófia. O que seria um grande desvio ao cogito ergo sum, que conduz sempre ao imperativo do eu (mais ou menos inchado, no caso de Sartre estaria no limiar da explosão), e, principalmente, a inversão direta de «O inferno são os outros». É, aliás, assim que Merleau-Ponty termina a carta: «O inferno não são os outros».

Uma carta como prolegómenos de uma nova teoria da dialética senhor/escravo.

[1] Meditações Cartesianas e Conferências de Paris, trad. Pedro Alves, Lisboa: Edições 70, p. 29.
[2] Ver «L’intellectuel et les pouvoirs», in Dits et Écrits II, 1976-1988, Paris: Gallimard/Quarto, p. 1570, 2001 [1984].
[3] Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico, trad. Fernanda Botelho, Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
[4] O Ser e o Nada, trad. Victor Gonçalves, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 346.
[5] Idem, p. 500.

A República do Silêncio, Jean-Paul Sartre

Depois da libertação da França no pós-Guerra, a 9 de setembro de 1944, Sartre escreve um manifesto sobre a liberdade num diário criado em 1941, Lettres françaises, que viria a ser um instrumento importante do Partido Comunista Francês. Sartre publicara o seu enorme e brilhante L’Être et le néant (O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica) em 1943, no qual se confrontou, e nos confrontou, com a condição humana despida de qualquer comiseração humanista, uma descrição fria e precisa sobre a nossa condenação à liberdade (apesar das situações), a má-fé que usamos para evitarmos a responsabilidade insuportável que isso transporta, o inferno estar nos outros (com uma formulação diferente), o homem ser uma paixão inútil, uma dialética sem síntese entre o em si e o para si, uma autenticidade feita de fingimento… (podem ler o prefácio que escrevi para a segunda tradução em português, aqui).

Um ano depois, já não se trata de pensar a nossa condenação à liberdade (necessidade esvaziada de quase todo o valor, um amor fati sem o sobre-homem nietzschiano), mas de descobrir a liberdade mais pura onde julgávamos ser impossível encontrá-la, ou, no máximo, apanhar dela aí apenas alguns frágeis farrapos. Segue-se a minha tradução de «La République du Silence».

«Nunca fomos tão livres como durante a ocupação alemã. Tínhamos perdido todos os nossos direitos, em primeiro lugar o direito à palavra; éramos insultados na cara todos os dias e tínhamos de nos calar; éramos deportados em massa, como operários, como judeus, como prisioneiros políticos; por todo o lado, nas paredes, nos jornais, no ecrã, víamos a face imunda que os nossos opressores nos queriam dar de nós próprios: por causa de tudo isto, éramos livres. Como o veneno nazi se infiltrava até aos nossos pensamentos, cada pensamento justo era uma conquista; como uma polícia todo-poderosa procurava constranger-nos ao silêncio, cada palavra tornava-se tão preciosa como uma declaração de princípio; como éramos perseguidos, cada um dos nossos gestos tinha o peso de um compromisso [engagement].

As circunstâncias muitas vezes atrozes da nossa luta permitiram-nos finalmente viver, sem farol e sem vela, essa situação dilacerante, insuportável a que se chama condição humana. O exílio, o cativeiro, a morte sobretudo, que são habilmente mascarados nos momentos felizes, eram para nós os objetos perpétuos das nossas preocupações, aprendemos que não são acidentes evitáveis, nem mesmo ameaças constantes mas exteriores: tivemos de os ver como a nossa sorte, o nosso destino, a fonte profunda da nossa realidade de seres humanos; a cada segundo vivíamos na sua plenitude o significado desta pequena frase banal: «Todos os homens são mortais». E a escolha que cada um fazia de si era autêntica porque era feita na presença da morte, porque poderia sempre ter-se exprimido sob a forma: «Antes a morte do que...». E não falo aqui da elite que foram os verdadeiros resistentes, mas de todos os franceses que, a todas as horas do dia e da noite, durante quatro anos, disseram não. A própria crueldade do inimigo levou-nos aos limites da nossa condição ao constranger-nos a colocar a nós próprios as questões que evitamos em paz: todos aqueles de nós — e que francês não esteve uma vez ou outra neste caso? — que conheciam alguns pormenores interessantes sobre a Resistência, perguntavam-se angustiadamente: «Se me torturarem, resistirei?»

Assim, levantava-se a própria questão da liberdade e estávamos à beira do conhecimento mais profundo que o homem pode ter de si. Porque o segredo de um homem não é o seu complexo de Édipo ou de inferioridade, é o próprio limite da sua liberdade, o seu poder de resistir aos suplícios e à morte. Para aqueles que tiveram uma atividade clandestina, as circunstâncias da sua luta traziam uma experiência nova: não combatiam em pleno dia, como os soldados; perseguidos na solidão, presos na solidão, resistiram aos suplícios no abandono, na miséria mais completa: sozinhos e nus diante de carrascos bem barbeados, bem alimentados e bem vestidos, que gozavam com a sua carne miserável e cuja consciência satisfeita e poder social desmedido lhes davam toda a aparência de terem razão. No entanto, no fundo desta solidão, eram os outros, todos os outros, todos os camaradas da resistência que eles defendiam; bastava uma palavra para provocar dez, cem detenções. Esta responsabilidade total na solidão total não será o próprio desvelamento da nossa liberdade?

Esta negligência, esta solidão, este risco enorme era igual para todos, dirigentes e homens; para aqueles que levavam mensagens cujo conteúdo desconheciam, como para aqueles que decidiam sobre toda a Resistência, havia uma única pena: a prisão, a deportação, a morte. Não há exército no mundo no qual haja uma tal igualdade de riscos para o soldado e para o generalíssimo. E é por isso que a Resistência foi uma verdadeira democracia: para o soldado e para o chefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma liberdade absoluta na disciplina.

Assim, na sombra e no sangue, constitui-se a mais forte das Repúblicas. Cada um dos seus cidadãos sabia que devia isso a todos e que só podia contar consigo próprio; cada um deles cumpriu, na mais completa negligência, o seu papel histórico. Cada um deles comprometeu-se, contra os opressores, a ser ele próprio, irremediavelmente e, ao escolher-se a si próprio na sua liberdade, escolheu a liberdade de todos. Esta república sem instituições, sem exército, sem polícia, teve de ser conquistada e afirmada por cada francês em cada momento contra o nazismo.

Eis-nos agora à beira de outra república: podemos esperar que ela conserve, em plena luz do dia, as virtudes austeras da República do Silêncio e da Noite

Livrarias ou Bibliotecas?

Eu (é um outro), durante um café filosófico na livraria Snob

Ontem, encontrei um apontamento que guardei da revista Philosophie magazine, creio que pertence a um dos cronistas residentes, mas não tenho a certeza (as web-pesquisas foram infrutíferas). Costumo revisitar as ideias que me vão marcando, sei que sou o resultado, dentro e fora da minha memória, daquilo que elas compuseram na rede psicobiológica que ampara as linhas de inteligibilidade. Muitas, em modo de corsário ingénuo, recuperei-as de mentes muito mais avisadas, como a de Nietzsche, do que eu. Notas pausadas ou fulgurantes, profundas ou superficiais, complexas ou simples, únicas ou sujeitas a um ecossistema discursivo, verbais ou imagéticas, também os sons, a música que, para Schopenhauer e outros, revela, não sem perigo, o âmago do mundo. Tudo isto forma a minha biblioteca de sentidos, um arquivo que vai orientando uma cosmovisão (nunca fixa), várias motivações, por vezes contraditórias, e também alguns imperativos. Um solo que não evita, e até alimenta, uma certa imperfeição grosseira, e por isso me projeta para o futuro em modo, nem sempre inteligente, de autossuperação. Posso dizer que me vou tornando «naquilo que sou» (percebi finalmente esta sentença nietzschiana), sem esperança, nem receio (oh, os meus amigos estoicos! Lamento todos os dias que não tenham derrotado à nascença o cristianismo).

Por tudo isto, mas não apenas por isto, há muito que me apaixonei por bibliotecas e livrarias, são os meus templos de ascese. Da biblioteca da Gulbenkian numa cidade bafienta de Trás-os-Montes à da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Da livraria Buchholz à Snob, passando pela FNAC do Chiado. Conheço poucas no estrangeiro, apesar de ter viajado bastante. Talvez signifique que o fetiche se fica pelos livros, os livros que posso ler (em diferentes línguas, é verdade, mas sobretudo em português, é esta a minha língua preferida (uma escolha?), apesar de ser capaz de pensar em francês, castelhano e quase em inglês e alemão). Não é, pois, o esplendor do local, mas os livros o que mais me interessa. E muitos, cada vez mais, são em grande parte projetos de leitura, não há tempo para tantas conversas impressas, conversas que fazem vibrar membranas da alma, não levo livros que ambicionem menos. Mas nenhum fica por folhear até encontrar uma página, um capítulo capaz de incendiar a razão, e quase nunca deixo de pegar fogo.

Vejamos o que anotei (sem autor, um descuido que não é comum) sobre a diferença entre livrarias e bibliotecas: «gosto mais das livrarias do que das bibliotecas. As livrarias obrigam-nos a confrontarmo-nos com tudo o que devemos ler, enquanto as bibliotecas nos convidam a ler tudo o que queremos ler. Umas sentam os corpos debaixo de candeeiros de secretária como manjedouras de cultura, outras abrem horizontes e põem em movimento. Se a livraria é essencial, não é apenas pelas coisas essenciais que vende, é porque aí se encontra o que não se estava à procura. E, por vezes, encontra-se porque alguém, um livreiro por exemplo, tal como eu tento fazer ao partilhar convosco as minhas leituras na revista Philosophie magazine, vos diz: “Toma, devias ler isto, deve interessar-te, agradar-te...”. Se as livrarias são essenciais, é porque, tal como o sentido de beleza de Kant, tornam os livros universalmente comunicáveis.»

A loucura de Nietzsche

Nietzsche com a Mãe, Franziska Nietzsche, depois do colapso mental do filósofo

O colapso mental de Friedrich Nietzsche tornou-se evidente no início de janeiro de 1889. Há um rascunho de carta de 25 de dezembro de 1888 para Cosima Wagner com indícios de loucura, por exemplo assina com Der Antichrist, mas a tergiversação sem retorno começa a 30 de dezembro e acentua-se a partir de 1 de janeiro até à última missiva de 6 de janeiro a Jacob Burkhardt. A 3 desse mês terá protegido um cavalo dos acoites no meio da rua, caindo logo depois desamparado e lavado em lágrimas, sendo posteriormente transportado para a sua modesta pensão da praça Carlo Alberto, em Turim, pelo seu hospedeiro, Davide Fino. Este episódio, real ou não, pouco importa, recorda-nos que os cínicos gregos eram sobretudo criticados por misturarem as formas humana e animal, ignorar os limites essenciais da nossa identidade (na altura, a moral tinha mais que ver com o Ser do que com o dever ser). Entre 3 e 7 de janeiro fecha-se no seu quarto, alguns pensionistas dizem tê-lo ouvido vociferar, proferir longos monólogos em voz alta, ensaiar cantos e improvisações histriónicas ao piano. Escreve várias cartas até 6 de janeiro, aos poucos amigos que ainda julga ter (Meta von Salis, Georg Brandes, Paul Deussen, Malwida von Meysenbug, Franz Overbeck, Heinrich Köselitz, Erwin Rohde, Heinrich Wiener, Jacob Burkhardt), mas também a Cosima Wagner, ao Rei Umberto, ao Cardeal Mariani. Assina com Nietzsche Caeser, Dionysos ou Der Gekreuzigte (O Crucificado). Refere encontros com o Papa, príncipes, heróis históricos. Parece ter o poder geopolítico de sacudir a Europa inteira. Quer nomear os redatores-chefes do Journal des Débats e do Journal des deux Mondes. Assegura que os seus livros Assim Falou Zaratustra e Ecce Homo salvarão o mundo ou matarão quem os ler sem preparação. Mas logo a 31 de dezembro lamenta desconhecer a sua morada (talvez uma coisa menor para quem julga que vai refazer o mundo).

Como disse, a 6 de janeiro escreve ao seu antigo colega Jacob Burckhardt, historiador da arte na Universidade de Basileia, começando por confidenciar-lhe que «preferia muito mais ser professor em Basileia do que Deus» (zuletzt wäre ich sehr viel lieber Basler Professor als Gott), refere também que afinal é Victor Emmanuel, mais, mostrando-se um pouco embaraçado, parece agora não ter dúvidas de que, no fundo, é todos os nomes da históriaWas unangenehm ist und meiner Bescheidenheit zusetzt, ist, dass im Grunde jeder Name in der Geschichte ich bin»), esta dispersão onomástica, laceração dionisíaca da identidade (preparando o mergulho no «Uno primordial») já estava presente numa carta de 3 de janeiro a Cosima Wagner. Quase a terminar a missiva endereçada a Burckhardt sentencia o dever de suprimir Wilhelm Bismarck e todos os antissemitas.

Ao ler a carta, Burckhardt percebeu que Nietzsche perdeu a razão e avisa um amigo próximo, Franz Overbeck, que depois de se aconselhar com o diretor clínico do hospital psiquiátrico de Basileia decide ir buscá-lo a Itália. Primeiro, é internado na clínica psiquiátrica de Basileia, depois na de Iena. O diagnóstico, nas duas instituições, vai no sentido de uma paralisia geral («desordem mental devido a uma paralisia») provocada pela sífilis (uma bactéria patogénica, capaz de ficar latente durante mais de 20 anos, que só terá cura em 1929). Nietzsche deixou o hospital a 24 de março de 1890, ficando ao cuidado da mãe até julho de 1897 e depois, até à sua morte (25 de agosto de 1900), ao da sua irmã (Elisabeth Förster-Nietzsche, 1846-1935), no Nietzsche-Archiv de Weimar.

A queda na loucura originou várias teorias, algumas amigas da conspiração, mas por detrás do dissenso entre perspetivas (sífilis, psicose, envenenamento lento, descompensação religioso-moral…)[1] há uma certeza: a loucura contribuiu para a fama do autor. Podia ter sido ao contrário? Talvez, mas para isso Nietzsche devia escrever e pensar menos brilhantemente, a sua genialidade (ainda podemos usar este termo?) salvou-o da pequena loucura em retrospetiva do «maluco da aldeia». E àqueles que insistem em ver, por exemplo, nos títulos dos capítulos «Porque escrevo livros tão bons» e «Porque sou um destino» (ambos em Ecce Homo) a megalomania de um louco, talvez devamos responder que não passam do efeito de uma «razão ardente», como lhe chama Eduardo Prado Coelho,[2] «para a qual não há “acontecimento em si”, mas uma pluralidade de “sentidos”». Ou atender, respeitando-o talvez mais do que devemos, ao que amigo Heinrich Köselizt disse: «Nietzsche tinha o direito de ser megalómano porque era brilhante». Ou, ainda, recordar a apologia da loucura lúcida de Erasmo de Roterdão. De qualquer forma, Nietzsche sabia que muitos se interessam mais pelo autor do que pelos textos (ele próprio, aliás, defendia a importância indelével da biografia para a interpretação da obra)[3], e culminar na loucura alimenta quase sempre o culto da personalidade, uma santidade invertida, mas ainda assim santificável.

Das múltiplas leituras que, sem dúvida, podemos fazer da loucura de Nietzsche, umas mais centradas na linha clínica (psicanalítica ou neurológica), outras na hermenêutica (interpretações ao discurso com e sem biografia à mistura), Michel Foucault é porventura o autor que mais nos estimula a pensar. Porque analisa a loucura do ponto de vista dos «sistemas de pensamento» e consequente organização sociopolítica e dos «modos de discurso», atendendo ao caso particular de Nietzsche (também de Goya, Van Gogh, Artaud ou, entre outros, Hölderlin), esse filósofo revolucionário (talvez, para Foucault, malgré lui) que marcou a mutação (assegurada pela sua obra mas igualmente por aquilo que estava à volta e fora dela) do sistema de pensamento e regime de discurso filosófico.

Em termos muito gerais, Foucault lê a loucura de Nietzsche em dois registos diferentes em L'Histoire de la folie à l'âge classique[4] (História da Loucura na Época Clássica) e num manuscrito de 1966, Le discours philosophique[5] (O Discurso Filosófico). Entre os dois textos não há linhas irredutíveis de antagonismo, mas a mudança permite compor uma leitura do pensamento nietzschiano mais abrangente e profunda. Na História da Loucura, Nietzsche serve — depois de mostrar como se concebeu uma relação diferente entre a loucura e a normalidade, sobretudo a discursiva — para demonstrar que a partir de um certo momento, primórdios da pós-modernidade, cessa de haver uma passagem da loucura à obra e desta àquela. No Discurso Filosófico, Foucault pensa, já em pós-estruturalista, a mutação do modo discursivo próprio (historicamente próprio, não essencialmente próprio) à filosofia instaurado no tempo de Descartes. O discurso filosófico deixa de procurar a verdade, buscando, analisando e justificando «ideias claras e distintas», através de um eu impessoal, e abre-se a uma subjetividade (não kantiana) capaz, como em Nietzsche, de usar, com objetivos mais performativos de constativos (para influenciar mais do que para revelar), diferentes modos discursivos, já não se distinguindo irrevogavelmente do literário e do religioso, para diagnosticar o presente. Projetando-se, assim, uma mutação que parece atrair a morte da filosofia porque permite, contra a História da Loucura, que a loucura incendeie o discurso filosófico, como o faz na poesia e na religião.

História da Loucura:

Neste ensaio (um estruturalismo entre a história e a filosofia, sendo, por isso, nas palavras de Foucault, uma «arqueologia») mostra como a loucura, esse outro da razão, começou por ser recebida no Renascimento enquanto esplendor da imaginação; com inúmeras práticas heterogéneas, muitas ritualísticas, o louco seria uma figura do limiar. Bosch denunciava o verniz frágil da racionalidade com que nos cobríamos. Os loucos passageiros (muitos andavam em navios à procura de um porto que não os mandasse de volta para o mar, para esse utopos que parecia ser o lugar mais apropriado para um outro humano, o da noite) mostravam as zonas porosas entre a loucura e a razão. Com Erasmo de Roterdão e Montaigne, essa denúncia foi esbatida e o pesadelo do reino do Caos substituído em grande parte pela ironia. Mas o mais importante é que a época Clássica varreu de uma só vez todas as ambiguidades perturbadoras, inventou e justificou o grande enfermement (encerramento), internaram-se os loucos, os mendigos, os vagabundos, os delinquentes, os pobres... A época Clássica, reino da razão, desmistificou a loucura e outros comportamentos desviantes, ao diálogo com o reverso da luz contrapôs medidas administrativas, dessacralizou a loucura e fez dela um problema de saúde pública que, a favor da «ordem social», impunha construir muros altos e protetores. Todavia, nesta época só se é louco «na medida em que a [nossa] loucura não se esgota na verdade do louco. É por isso que, na experiência clássica, a loucura pode ser simultaneamente um pouco criminosa, um pouco fingida, um pouco imoral, um pouco razoável também[6] Isto deu ao louco uma liberdade ambígua: a de ser livre mas investido da respetiva responsabilidade. Cheirando a contradição e a injustiça, os primórdios do Iluminismo decidiram encerrar os loucos para que pudessem exercer plenamente a liberdade sem os riscos da responsabilidade: «libera-se da familiaridade com o crime e o mal, mas para o encerrar [enfermer] nos mecanismos rigorosos de um determinismo. Ele só é totalmente inocente no absoluto de uma não-liberdade»[7]. Por isso, «O louco é agora totalmente livre e totalmente excluído da liberdade[8] Ei-lo alienado, ensimesmado na sua liberdade e na sua verdade, sem exterior. É assim que se compreende esta sentença de Foucault: «A loucura clássica pertencia às regiões do silêncio[9] Descartes foi uma das testemunhas de acusação da loucura, excluindo-a por completo da filosofia: A vontade, e necessidade, da verdade torna impossível o lirismo da desrazão. É isso que nos assegura nas Meditações Sobre a Filosofia Primeira (1641). Para ele, o erro é possível e, até, legítimo (resulta da nossa condição dual: corpo e alma, sonho e lucidez). Mas não a desrazão, o louco não pode (porque não consegue percorrer o caminho da verdade) filosofar. Contudo, esta situação altera-se nos séculos xviii e xix, lentamente a loucura ganha uma linguagem na qual pode falar. Foucault dá o exemplo de Le neveu de Rameau de Denis de Diderot (escrito entre 1762 e 1773) e da poesia romântica, sobretudo a alemã. Nesta última, a linguagem é a do «fim último e do recomeço absoluto: fim do homem que se afunda na noite, e descoberta, no fim dessa noite, de uma luz que é a das coisas no seu primeiríssimo começo.»[10] Com isto, diz Foucault, o louco redobra o seu poder de nos fascinar, a sua linguagem continua a não poder revelar, como a cartesiana, as figuras invisíveis do mundo, mas assume a revelação das «verdades secretas do homem»[11], mas «ele transporta mais verdades do que suas próprias»; por isso, «do homem ao homem, o caminho passa pelo homem louco[12] Neste sentido, as características dos autores, seja a melancolia de Swift, o delírio de Rousseau ou a loucura de Torquato Tasso pertencem às suas obras.

Relativamente a Nietzsche, exemplo, com Van Gogh, Goya e Artaud, do fim da modernidade — quando o homem parece desaparecer do primeiro plano a favor da linguagem —[13], a História da Loucura conclui-se pela definição da loucura como «ausência de obra»:[14] «A loucura é a absoluta rutura da obra».[15] Os últimos escritos de Nietzsche do janeiro de 1889 (as chamadas «Cartas de Loucura»), marcam a ruína total da possibilidade de continuar a produzir obras, limiar a partir do qual reina o silêncio ou as gesticulações inconsequentes. De igual modo, van Gogh e Artaud sabiam que a loucura os afastava irredutivelmente das suas obras. Mas antes do colapso, a possibilidade de enlouquecer alimenta já o receio da catástrofe da dispersão ou da dissolução, do eu e das interpretações. Se para Nietzsche, diz Foucault, as interpretações nunca se completam – sendo a filosofia uma espécie de «filologia suspensa» —, é também pelo receio de poder atingir um ponto de não retorno. A correspondência de Freud mostra igualmente esse escrúpulo. Assim, num trabalho muito próximo da História da Loucura, «O que está em questão no ponto de rutura da interpretação, nesta convergência da interpretação em direção a um ponto que a torna impossível, poderá bem ser qualquer coisa como a experiência da loucura.[16] Regressemos, porém, à História da Loucura para concluir com a tese definitiva de Foucault relativa à loucura de Nietzsche e à ausência de obra: «não interessa muito saber quando se insinuou no orgulho de Nietzsche, da humildade de Van Gogh a voz primeira da loucura. Só há loucura como o instante último da obra — esta repele-a indefinidamente para os seus confins: onde há obra, não há loucura».[17]

O Discurso Filosófico:

No capítulo onze, no qual Foucault nos informa de que a multiplicação dos heterónimos nietzschianos «indicam o estilhaçamento do sujeito filosofante, a sua existência múltipla, a sua dispersão por todos os ventos do discurso.»[18] E isto vai provocar uma mutação (mutation) na relação entre o discurso filosófico e quem o enuncia, abrindo a «possibilidade do filósofo louco[19] «Com Nietzsche, continua Foucault, a decomposição do discurso filosófico deixa-o desprotegido e indefeso contra a loucura. Esta tem agora a possibilidade de o incendiar, tal como pode incendiar a fúria dos poetas, o delírio dos tiranos, a embriaguez dos homens de Deus».[20] Assim, a separação clara entre obra e loucura na História da Loucura é agora substituída pela abertura da filosofia, das obras filosóficas à loucura. A partir disto é legítimo vermos na megalomania nietzschiana presente pelo menos desde 1876-78 (Humano, Demasiado Humano) um sinal de loucura, fornecendo aos textos outras linhas de inteligibilidade. Podemos, inclusive, questionar-nos se Nietzsche teria escrito Assim Falou Zaratustra (1883-85) ou Ecce Homo (final de 1888) com tanto fulgor se não fosse já um pouco louco. É, portanto, outro paradigma do discurso filosófico que Foucault descobre em 1966. E, ao mesmo tempo, como veremos na citação que se segue, a loucura que podia fazer parte do lirismo poético, como em Hölderlin, passa agora a poder habitar a filosofia: «Nas últimas cartas de Nietzsche, na convocação dos soberanos, no postal a Strindberg, na mensagem final a Peter Gast, é, de facto, o pensamento de Nietzsche que se afunda. Mas podemos reconhecer aí os limites da sua filosofia — mais a sua suspensão do que a sua interrupção —, e de, a partir de agora, estarmos dispostos a perguntar a toda a loucura não só o que pode incluir de poético, mas o que pode, no seu abismo, enunciar de filosófico, é um sinal de que o discurso filosófico se desenrola segundo um novo modo de ser e se organiza segundo um novo regime. “Cantai-me um cântico novo, o mundo está transfigurado”».21

[1] O artigo de Éric Vartzbed, «Quelques considérations cliniques sur la folie de Nietzsche» (in Psychothérapies, vol. 25, 2005/1, pp. 21-27), permite enquadrar o problema e está disponível na Web.
[2] Introdução a Michel Foucault, As Palavras e as Coisas de Michel Foucault, trad. António Ramos Rosa, p. 10 na nova edição das Edições 70, 2022 [1966].
[3] «Conto, simplificando-a, a história destes filósofos [Tales, Anaximandro, Heraclito, Parménides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates]: só quero extrair de cada sistema o ponto que é um fragmento de personalidade [Persönlichkeit] e pertence à parte do irrefutável e indiscutível que a história tem de preservar». (Werke: kritische Studienausgabe, 15 volumes, Munich-Berlin/New York: dtv-Walter de Gruyter, 1999 — KSA —1, pp. 801-802). Em Para a Genealogia da Moral II, § 7, centra a análise noutro ponto: o do casamento. Nenhum grande filósofo foi, diz, casado, é, aliás, impossível imaginá-los assim (no panteão de pensadores celibatários estão, entre outros, Platão, Descartes, Schopenhauer e Kant). No § 8 da mesma obra, elogia a vontade de silêncio e um timbre de voz suave. Para logo depois se concentrar no recato, os filósofos detestam mulheres, glória e príncipes.
[4] Paris: Gallimard,1961/1964, cito a partir da edição tel de 1972 (há uma tradução em português do Brasil na editora Perspectiva, 2/2022).
[5] Publicado em 2023 pela Gallimard/Seuil com um extenso aparato crítico, da responsabilidade de François Ewald, Orazio Irrera e Daniele Lorenzini, está prevista para breve, meados de 2024, uma tradução minha nas Edições 70.
[6] Histoire de la folie, op. cit., p. 635.
[7] Idem, p. 636.
[8] Ibidem.
[9] Idem, p. 637.
[10] Idem, p. 639.
[11] Idem, p. 640.
[12] Idem, pp. 640 e 649.
[13] É célebre o final de As Palavras e as Coisas, no qual Foucault arrisca dizer que «O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim.» (idem, p. 497).
[14] Podemos deduzir do que refere Foucault que ele não nega que nestes autores a loucura faça parte das suas obras, mas apenas ao nível da receção, são os leitores que incluem a loucura terminal deles nos seus escritos prévios. (Cf. idem, p 661).
[15] Idem, p. 662.
[16] Michel Foucault, «Nietzsche, Freud, Marx» [1967], in Dits et écrits I, n.º 46, pp. 592-608, Paris: Gallimard/Quarto, 2001 [1967]. O texto foi lido no Colóquio de Royaumont de 1964.
[17] Histoire de la folie, op. cit., p. 663.
[18] Le discours philosophique, op. cit., p. 185.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem. No aparato crítico da edição da Gallimard/Seuil, que fará também parte do que vier a ser publicado nas Edições 70, há a seguinte nota importante redigida pelos editores: «possibilidade do filósofo louco» de que falava Foucault em 1963, e que se aproxima mais de O Discurso Filosófico do que da História da Loucura, no seu ensaio sobre Bataille, foi, de facto, (re)aberta por Nietzsche: «É exatamente o inverso do movimento que sustenta a sabedoria ocidental desde Sócrates: a linguagem filosófica prometia a esta sabedoria a unidade serena de uma subjetividade que triunfaria nela, tendo sido inteiramente constituída por ela e através dela. Mas se a linguagem filosófica é o que repete incansavelmente o tormento do filósofo e lança ao vento a sua subjetividade, então não só a sabedoria já não pode valer como figura de composição e de recompensa, como se abre inevitavelmente uma possibilidade, no fim da linguagem filosófica [...]: a possibilidade do filósofo louco. Quer dizer, encontrar, não fora da sua linguagem (por um acidente do exterior, ou por um exercício imaginário), mas no seu interior, no âmago das suas possibilidades, a transgressão do seu ser filósofo» (M. Foucault, «Préface à la transgression»).
[21] Idem, p. 186. Foucault cita uma carta de Nietzsche de 4 de janeiro de 1889 a Heinrich Köselitz (Peter Gast), Turim. A carta completa termina depois de «transfigurado» com «todos os céus se alegram» e é assinada por «O Crucificado»: «Singe mir ein neues Lied: die Welt ist verklärt und alle Himmel freuen sich. Der Gekreuzigte.» Friedrich Nietzsche, Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, Band 8, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1986, p. 575.