Dois poemas de INCÊNDIOS, o novo livro de João Miguel Henriques

João Miguel Henriques, Incêndios
não edições, dezembro 2016
Encomendas: nao.edicoes@gmail.com

As feridas, com a nossa idade

saram lentas as feridas com a nossa idade
os golpes todos fecham só a custo
e devagar cresce a crosta sobre a carne
e como tarda a cair com a nossa idade
os meses que demora, são esperas longas
e a pele com a nossa idade após a crosta
já não é pele como dantes renovada
mas cicatriz dos nossos anos, da nossa idade
marcação de ferida lenta e pena funda
de funda ferida que a idade já não cura


Canção de infância

já noite dentro vimos então um sapo
um vulto escuro e lento
destacado contra o murete caiado
à luz mortiça de uma lua nova

só dias mais tarde, semanas
lembrados do sapo gordo e nocturno
nos veio à cabeça a tal cançoneta de infância

e o batráquio animal, de boca torta
pareceu-nos já outra coisa

o tempo

aquele olhar
a existência

tudo comeu
nem ofereceu


Lançamento do livro terá lugar no dia 20 de Dezembro pelas 21:00, no Bar A Barraca, Lisboa. Ver mais informação aqui.


Dois poemas de Juan Carlos de León

SE ABRE EL PARÉNTESIS:

el poema aflora y sangra
      sangra
(( crece ))
      y nuevamente
      sangra
al punto que
la uva
puede traducirnos el lenguaje
de la vid


REDENCIÓN

El pez
dispone su boca
al silencio 

filamentos de tiempo como arcos
resumen la curvatura de la vida

resonancia en círculos
voces y encanto 

Ha quedado mudo el río

Por la mañana
las mujeres
desnudan su carne redentora 


Nietzsche e a inspiração

Recuperando linhas de pensamento neo-românticas, Nietzsche apresenta em Ecce Homo, “Also sprach Zarathustra” §3, a inspiração como a revelação que torna fulgurantemente algo visível ou audível. Sacode o sujeito no seu centro de gravidade, desarranja-o e fá-lo sofrer, mas ao mesmo tempo sopra uma felicidade extasiante. Esta experiência deve ser aceite sem questionar a origem, acolhê-la como um “clarão” (Blitz), sem análises, e abraçá-la como uma dádiva. A inspiração acontece no mais alto grau do involuntário, numa tormenta do sentimento de liberdade, de incondicionalidade, de poder, de divindade (“Alles geschieht im höchsten Grade unfreiwillig, aber wie in einem Sturme von Freiheits-Gefühl, von Unbedingtsein, von Macht, von Göttlichkeit...”). Resumindo, um clarão grávido de verdades que abalam e elevam fulmina um passageiro que ou abate ou imortaliza. Foi desta forma que, por exemplo, Nietzsche sentiu, em puro arrebatamento, a emergência do pensamento do Eterno Retorno do Mesmo.

Duas notas para a Praça da Galiza

1.
nesse velho prédio dos anos oitenta
caixote aparentemente desprovido de poética
humidade nos cantos
varandas fechadas
(elevador em manutenção
para sua segurança)

havia uma dor constante
para ti imperceptível

o peso do regresso iminente
misturava-se com a euforia
de sentir o universo ao nosso dispor

tingindo de chumbo o alfa pendular
tingindo de melancolia a vista sobre o douro

chovia na partida para esse fogo
o regresso era já o derradeiro abandono da esperança
o que tínhamos parecia tudo
a vida parecia a nossa determinação

mas as fachadas eram húmidas
carregadas de estoicismo

para sua segurança


2. 
no porto
a sofreguidão era sempre outonal
os fritos da rua escura sabiam a um passado por vir
um quarto de dose era barato
e trazia solidão que dava para três

era como se a nossa juventude
se estilhaçasse
em miseráveis fragmentos de perplexidade

Dois poemas de Raquel Gaio

vi outro dia
um cavalo semi-morto no meu nome
no corpo dele, a mensagem :
quanto tempo resistimos agonizando?

as unhas parecem cozer o tempo
e a fé é uma grande ressaca

uma longa crina nubla nossa visão
temos o olho doente da mesma paisagem

há um grande abandono por aqui
um terreno baldio uma rodovia abismo
artérias inchadas de barrancos

mas (quase) ninguém vê

sabes que nossos nomes são grande uma invenção
mas o corpo, o precipício de toda espera.


e pensar que também é destino essa convalescência, essa busca pelo olho aberto, o enigma desapiedado, saber que cada ida também é uma volta precária, a carne aberta enferma primata, penso nas migrações que não aconteceram, no útero devastado, o tempo oxidando um corpo, estou numa cova de palavras e tu não me ouves daqui, estamos sempre aterrorizados pelos gestos, pelas patas inflamadas de vaidade, lodo, desejo, o colo, já te disseram que os ossos apodrecem diante de toda espera? temos na boca o desamparo da busca, e nos encontros a porção de eternidade, de infinito, labirinto que rege as distâncias e os espantos, todo nome aduba um terreno baldio e sei que no escuro, tu sabes também, não há ruído sem pretensão, sabemos da cólera e imaginamos o paraíso, o leito, um deus, mesmo sabendo o quão é difícil viver no nosso tempo, esse vazio, essa besta que grunhe, esse chicote que nos devora, tenho tanta ilusão nas articulações que desmorono antes mesmo de toda chegada.