os protestos

para a Clara Crepaldi

às vezes sonho que estamos
perdidas em protestos violentos
numa cidade qualquer
que não sei nomear ao certo
e que atacamos os monumentos
as fontes e as estátuas dos mortos
caídos em batalha
que desfiguramos os rostos
dos generais, dos escritores, dos compositores
calçamos sapatilhas e usamos bonés na cabeça
e do pescoço pendem-nos máscaras de gás
corremos à frente de contingentes da polícia
por ruas barricadas cujo traçado não sabemos ler 

meio cegas e cansadas e a sangrar
queremos continuar a esmurrar os muros
com a cadência de um concerto de ira
escondemo-nos nas catedrais
e queremos rejeitar o mundo
que construíram para nós
queremos construir outro mundo  

há depois um breve momento de silêncio
e no escuro da imensa nave central
tu tosses sangue com a cabeça
escondida no meu peito
e nunca te abracei sem deixar de reparar
o quanto mais frágil do que eu és tu
mais baixa e mais magra e de ombros estreitos
e ao mesmo tempo melhor a ficar calada
e muito melhor na paciência e mais vivaz
como se tudo o que nunca me contas
alimentasse a força com que voltas
a tudo o que precisas de terminar
das minhas amigas a melhor e a mais clássica
de todas no perfil e nos braços tatuados
de figuras negras e vermelhas tiradas
de antigos vasos gregos 

o grande órgão ao centro da igreja começa a tocar
no escuro e gente coberta de pó e sangue
como nós senta-se nas cadeiras austeras
velas acendem-se aqui e ali
e nós como duas raparigas
ao fim de um longo dia aprisionadas
nos bancos da escola
adormecemos de cansaço com as costas
contra pedras húmidas e frias
num edifício de uma rua
que devia dar para o monte parnasso
ou para a devastação de rituais irracionais
de onde se pudesse extrair outro começo
estudando cuidadosamente na penumbra
os rostos dos homens que entram e saem
tentando decidir quais de entre eles
não mereceriam algumas pauladas
cegamente desferidas 

ainda que possa mesmo ser
que uma de nós venha a ser mãe de rapazes
ordeiros e que todos os dias se vistam
de fatos cinzentos para servirem os sonhos
lucrativos de um patrão qualquer
que lhes dê conforto suficiente
para alimentar a ilusão de que não são eles
parte dos explorados
e que explorar outros é necessário e justificável 

um palerma que se penteie de risco ao lado
que para nossa maior raiva
alimente a multidão dos que queiram numa eleição qualquer
pôr a cruz no partido de algum psicopata incompetente até
a ser demagogo no seu ódio contra a humanidade
murmurando inanidades incoerentes
cheias de veneno e promessas de destruição 

numa falta de empatia legitimada
por uma muito antiga lógica de vingança
repetida até à náusea por gente disposta a acreditar
que da ignominia talvez venha
liberdade e igualdade 
seremos talvez mães de filhos da mãe
dizes tu e rimo-nos com um desespero
fundo e com gosto  

aqui dentro
reparo nas tuas mãos esfoladas
à nossa volta
as ruas estão a pegar fogo
temos cada vez mais sede
e há cada vez menos água 

Paris, 8 de Dezembro de 2018

Oxford, 14 de Dezembro de 2018

 

Que tens para perdoar

Que tens para perdoar   se uma mesma suspensão

da terra tem a forma de uma pausa   que tens

a perdoar senão trocares os nomes dos deuses

e chamares trigo ao fogo   e chamares coxo

ao relâmpago dos relâmpagos   que tens

por perdoar senão a morte de todas estas

estátuas que naufragam contigo de madrugada

e assentam sob o caos da tua mão direita

geradora de formas   modificadora de roncos

mosto   calúnia   escândalo   que tens tu

de perdoar senão a última variação

do teu jazigo e a forma quase ingénua

como nunca te converteste  e talvez

desconcertante   como todos os rios se reduzem

à margem de Babilónia    a Grande

e já reparaste como os teus seios são jardins

e se suspendem das minhas mãos   como quando

me perdoavas   e dizias   apesar de tudo

apesar de tudo   e nunca ninguém soube dizer

tão bem essas palavras   apesar de tudo

quando sinto os teus braços   (pausa)

sabe-me bem e eu nessas alturas   ou seja

nessa altura recordei-me sempre de uma tarde

em que vi três humanos   um homem no meio   jovem

duas mulheres da mesma idade e todos

de braço dado   e que melhor perdão

para todo o filho do homem   para todo o desconcerto

do que essa partitura   e bem sei   tu sabes

que lamechas   que foleiro   que piroso

é toda essa merda   e dizias   devias talvez ler

mais um bocadinho   e escusavas de repetir

a mesma porcaria que já milhares de poetas disseram

com palavras diferentes   é certo   mas a mesma coisa

não te perdoo essa falta de protagonismo

nessas alturas   nessa altura fiquei sempre

em silêncio pensando para mim mesmo

como sempre disseste o que queria ouvir

a ponto de duvidar da minha própria existência

e apesar de tudo soube-me bem   demasiado bem

como um pecado que dura e para o qual

não há perdão nem recusa   nem um movimento

isto é   uma cruz que se veja   um espinho

que se crave onde realmente interessa   na perna

onde dói   onde a dor é verdadeira   no ombro

que não se pode mexer enquanto te operam

e a carne nunca a soubeste tão verdadeira

que perdão   meu amor   que perdão

pode haver para essa margem   para o estuário

para o lugar de onde nasciam barcos

para ir ao cu dos índios e os encher

das nossas doenças   que perdão   para esse

para esse casaco de couro encostado à porta

do metro   que digo   dentro do metro

repleto de tabaco   e que grunhe e que acena

talvez a um conhecido que o encara

e talvez finja que te conheça   e que perdão

para esse ronco e para todas as pontes de ferro

que exercem a sua violência sobre as costas

dos suicidas que foram outrora deuses

filhos de deuses e que louvavam à sua maneira

as águas   ou pelo menos o que sobrava delas.

Traduzir poesia

Regresso ao problema da tradução, o tradutor é sempre um traidor, mas o mundo das letras não consegue viver sem ele (há cerca de 20 000 línguas e as que não são traduzidas desaparecerão ao mesmo tempo que o mundo possível que formularam). Nem sequer parcialmente, ninguém ousa acabar com essa tarefa que, nas palavras de Paul Ricœur, será sempre mal realizada, uma tradução é sempre uma «má tradução». (2021: 4) De igual modo, George Steiner assegura-nos que «nenhuma tradução é inteiramente comensurável com o original, uma vez que mesmo na mais perfeita tradução há sempre essas linhas quebradiças que afectam o contacto entre a instância da origem e a da receção.» (2002: 247) Este pensador (sobre–pensador) acrescenta: «Mais falsa é a tradução “grande” ou “de nível superior” que interpõe a sua fulguração obscura e o seu virtuosismo entre nós próprios e o original.» (Idem: 248) O tradutor deve apagar-se.

Contudo, sem traduções, tese que Ricœur e Steiner partilham, o espírito humano sofreria uma crescente inércia intelectual, caindo-se numa fragmentação ensimesmada de mundos presos na repetição mimética de uma matriz discursiva dominante. Talvez as línguas não sejam internamente avessas à inovação, mas também é fácil constatar que uma cultura sem traduções nos seus modos de existir tende mais para a repetição do que para a diferença. Quando se traduz vai-se muito para lá da substituição das palavras da língua de partida por palavras, equivalentes (quando as há), da língua de chegada. Quando se traduz, traduzem-se também, porventura sobretudo, visões do mundo. E precisamos de várias para sermos cosmopolitas.

Há, naturalmente, disparidades entre traduzir um livro técnico, traduzir filosofia, traduzir ficção ou traduzir poesia (ponho, conscientemente, a poesia fora da ficção). Na filosofia, por exemplo, a que mais pratico, numa diacronia que me permite notar a instabilidade dos métodos (às vezes chamo-lhe arte) que fui usando, traduzir conceitos-chave é tanto mais arriscado quanto temos (e somos) uma língua muito pouco conceptualizada. Contudo, se a palavra que usamos para traduzir o conceito (palavra dominante, que fabrica por si só sentido) ganhar uma densidade de significado que a autodetermine e eleve o seu grau explicativo, a tradução está ganha (claro, depois de limpar as gralhas e as formulações demasiado presas ao original, sobretudo quando se traduz de uma língua românica).

O problema maior, e mais delicado, porque reside na forte incomensurabilidade semântica e sintática e vive na economia sensível da nuance, habita na tradução poética (contudo, «Onde, porém, estiver o perigo, cresce / O salvífico também.» — Hölderlin, Patmos). Aqui, é simultaneamente mais difícil apagar o tradutor e respeitar as soluções (por vezes são meras apostas, que no melhor dos casos se transformam em necessidades) que passam a Stimmung (espírito, ânimo…, o pré-discurso que baliza o discurso) original para o novo poema (uma transferência por osmose). Acresce que o poder heurístico da poesia é diretamente proporcional à formulação exata do seu discurso, isto redobra a dificuldade de traduzir. «Exato» não significa um exato abstrato, mas um que quer ser preciso quase até à loucura num certo contexto (o sentido da palavra contido no seu uso, Wittgenstein, o reino da verdade–relâmpago, cheio de mitologias evanescentes), às vezes minúsculo, e raramente microcosmático (quem se atreve, pois, a traduzir poesia pelo dicionário?). É por isso que me permito citar novamente Steiner: «Os tradutores são homens que tacteiam, procurando-se, no interior de uma bruma geral.» (Idem: 91)

Ricœur concorda comigo, ou eu com ele (mais eu com ele), quando escreve: «A poesia [oferece], com efeito, a máxima dificuldade da união inseparável do sentido e da sonoridade, do significante e do significado.» (Idem: 5) Na poesia, além da distância, já referida, entre semânticas e sintaxes, as frases não assentam no mesmo solo cultural ou há intertextualidades mais ou menos escondidas (isto partilha-o com as outras áreas da tradução) e, num grau superlativo, os ecossistemas subjetivos do poeta e do tradutor são, pela hipertrofia da singularidade do primeiro (feita de uma extrema e arriscada imigração interior), de constelações que podem ter muito pouco em comum (um bom poeta encontraria a palavra ou o sintagma certo para esta distância quase absoluta). Mas há mais. Compreendemos todos a força do não-dito, ora a economia discursiva poética é pródiga no silêncio e no silenciamento, ninguém quer palavras a mais, pontuação a mais, declinações a mais. De uma ou de outra forma, toda a poesia ama a frugalidade (indigência, para alguns) do Haiku, os poetas são podadores linguísticos obsessivos. Falar sobre as máximas fulgurações e evanescências com o mínio de palavras. Como traduzir, então, o não-dito, o do poeta e o da cultura?

Assim, se o conselho de Ricœur sobre abandonar o «sonho de uma tradução perfeita» está, presumo, bem justificado no que acabei de dizer, isso não significa, ainda com o mesmo autor, que abandonemos o «desejo de traduzir» (para ele, mais forte do que os constrangimentos e a utilidade da tarefa). Que é também um desejo de «hospitalidade linguística», de trazer o autor até ao leitor e levar este àquele. De os acomodar sem anular totalmente a hostilidade, o confronto irredutível entre o primeiro (que nunca é primordial) ato de criação e o segundo ato de criação (a recriação da tradução), um agon que eleva.

Em suma (gostamos deste dispositivo retórico), talvez seja isto que leva Umberto Eco, em Dire quasi la stessa cosa (Dizer Quase a Mesma Coisa), à ideia de negociação, como se faz, aliás, no uso quotidiano da língua. Ou, regressando a Ricœur, a procurar, numa aparente modéstia, uma «equivalência sem identidade». Que passa, antes de tudo, por um leitor da tradução sentir quase o mesmo entusiasmo do do original. E nisto a musicalidade é muito importante, pelo menos tanto quanto a composição, alógica, alegórica do sentido. É que não há poema (exagero), por mais franciscano que seja, que não queira embriagar-nos, conduzir-nos à porta de uma união mística.  

ECO, Umberto, Dire quasi la stessa cosa. Esperienze di traduzione. Milan: Bompiani, 2003.
STEINER, George, Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução, trad. port. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2002 [1975/92/98].
RICŒUR, Paul, Sur la traduction. Paris : Les Belles Lettres, 2021 [2004].

2 poemas de Que Coisa é um Alguidar? de J. Carlos Teixeira

METADES DE UMA LARANJA

para a Mafalda Sofia Gomes

I

Quando Maria se perdeu no deserto
não sei se seriam
cálices ou ondas
que lhe desciam pelos seios
enviuvados.

II

O tumor da tempestade
arrastou o túmulo da tua cria,
levando consigo o calor sombrio
dos rebanhos em negação.

III

Escreveram nas paredes
que os pombos tombaram.

IV

O teu filho morreu
e no fundo dos montes
ouvem-se os gritos das mulheres
ecoando nas bocas dos peixes.

V

Esses olhos nunca mais
voltarão a cair aos seus pés
como mantos pousados aos ombros
das montanhas.

VI

Ventre da manhã,
os tambores já não tocam
nesta cidade.

ACOLITAR

Um terço do meu corpo
poderia cobrir uma boca
como pão e vinho

não seria ensinamento,
seria romance
aprender o catecismo
de pé descalço

acenderam a candeia:
            debaixo da tua batina
            caberia uma romaria.

J. Carlos Teixeira, Que Coisa é um Alguidar?, Editora Exclamação, 2024

à maneira de m.c.r.

trago na mochila
o jornal da semana passada
e doem-me os olhos
das intermináveis horas
das luzes artificiais do convés 

atravessei barcos e portos
vi os pássaros voarem contra o vento
desistirem não desistirem
até se perderem de vista
antes de aportar em égina
em hidra, em spetses
antes de adormecer de cansaço
em quartos em casas de amigos 

os homens estão aprisionados
dentro dos seus corpos
dentro das veias dos seus corpos
estão cansados, feridos
são ferozes, solitários
não sabem conversar
pararam de correr
há muito que não sonham
com tentar fugir
com um prazer cego de discordar
isento de uma necessidade homicida  

trago as mãos cheias de pequenos cortes
que ainda não começaram a cicatrizar
a novos golpes de sol e mar
passaram pelas cordas
estão laceradas por dentro e por fora
sangram, infectam
tacteiam os interruptores
de aguçadas luzes artificiais
que suspendem aquela muito longa noite
onde algum inquieto sonho seria conselheiro
de coisas que ainda não descansaram
sobre o meu colo 

espero atentíssima
e demoro-me diante das vitrines
para ver camisas de linho
azuis, brancas, às riscas azuis e brancas
atadas em espera da resolução de um corpo
são mercadoria e no entanto sua é também
a estranha dignidade
das variações da cor do mar
a perfeita memória do verão
na paixão de algum apaixonado artífice
surreal e agora quase impossível
na luz estagnada do inverno
uma visão deslocada
de pura velocidade
feita para traficar no idioma dos milagres 

estou ainda naquela cidade onde já não estou
estarei talvez já naquela cidade onde estarei 

entretanto os homens correm
fumam estão doentes
são sordidamente impacientes
com a tristeza de clientes
a quem foram dadas demasiadas escolhas
ou demasiado poucas escolhas 

chegam esquecidos do assombro
demasiado alto dos orgasmos
balbuciando vagas coisas
sobre confusas metáforas
sobre a electricidade nas fábricas
as palavras não os resolvem
servem para que tropecem
para que se afundem
mais na própria queda 

de manhã, atrasada, quase demasiado tarde
sentada atrás de ti vejo o teu corpo inquieto
que se move na cadeira
sigo-o com o olhar
move-se devagar, inclina-se, espraia-se
soergue-se e eu penso nas praias
nos corpos flutuando à superfície do mar
num dia de sol no sal sobre a pele
e ele ocorre-me querido como o ar 

vejo-o em todas as idades de uma vida
sem data, sem lugar, sem gramática

antes dos nomes próprios
a tua voz começa a encher a sala
e reconheço como é natural reconhecer-te
de repente, na vontade de dançar  

Lisboa, 7 de Dezembro de 2023

Oxford, 12 de Dezembro de 2023