Breves questões a um crítico

Encontrei-me com Alberto (o pudor e a humildade inibem-no de revelar o seu nome real), um dos mais prestigiados críticos literários da sua geração, numa reputada e careira confeitaria situada no Rossio. Enquanto aguardava pela minha chegada, este enfermo de uma horrível mania da pontualidade degustou dois “sublimes” pastéis de nata pintalgados de canela, um café “sem princípio” e telefonou à mãe, viúva que reside sozinha num apartamento parisiense a transbordar de gatos. Quando aportei, ainda dentro dos trinta minutos académicos, repousava em cima da mesa do pensador um montinho de obras poéticas dadas à estampa por talentos lusitanos para mim desconhecidos. “São bons?”, perguntei-lhe, ao que me respondeu que não sabia, pois não tinha por hábito ler livros sobre os quais escrevia. Os livros estavam ali à espera de um garçon escrevinhador de versos, que trocava bolos por poemas.

 

Num lendário bate-boca travado com o chamado “Poeta Desconhecido”, Alberto afirmou-se recentemente como o supra-Gaspar Simões. O que quis dizer com isso?

 

Em 1912, Fernando Pessoa anunciou a vinda do supra-Camões. Presumo que o novo Camões fosse o próprio Pessoa. Dada a minha natureza chalaceira, não demorei a apossar-me deste supra que, a juntar a Gaspar Simões, símbolo da crítica literária, me conferiria o transcendente título de crítico-mor da pátria. Quem, para além de mim, o melhor dos melhores, o crème de la crème, poderia assumir esse papel? Além disso, é notória a influência que o meu método de trabalho tem exercido sobre outros críticos.

 

Como descreveria o seu método de trabalho?

Há uns anos, ainda jovem de barba rala, lia qualquer coisa, devorava literalmente tudo. Era confuso, não distinguia os bons dos maus livros, até que uma depressão nervosa me fez entender que não havia homem mais importante no meu mundo do que eu. Reduzi as leituras até chegar a um número redondo, o zero. A leitura perturba o discernimento, a capacidade analítica. Passamos pelos dias sem dar pelo sol ou pela chuva, zonzos de tanto papel varado. Pagam-me para escrever uma vez por semana, abandonar a leitura foi um grito de sobrevivência. Chegara ao precipício da existência, ou eu ou os livros, ou a saúde ou o vício do entretenimento. Optei pela sanidade mental, livrei-me dos livros, de todos. Acredita que não tenho um único livro em casa? Nem um livro de receitas, nem uma lista telefónica. O meu método de trabalho é, pois, intuitivo, baseia-se na crença no poder da adjectivação e das frases floreadas.

 

Como avalia livros que não leu?

Confio no que ouço e no que sinto, conheço críticos e escritores, frequentamos as mesmas festas. E medito sobre o que vejo. O aspecto do livro é fundamental: a cor da capa, a fonte escolhida, a fotografia do autor. Em suma, o bom crítico depende do bom gosto. 

 

Poderia aprofundar sobre o “poder da adjectivação”?

Com o adjectivo, meu companheiro de longa data, evito horas de reflexão. O que demoraria um dia a escrever sai em dez minutos. Um “brilhante” resume um livro. A um poeta estreante ofereço o clássico “fulgurante” ou o mais composto “pedrada no charco”. Descubro expressões invulgares. Veja bem que fui eu quem esgalhou a seguinte frase: “Manuel, poeta lúcido cujo maior talento é deslindar, de modo vibrátil e voluptuosamente feérico, as angústias do mapa rememorativo.” Como se traduz uma frase destas? De modo nenhum. Nem eu sei o que pretendi dizer. Inspiro-me, despejo estes lirismos. Se me confrontarem, se me acusarem de não fazer sentido, retruco que para um asno só a palha é literária. Há uma outra questão, já abordada por seguidores meus, relacionada com a limitação de caracteres de um artigo de jornal. Como poderei reflectir sobre um livro se não me dão espaço para o fazer? Sou apologista do ensaio longo. Como não me dão espaço para esse ensaio, protesto com uma retórica absolutamente acrítica.

 

Que conselhos daria a críticos emergentes?

À semelhança de qualquer artista, o crítico depende das suas capacidades criativas, do tão desvalorizado talento, que é uma energia inata. Nascemos ou não dotados deste dom – porque é um dom avaliar convenientemente um livro sem o conhecer. Seguir o coração parece boa recomendação.

 

O crítico, exausto, recusou-se a responder a mais perguntas. Despediu-se com um intenso beijo na face e esfumou-se na tarde chuvosa. 

Estrela pura

O poeta, romancista, escritor e pensador António Carlos António é um homem ocupadíssimo. Desde o ano passado que ficara de me conceder uma entrevista. António Carlos António é a pérola que mais cintila dentro de uma gaveta de pérolas que ainda não chegaram a ver a luz do dia. O seu momento chegará. Acredito eu, acredita quem o lê, quem o ouve, quem o vê. António Carlos é bonito, é inteligente, ginga sem tocar no solo com a sola dos sapatos. Com alguma agressividade, pede-me para que publique a entrevista sem revisões. Deseja a coisa em bruto, como tudo que faz. Com brutalidade. 

O que anda a escrever?
 

Um ensaio sobre um romance da minha autoria ainda não publicado. Trata-se, talvez,  do ensaio que melhor analisa a minha obra ficcional. É algo muito abrangente. Quem quiser perceber minha ficção, necessitará certamente de ler este trabalho mental nunca vertido para o papel. Agora perguntar-me-ia como se pode ler algo não escrito. Ouvindo-me.

Quando teremos acesso aos seus escritos? Não sei se tem noção de que ainda não publicou nada.
 

(Sorrisos) Eu não procuro editoras. As editoras que me procurem. Os meus manuscritos estão disponíveis, quando tiver paciência transponho-os para o papel. Basta virem ter comigo. Apanhem o metro para o Intendente, perguntem pelo António Carlos António, ou então pelo “Bonito”, e não haverá quem não saiba dizer onde moro. (Cofia a barbicha) Modestamente, muito modestamente, tenho vindo a construir uma fama que transcende o Intendente. Sou o escritor mais famoso de Lisboa. E nunca publiquei nada. Quem se pode gabar disso? Até lhe posso dizer que preferiria nunca publicar em papel e andar de casa em casa a declamar a minha obra. 

Gostaria de ser um Pynchon ou um Salinger, alguém que não aparece?
 

Sou o António Carlos António, não me confundam com outros. Não conheço esses autores. São bons? Sabe, sou puro em tudo o que faço. Não leio outros autores para que a minha escrita não sofra distorções. Quero escrever sem influências. Posso aparecer. Gostaria de aparecer. No entanto, reflectindo sobre o assunto, tenho alguma dificuldade com algumas questões. O que é aparecer? Ser influenciado. Ser um animal social. Rejeito. Não uso telemóveis para que a tecnologia não me influencie. Não escrevo no computador com receio da influência. Não quero ser influenciado. Sabe como escrevo? Com o cérebro. Nem o papel merece o esforço da minha mão. 

Diz-se puro. Não lê enquanto escreve “mentalmente”? 
 

Eu inverteria a questão. Pode um autor ler enquanto escreve? Se eu lesse esse tal Pynchon enquanto escrevo, escreveria como Pynchon. Não posso dar-me a esse luxo. Estaria a contribuir para a alienação de que o mundo padece.

Alienação no sentido de Marcuse?
 

No sentido de António Carlos António. Posso gabar-me de nunca ter lido um livro. Não preciso de ler para escrever. Possuo pensamento próprio. Como poderia ler se estou sempre a escrever? Não se pode ser duas coisas ao mesmo tempo. Escolhi a escrita, é da escrita que me alimento. O meu cérebro está cheio de António Carlos António. 

Consulta dicionários?
 

Claro que não. As palavras chegam-me quando devem chegar. O que não aparece é porque não estava destinado a aparecer. 

Qual o tema do seu romance?
 

O meu ensaio é sobre isso. O romance é sobre mim próprio. Sobre o facto de eu ser alguém que não precisou de ter mãe, nem pai, que não passou por licenciaturas, que não leu. Fiz-me a mim mesmo e continuo a ser eu, imune a tudo o que me rodeia. 

Tem preocupações sociais?
 

Podemos dizer que sim. Escrevo para combater essa corja de analfabetos que para aí anda, saltando de bar em bar, gabando-se da sua própria genialidade. Sou o representante do povo. O povo nas letras. Vomito quando penso nessa praga de escribas que se arrasta pelas ruas de Lisboa. Maltrapilhos que enchem o Intendente, os Anjos, o Bairro Alto. Essa malta mete-me nojo. Com o seu estilinho provinciano. Aldeões mascarados de citadinos. Com as roupinhas rasgadas e as malhas e sei lá o quê. Um ror de pulhas. 

A inveja é uma preocupação social?

Inveja? Eu. Ai que desmaio. Desfaleço. Vejo escuro. Ceguei. (De apalpadela em apalpadela chega-me ao peito) Onde estou? Inveja? Ai que me feriram. Pior do que Lear. (Conhece Shakespeare apesar de afirmar nunca ter lido nada) Mulher desalmada.

Preocupa-se com alguma questão importante?

Preocupo-me com a morte, com a minha morte, não quero morrer. Depois de mim, que tipo de artista haverá? Esta ralé? (Apruma a gola da camisa) Vamos esclarecer uma coisa. Não sinto inveja. Sou um altruísta. Sou mundo. Os meus braços são divinos, podem ser repartidos pelos pobres. O meu corpo é como um livro infinito, passível de múltiplas leituras e interpretações. O meu corpo nu repartido pelos pobres, como pão e vinho. O tema da minha obra resume-se a eu ser mais do que o planeta. Não posso ler nada para além daquilo que é meu, daquilo que penso, pois nada é maior do que eu. Eu sou o planeta. Os pobres que venham a mim e se alimentem dos meus pensamentos. (Emociona-se, a voz treme-lhe) Fossem todos como eu e não haveria fome.

Qual a sua opinião sobre Herberto Helder?

Não sei quem é e, sublinhe-se, prefiro não saber.

E Oliveira?

O meu tio ardina. Um homem assaz respeitável. Casou-se com uma brasileira e fez fortuna lá para o Minho. Foi pioneiro no ofício do proxenetismo lá para aquelas bandas.

A entrevistadora fecha, amargurada, o caderno. Ainda não apanhou escritor que não lhe enchesse as medidas. Todos touros bravios, todos homens vigorosos. Este portento entristece-a. O sexo entristece-a. Será isso a alienação? O momento depois do prazer. A morte de Bataille?

 

Vou pegar na bicicleta e rodar tudo de novo até ser feliz


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Na casa desconhecida há um pátio com glicínias. Ouve-se o relógio da igreja. São os sinos, a brindar com o seu “cântico nos beirais”. Há uma cozinha com uma grande chaminé, umas escadas em pedra, e um piano, “sempre tocado a quatro mãos”, que guarda as impressões digitais para o futuro. Há uma sala onde se joga às cartas, “um rei, uma vitória, uma dama de espadas”. Alguém puxa de um trunfo, rendido na certeza de poder baralhar, de novo, o destino, e encontrá-lo, novamente, ao amanhecer. É a carta da “juventude”. A que vale mais e leva tudo à frente. Num dos quartos ouve-se Beethoven, quinta sinfonia, e noutro fala-se do Zeca, da Carla e da Maria. Há um livro onde “tudo se escreve”. Está guardado na cave, onde a casa “estende os seus braços e ergue-se em tourada numa possível lezíria onde os sismos recuam a medo”. Na casa grande da Granja, arde um fogo, “por motivos que o fogo não entende”, e noutra casa há uma capela onde há anos brotaram objectos que estavam enterrados, uma sala com um palco e portas tapadas, e talvez pessoas emparedadas.

Rui Pedro Gonçalves nasceu em 1973, na freguesia de Pontével, concelho do Cartaxo. Fez ali a escola primária. Depois foi estudar para o Cartaxo, para o Colégio Marcelino Mesquita, que já não existe. Fez a escola secundária ainda no concelho, e quando entrou na universidade, no curso de Geografia, na Faculdade de Letras, mudou-se para Lisboa. Viveu durante alguns anos na capital e depois voltou para o Cartaxo, para Pontével, para a terra da infância e para a casa de família, uma casa “muito grande e muito antiga, com muitos quartos, um espaço por onde já passaram várias gerações”.

O primeiro livro saiu em 2004, Uma Terra chamada Imaginário, com ilustrações de Inês Xavier. Foi publicado pela Câmara Municipal do Cartaxo, como recompensa por ter ganho o Prémio Literário Marcelino Mesquita, que distingue os melhores trabalhos inéditos nas modalidades de teatro, prosa e poesia, e que é atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos.

É nessa terra chamada imaginário que descobrimos que houve uma bicicleta: “nessa velha bicicleta / que ainda guardas no teu quarto de brinquedos / atravessámos o vento / ao som dos pedais da infância”, e que essa bicicleta, como vamos saber depois, foi muito importante: “Parece mentira / Mas foi um engano essa infância / de cerejas. / O pior de tudo / foi um furo no pneu / havia a minha bicicleta / e isso foi muito importante.”

Os pais tinham uma casa agrícola, que vinha do tempo dos avós de Rui. Produziam vinho e tinham uma exploração florestal. Quando a madeira tinha de ser cortada, de sete em sete anos a dos eucaliptos, e um bom par de anos no caso dos pinheiros, Rui ajudava os pais, assim como a irmã, mais nova, que também escreve. Foi criado com os avós paternos. O avô era produtor de vinho e tinha uma relojoaria. Tinham grandes propriedades de terra. Os avós maternos, com quem teve pouco contacto, também eram agricultores.  Hoje, já poucas pessoas vivem da terra. Em parte, é essa a “história de certas famílias do Ribatejo e de outros lugares do país.”

Começou a escrever poesia “mais a sério” depois dos vinte, “vinte e poucos anos”. Não se lembra do primeiro poema. Começou, e continuou, por incentivo dos amigos, que liam o que escrevia e gostavam. Estava na faculdade, no curso de Geografia, que afinal não era bem aquilo que ele queria. Então? “Uma profissão ligada à terra”. “A coisa que eu mais gosto é de trabalhar com a terra. Depois vem a poesia, em segunda, terceiro ou até em quarto lugar.” Antes passava as tarde de inverno no café, mas agora escreve sobretudo à noite. “Tenho uma visão prática do dia. Gosto de me levantar cedo, fazer o que tiver a fazer, e isto [a poesia] não é uma obrigação, é um prazer que vem depois das coisas obrigatórias”. Também não lê durante o dia. “Não consigo conceber estar dias inteiros a ler, para mim não faz sentido.” Então? Caminha e cuida das plantas, e trata das tarefas ligadas à casa. E nos anos em que consegue colocação, ensina Geografia.

Mas voltemos à bicicleta. Entre casas reais e imaginárias, esses “organismos que ardem por dentro”,  houve portanto uma bicicleta. “A bicicleta é para mim a coisa mais palpável e mais materializável que talvez exista na minha vida”. A bicicleta serviu para tudo, para fazer amizades, descobrir ruínas e terriolas, andar dentro de casa e fugir dos cães. E o poema, o tal que fala duma infância de cerejas e de um furo no pneu, continua: “O mesmo será dizer que andei por aí / A buzinar aos cães e aos velhos / E a fazer trim / Nos trilhos das formigas.

Houve, aliás, várias bicicletas. Verde, azul, verde, e agora uma de montanha, porque apesar de a bicicleta estar guardada naquele “lugar feliz da nossa cabeça, onde as memórias boas estão guardadas”, e onde as raparigas e os rapazes crescidos em desespero ainda vão dormir à cama da mãe, o poeta escreve: “Ainda tenho uma bicicleta obsessiva / no rebentar das ondas do mar / da minha solidão”. E noutro poema: “Vou pegar na bicicleta / E rodar tudo de novo / Até ser feliz”.

 Em 2006, Rui Pedro Gonçalves publicou o livro Noites na Granja (edição de autor). Na primeira página há uma citação de um livro de Gógol, o Noites na Granja ao Pé de Dikanka, que ajuda a explicar o título do seu livro. Diz assim: “Petró dormiu dois dias e duas noites seguidos. Ao terceiro dia acordou e pôs-se a olhar demoradamente para todos os cantos da sua casa, mas foi em vão que tentou lembrar-se de alguma coisa: a sua memória era como o bolso de um velho sovina, donde ninguém consegue tirar um tostão”. Uma epígrafe que, de resto, não podia ser mais enganadora. O que se segue é um exercício de memória, de recuperação, de regresso a casa, à infância e à bicicleta, ensaiado ao longo das páginas deste documento pessoal. Um bocado como o homem do cais que atira as coisas todas para o rio, sapatos, chapéus, livros, um frigorífico, um elefante, presos a uma corda, e depois, já em velho, volta para vir buscá-las e levá-las para aquele lugar feliz da cabeça. Os últimos versos de um dos poemas dizem assim: “À noite / Ainda de janela aberta à grande planície, / Ouvíamos os cânticos da terra e a sua transpiração mediterrânica. / Sem o sabermos, / Íamos fundando raízes no interior de nós / E, depois, adormecíamos na frescura do pinhal / E dormíamos muito, muito.”

Rui Pedro Gonçalves é também autor de Diques (2007) e Nitratos do Chile (2010), título que vem do painel de azulejos que ainda hoje se encontra em muitas localidades portuguesas, “Adubai com Nitrato do Chile”, o adubo natural que era usado na agricultura, e que o avô, segundo conta, provavelmente terá usado para enriquecer a terra. O título presta-lhe por isso homenagem.

Em 2009, participou num livro de textos e poemas publicado pela editora Averno, Merry Christmas, que reúne autores como Alberto Pimenta, Fernando Cabral Martins, Manuel de Freitas, Renata Correia Botelho, entre outros, e em 2012 participou em Ruindade, o livro dos poetas ‘Ruis’: Rui Caeiro, Rui Pires Cabral, Rui Pedro Gonçalves, Rui Miguel Ribeiro e Rui Azevedo Ribeiro. Tem também poemas publicados em alguns números da revista “Telhados de Vidro”, editada por Manuel de Freitas e Inês Dias.

Este ano publicou Um Rapaz à Procura da sua Idade, pela editora Do Lado Esquerdo. O livro abre como uma dedicatória a Bernado Sassetti: “Era uma vez um rapaz que gostava de tocar piano. Aprendeu a tocar, pois não conseguia ter gaivotas entre quatro paredes. Um certo dia, o piano ficou fechado e o rapaz foi ter com as gaivotas. Ainda foi a tempo de registar umas certas notas musicais, mas deixou-as consigo, por ser tarde nesse dia de Maio”. Rui não chegou a conhecer o pianista, mas admira a música dele. “Tem um bocado a ver com a bicicleta, com o movimento da bicicleta. É uma música circular, obsessiva, como se andasse sempre em círculo.” Como se quisesse rodar tudo de novo até ser feliz.

 

Entrevista a Paulo Rodrigues Ferreira

Tendo lançado recentemente Sonhos de Lobo, Paulo Rodrigues Ferreira, co-editor da Enfermaria 6, é hoje um homem mais confiante. Poder-se-ia até dizer mais maduro. Encontrei-o numa tasca que tresandava a refogado a ler uma biografia de Napoleão Bonaparte. “Gostaria de ter sido este tipo. Até nascemos no mesmo dia”, confessou com um encolher de ombros que revelava resignação por já não ir a tempo de conquistar a Rússia. Acendi uma cigarrilha, ofereci uma ao autor, que logo recusou dizendo que não era capaz de fumar uma sem fumar duas. O entrevistado é daquelas pessoas que contam piadas sem esboçar um sorriso. Mostra-se sério sem que, no entanto, essa seriedade indicie qualquer tipo de arrogância. Assemelha-se a uma rocha. O mar bate e não se move. Há gente assim. Pergunto-me se terá esta seriedade em todos os aspectos da vida.

 Mal vi o seu livro, fiquei muito curiosa. Adoro gente nascida em Agosto. Leão é dos meus signos preferidos. Muito obrigada por ter arranjado tempo para responder a estas questões. Os seus textos têm muitas vezes um tom de crónica. São textos autobiográficos? Considera-se um escritor confessional?

 Vinha no autocarro a ler uma entrevista de George Steiner em que este cita uma frase de Dostoiévski. A frase era mais ou menos esta: somos livres por podermos dizer não à realidade. Os meus textos têm muito de autobiográfico mas ao mesmo tempo são a negação completa dessa autobiografia. Em The Facts, Philip Roth diz que toda a ficção começa nos factos mas não termina nos factos. Quem conhecer certos acontecimentos da minha infância ou adolescência, reconhecerá muito daquilo que se encontra em Sonhos de Lobo. Mas pensará: isto não é a verdade, as coisas não aconteceram daquela maneira. Os factos são incontornáveis, não podem ser apagados, mas a maneira como decido pegar neles pode transformá-los em algo completamente fantasioso. Sou livre por poder dizer não à realidade, ou melhor, sou livre por poder rescrever uma realidade que foi atroz, modificar uma realidade cruel ao ponto de tornar cómica uma situação que me pode ter trazido um grande sofrimento. Os textos de Sonhos de Lobo são contos da mesma maneira que textos de vinte palavras de Lydia Davis são contos, mas também poderiam ser crónicas ou cartas ou páginas de um diário, mesmo quando se escreve na terceira pessoa e se inventa uma personagem que trabalha na terra e mata os vizinhos. Um dos meus livros preferidos é Cartas a Lucílio, de Séneca. Sempre me pareceu que aquilo era mais do que um conjunto de cartas. Trata-se de uma obra filosófica, de um grande romance sobre nada, sem acontecimentos, sem personagens, só com ensinamentos sobre a vida. Se confessional for algo parecido com aquilo que Séneca fazia, então sou.

 Googlei o seu nome e descobri que este é o seu terceiro livro. Vê alguma relação entre este livro e os anteriores?

 Há uma clara relação entre os três livros: olho para eles e não me vejo a minha imagem. Acabamos os livros e eles desaparecem da nossa vida. Até o estilo com que foram escritos se esfuma. Um foi escrito aos dezoito, outro aos vinte e outro aos vinte e nove. Deve notar-se alguma evolução, tanto em termos de temáticas como de escrita. Quando escrevi os primeiros dois livros, era obcecado pela ideia de suicídio. Tinha até um certo prazer em imaginar situações em que pessoas se matavam. Agora, mesmo continuando com essa atracção pelo suicídio, não tenho tanta necessidade de estar sempre a escrever sobre o assunto. Envergonha-me pensar que publiquei livros numa altura em que nem sabia escrever. Ao mesmo tempo, há algo de fantástico nisto: tentando distanciar-me dos três livros, vejo o esforço de alguém que quer escrever cada vez melhor, o esforço de alguém que é completamente viciado na leitura, que não consegue estar sem ler, que só consegue ler. O caminho de quem lê muito é o da escrita. E a certa altura comecei a escrever. Só não me orgulho de não ter começado a escrever obras-primas com dezoito anos.

 Do que li do livro, dois temas recorrentes parecem ser o ginásio e a literatura. Estas actividades estão relacionadas para si? Lê quando vai ao ginásio? Pensa no acto de escrever como forma de halterofilismo da mente?

 A minha experiência de ginásio é muito curta. Estive uns meses num de bairro chamado “Fábrica do Físico” e assisti a situações hilariantes, como ao desabafo de um pai matulão que já não sabia o que mais fazer para que o filhote melhorasse na escola. Dizia, quase a chorar, que até o tinha espancado e nada, só negativas. Mas lia quando ia ao ginásio, especialmente na passadeira. Agora leio a passear os cães e a exercitar-me no jardim. Ler talvez seja uma forma de halterofilismo da mente. Quanto mais lemos, mais nos habilitamos a ler livros cada vez mais difíceis. Não se começa logo com Wittgenstein. É preciso começar com pesos mais fracos. Pode ser que aconteça o mesmo na escrita, mas parece-me que os processos da escrita são menos conscientes. Não consigo racionalizar. Sei que escrevo cada vez melhor mas não sei se isso se deve a escrever há cada vez mais tempo. O José Rodrigues dos Santos escreve mil páginas por ano e não escreve cada vez melhor. É difícil. O Namora também escrevia muito. E a trampa que aquilo é.

 Num dos textos do livro, duas personagens fogem para os Açores. Porquê os Açores? Não acha que há melhores sítios para onde fugir?

A questão é: haverá sítio algum para onde fugir? A nossa cabeça vai connosco para todo o lado. Os nossos problemas são os nossos problemas, não são os problemas da terra em que vivemos. Os Açores é uma terra pobre o suficiente para personagens que desejam viver longe do mundo civilizado. Fugir é uma palavra central. Talvez una quase todos os textos do livro. O mundo é tão cruel, dói tanto existir em todo o lado, que talvez a solução seja existir num sítio onde não exista nada. As pessoas não fogem para a Jamaica ou para a Tailândia, não vão participar em orgias para o resto da vida: vão fugir para o nada, são campónias e regressam ao campo. É como se não desse para escapar da depressão. Imaginar a vida como um círculo. Fugir, fugir, até regressarmos ao ponto de origem, ao ponto onde se encontram todos os fantasmas.

 Publicou o livro numa editora chamada Enfermaria 6, da qual é também um dos editores. Não acha um nome um bocado triste para uma editora? Não preferia publicar o livro numa editora com um nome mais alegre, como Lua de Papel ou Chiado Editores?

 É preciso respeito pelo nome Enfermaria 6. É só o título de um dos melhores contos de Tchekhov. Quanto à Lua de Papel ou à Chiado Editores, respeito muito as pessoas que lá trabalham mas acho horrível que se pague para editar um livro. Guardo mais carinho por quem paga para ter uma mulher ou por aquele pai que paga para ter a sua cria inscrita num clube de futebol. E Lua de Papel? Como contar isso à família? Já não basta passar a vida a dizer mal da família? Contar à família que se publicou numa editora que lembra origami.

 Um escritor contemporâneo acusou-o de cultivar o humor negro na sua escrita. Como responderia hoje a essa afirmação?

 Primeiro, é preciso esclarecer uma coisa: eu só acho essa pessoa contemporânea. Para ser escritor não basta escrever nem beber vinho nem ser muito famoso no facebook ou ser considerado um guru para meia-dúzia de arrivistas que passaram ao lado de livros fundamentais. A opinião dessa pessoa vale nada. Quanto ao humor negro, isso incomoda-me por considerar que aquilo que faço não é humor nem negro. Dedico-me à escrita. É isto. Vejamos um exemplo: a obra de Samuel Beckett está carregada de humor e de cenas sórdidas. Mas será natural resumirmos o que este génio escreveu ao rótulo “humor negro”? Não. Não faço stand-up. Escrevo. E quando se lê a escrita de alguém é preciso ler com atenção. Não basta pegar em lugares-comuns.

 Para além de escritor é também historiador. Pensa escrever um romance histórico?

 Esse é o maior insulto que já me dirigiram. Eu não sou de todo historiador. Ando há 12 anos a fugir da história. Quando acabar o doutoramento, livrar-me-ei desse fardo. Sou um Papillon. Prendi-me a algo que só me faz sofrer.

 Manteve, ao longo dos anos, vários blogs. Qual o papel do blog no seu processo criativo? Acha que faz sentido escrever literatura em blogs?

  Faz sentido escrever. Os blogs funcionam como cadernos. Nem todos os textos têm a mesma qualidade. Muitos são repetitivos. Não tenho blogs para ser lido. Apago-os, às vezes, passado muito pouco tempo. Sou muito desorganizado. Não tenho paciência para guardar os muitos cadernos que compro. A internet é boa para arquivar material que talvez desejemos posteriormente publicar em papel. Nesse sentido, diria que o blog da Enfermaria segue um pouco essa ideia. É para mim uma espécie de arquivo ao qual, ocasionalmente, se vai buscar bom material para publicar. Os blogs não devem ser levados muito a sério mas são muito úteis.

 Onde costuma escrever? Escreve em cadernos ou no computador? Com que tipo de caneta? De pé, sentado, deitado, a fazer o pino?

 Escrevo em qualquer lado, desde que exista barulho. Se estiver em casa, preciso do ruído da televisão. Gosto de cafés, de restaurantes, de autocarros ou do metro. Gosto de ter muitas pessoas estranhas à minha volta. Sofro de monofobia. Não posso sentir-me sozinho comigo mesmo. Escrevo em cadernos mas depois passo para o computador. Canetas, só pretas e que deslizem bem pelo papel. Canetas rollerbal 0,7 ou 0,8. Gosto de escrever deitado. Gosto de estar sempre deitado. Sou como Oblomov. O ideal seria escrever deitado numa cama plantada no meio de um centro comercial.

 Um reputado crítico português em tempos disse dos seus textos que eram como bombinhas que explodiam nas mãos. Revê-se na descrição? O que acha que o crítico queria dizer com isso?

 Vejo que fez o trabalho de casa.  O  crítico estava a ser literal. Cada texto rebentava-lhe nas mãos e trazia-lhe dores. Provavelmente, não acabou de ler o livro e passou um par de dias no hospital com as mãos enroladas em gaze e a levar colírio nos olhos.

 Escreve muitas vezes sobre cinema. Esta é uma arte que influencia a sua escrita?

 Influencia a minha vida. Não sei se influencia a escrita. Não sei o que influencia a escrita. Nisto sou como aqueles escritores que acham que a mão tem autonomia, que escreve sozinha, independentemente daquilo que a cabeça pensa.

Quais as suas referências cinematográficas?

David Lynch, Clint Eastwood, Kurosawa, Wes Anderson, Paul Thomas Anderson, Kubrick, Scorsese, Soderbergh, Wong Kar-Wai, Steve McQueen. 

 Gostava de ir comigo ao cinema? Podíamos ir ver as Tartarugas Ninja. Por falar nisso, viu os desenhos animados das Tartaruga Ninja?

 Terei de recusar o convite. Sou um fetichista. Reparei que ostenta uma tatuagem no ombro. Custar-me-ia deveras sair com alguém cujo ombro se encontra coberto por um golfinho azul. Para além disso, faltam-lhe os sapatos de salto alto e a saia curta. Nisto sou radical, desculpe. Mas deixe-me que lhe diga que fico feliz por ter feito referência às Tartarugas Ninja. Poucos sabem mas ao longo da minha meninice imaginei que era o Donatello.

 O autor ajeitou o blazer, despediu-se aplicando-me um suave beijo na testa e garantiu-me que, não fosse o maldito golfinho que tatuei com dezassete anos, me levaria ao cinema. Fiquei sozinha a fumar uma cigarrilha e a ler um dos contos de Sonhos de Lobo. 

Entrevista a um génio incompreendido

Latagão. É o que se me ocorre mal vejo este artista multi-facetado. Um génio dotado de um fantástico corpanzil, preso a uma camisa preta de tamanho S e sugando cigarrinhos slim. Tudo em torno deste homem parece pequeno. Os seus próprios livros diminuem duas estrelas em todas as secções de escrita cultural da nação perante o génio do autor. O longo cabelo corrido só acrescenta um charme a uma voz fina mas não feminina, fina porque poética, fina mas ao mesmo tempo arrebatadora, de um timbre pronto a inspirar multidões. O génio não tem muito tempo para entrevistas. Não por acaso, esta é a primeira que concede na vida. Avisada que estava pela sua prestimosa companheira de que não gostava de ser interrompido durante o processo criativo, foi com receio que apliquei três pancadinhas na porta da sala. “Entre”, ouvi, e logo fiquei rendida. Estava apaixonada. 

Por que motivo está a montar uma estante e não a escrever?

A criatividade não se restringe à escrita. Sou dramaturgo, poeta, editor, romancista, palrador, jogral e ainda empresário (não gosto da palavra manager) de bandas de música close to the heart, em Portugal injustamente apelidadas de pimba. Passo dias a fio encerrado nesta sala. Esperava que ficasse oito, doze horas a escrever? A fazer teses de doutoramento? Não. Um artista deve contribuir para a sociedade. O meu contributo é vasto. O meu curriculum é conhecido e fala por mim. O verdadeiro artista deve afirmar-se como um homem da renascença. Firmar créditos em diferentes áreas da produção artística (neste ponto o génio segura o martelo com firmeza e pronuncia grave e lentamente:) e nada é alheio à minha produção artística.

Mas não imaginava apanhá-lo de martelo na mão. 

Por isso não é artista, falta-lhe imaginação. Adoro surpreender. Às vezes, a minha mulher chega a casa e espanta-se. Diz: “Quiduxo, mudaste a casa toda.” Viro a casa do avesso. Entretenho-me a montar armários, estantes. Lixo, passo tapa-poros e envernizo portas. Um mestre. Não querendo ser imodesto, julgo que se nota um certo tom eclético na minha obra. Passo de uma estrutura formal clássica a uma mais experimental num piscar de olhos. E não só ao nível da forma. Veja os temas sobre os quais me debruço. Tanto aparece um professor preocupado com as grandes questões do ensino, como um viajante europeu enclausurado num tempo de alienação, feito de linhas eléctricas, de comunicações incomunicáveis elaboradas a partir de fios já sem fios, de cores e trovões imperceptíveis à vista desarmada. 

O que pode um homem sozinho?

Mudar o mundo. Ou vá, pelo menos criar o meu, perdão, o seu próprio raio de acção. O raio de acção sanciona, ou devia sancionar, o direito do artista de viver da escrita. O artista é heroico, menina, expõe-se aos trovões, aos raios e mesmo até às borrascas para iluminar o povo. (Neste ponto a cinza do cigarro do génio cai sobre a mesa, ele prontamente pede-me que segure no cigarro e delicadamente segurando no copo de whisky varre a cinza para dentro do copo quase vazio, erguendo a cabeça e brindando-me com um esgar determinado.) É por isso que me sacrifico pela humanidade todos os dias, com a minha escrita, a minha actividade de editor, dramaturgo, aqui fechado nesta sala. O artista sacrifica-se, menina. Mesmo quando foi a feira de bric-à-brac de Cantanhede, eu gostava de ter ido. Mas um artista tem de se sacrificar (o génio levanta a voz), não é quiduxa? (A mulher do génio não responde.) Ainda hei-de ser uma espécie de best-seller dos escritores subterrâneos. Um Herberto Helder da prosa. Quero ser uma testa enrugada que fale mais do que um livro. Não sei se me entende. Tenho este problema de estar à frente do meu tempo. E o meu espírito de sacrifício incompreendido, que brota do meu amor à arte e à humanidade. (Sacando de outro martelo de debaixo da mesa, ergue-se  de repente e martela dois pregos que estavam salientes na estante ao lado dele.)

Ainda hei-de ser uma espécie de best-seller dos escritores subterrâneos. Um Herberto Helder da prosa. Quero ser uma testa enrugada que fale mais do que um livro. Não sei se me entende. Tenho este problema de estar à frente do meu tempo.

Quando percebeu que estava à frente do seu tempo?

Em Budapeste, quando vi um táxi capotar à minha frente. Pensei que se Deus não me matava era porque me queria para uma missão. Nessa noite, enfiei-me no hotel a escrever. Escrevi, escrevi, bebi, fumei, escrevi, escrevi. Quer saber? Aquela obra-prima chamada Cabos de Tensão foi escrita numa única noite. Nessa noite em Budapeste (sorrindo de orgulho, penteia-se com aqueles dedos grossos e irresistíveis que transformam qualquer cigarrinho num palito). Foi aí que percebi que a humanidade é sacrifício. 

Acusam-no, por vezes, de ser hermético. O que tem a dizer sobre isso?

Acusam o Cristiano Ronaldo de ser individualista. O que tem ele a dizer sobre isso? Ganha duas Bolas de Ouro. O que tenho eu a dizer sobre o hermetismo? Que um dia, quando morrer, darão valor aos meus escritos. Podem não apreciar agora, mas surgirão gerações que me venerarão, que compreenderão a minha essência, a essência do meu sacrifício. Para além da existência há uma essência que vagueia por aí, como essa incomunicabilidade que nos sufoca até ao tutano. Não sabia desta, pois não? (bate com o martelo na estante e sorri desbragadamente). Agora ainda não me dão o devido valor. Felizmente, a minha mulher sabe que sou um génio. Quando eu desmoralizo, é ela quem me repete que sou avant la lettre. Não é, quiduxa? (A mulher não responde, lá de dentro ouve-se o bater de tachos.) Hermético? O meu génio não é hermético, mas não pode ser inteiramente compreendido por este tempo doente e apocalíptico a que o meu génio é sensível. E do qual precisa para escrever. Assim, numa sociedade que não me entende (a Penha de França não é Brooklyn) não tenho outro remédio senão expressar-me em todos os meios que tenho ao meu dispor. E depois o hermético sou eu?

Acusam o Cristiano Ronaldo de ser individualista. O que tem ele a dizer sobre isso? Ganha duas Bolas de Ouro. O que tenho eu a dizer sobre o hermetismo? Que um dia, quando morrer, darão valor aos meus escritos. Podem não apreciar agora, mas surgirão gerações que me venerarão, que compreenderão a minha essência, a essência do meu sacrifício. Para além da existência há uma essência que vagueia por aí, como essa incomunicabilidade que nos sufoca até ao tutano.

Fale-nos do seu novo projecto.

 O meu novo projecto irá combinar o meu amor à arte, o meu espírito de sacrifício, as capacidades do meu intelecto renascentista e a minha paixão pela bricolage e pelo bric-à-brac. Influenciado por uma estética brechtiana e beckettiana, mas também pela minha experiência de professor do ensino secundário em Massamá, estou a dedicar-me a escrever o guião para um filme, que será realizado por mim, e em que a personagem principal, Vasco António, um professor de liceu que vive num subúrbio desolado pós-era industrial, em meados de 2055, sozinho na sua sala, medita na possibilidade do amor num tempo alienado em que os media dominam todas as relações entre os seres humanos. Um estranho toca à porta. Há um longo diálogo. Ambos desmontam uma estante, atiram os livros pela janela e começam a construir uma mesa. Qual é a opinião da menina?

Confesso que me soa, não sei como dizer-lhe, vagamente chato. Sobretudo a parte do longo diálogo. 

Desculpe interromper, mas como é que a menina se atreve? A minha meditação metafórica sobre o valor do sacrifício e da humanidade? É um tema importante e sério. Se não houvesse intelectuais como eu, dispostos a sacrificarem-se pela humanidade para a iluminar, o que seria da humanidade? Você diria isso ao Miguel Ângelo quando ele estava lá pendurado de pincel na mão na capela Sistina, que lhe soa chato? Olhe que aquelas acrobacias não lhe hão-de ter feito nada bem às cruzes. Para cima e para baixo, de um lado para o outro, tudo na vertical. Isto é o que eu penso sempre que me ocorre o Miguel Ângelo entretido com a Sistina. Quem se preocupa com as cruzes do Miguel Ângelo? É então este o valor que dá ao meu sacrifício?

Neste ponto, o génio, no seu tamanho de latagão,  aproxima-se ameaçadoramente da câmara, segura firmemente o martelo, e fita com gravidade melancólica a câmara apagada.

Espere, vou ler-lhe um excerto do guião.

O génio sai da sala. Há um estrondo de livros a cair no chão. Uma porta bate. Alguém dá uma joelhada na parede. Vejo-me obrigada a pôr fim à entrevista saindo com alguma pressa pela janela.