Já só posso ser isto

Ernesto “Caballo” Cruz, sanguinário dentista cubano que me revestiu a boca de chumbo por intermédio de intermináveis marteladas, ganha agora a vida vendendo perfumes no aeroporto. Se mo tivessem contado, não acreditaria, mas fui eu, Átila Júnior, filho de pai incógnito, professor de francês em situação de pré-reforma vai para mais de duas décadas e meia, e autor de cinco gloriosos romances que esperam editor que lhes dê fama, quem testemunhou, com estes trémulos olhos que a terra tragará, aquilo que ninguém deseja testemunhar: a decadência de alguém que me foi mais próximo do que qualquer antigo amante ao qual tenha confiado os mais escabrosos segredos. Passei um par de noites em branco, regando a ansiedade com chávenas de chá de camomila e meditando sobre o desditoso destino de um animal que, no auge da carreira, era pela sua clientela apodado de açougueiro. Não apago a visão daquele corpanzil quase sexagenário gingando por detrás do balcão, impingindo frascos de Chanel e cremes faciais a velhotas turistas, espargindo beijocas pelo desfalecido mulherio, exibindo aquele branco sorriso que outrora me convenceu a espatifar o dinheiro que tinha e o que não tinha para que ele me metalizasse este cemitério que transporto no lugar da boca.

 Os meus dentes têm sido motivo de constante arrelia. Posso dizer que, sem cáries, sem a constante necessidade de recorrer ao alicate e à anestesia, eu seria pessoa para sentir real felicidade, habitaria um corpo deslumbrante, resultante da combinação de músculo, beleza e inteligência. Porém, na condição em que me encontro, arrancando dentes quase todos os anos, cobrindo de chumbo aqueles que se vão salvando, e sonhando com marmóreas dentições à Hollywood, subsisto à base de comprimidos e de religião. O meu caso é tão grave que trabalho unicamente para sustentar sapateiros diplomados em escavacar maxilares. Guardo o número telefónico de dois ou três dentistas para hipotéticas urgências. Movido por pura curiosidade científica, faço visitas regulares a consultórios de clínica dentária. Com a intenção de preservar os dentes que me restam, bochecho a boca dez vezes por dia com os mais dispendiosos elixires. Caso raro, o meu. Afeiçoo-me a dentistas e acredito que, caso me fosse concedida a oportunidade de voltar atrás no tempo, formar-me-ia em medicina dentária para com outra agilidade solucionar estes problemas dignos de famélico.

Longe de ser o mais talentoso ou carinhoso dentista com que privei ao longo desta jornada de trevas que foi a minha existência, Ernesto Cruz destacava-se no entanto pela veemência, pela rapidez com que decidia que certo dente deveria ser arrancado ou pela determinação com que limpava a cárie e a substituía pela chamada amálgama, produto cinzento, metalizado, que nos recorda da nossa indigente condição humana. Numa das primeiras consultas, impressionou-me a firmeza com que ele declarou que naquele dia havia arrancado dentes a vinte e dois pacientes, todos eles imigrantes e pobres e oriundos de ambientes familiares que não preveniam a pessoa para as virtudes da escova de dentes. “Só me falta você”, afirmou ele, com uma risada orgulhosa que me pôs a rezar pelo futuro. Quarenta minutos e duas anestesias depois, ao descobrir com a ponta da língua que ainda conservava a maior parte dos dentes, agradeci-lhe pelo serviço prestado e senti que uma amizade ou plataforma de compaixão começava a borbulhar. Durante seis meses, visitei o seu consultório semana sim, semana não, enchi-me de chumbo, gastei milhares e milhares de dólares para que me tratassem como um suíno num matadouro. Mas ganhei respeito e, em certa medida, admiração pelo feérico cubano. Ele foi o meu herói secreto.

Ernesto não se revela abatido no desempenho das novas funções, vende perfumes com a mesma alegria com que espetava seringas nas gengivas. Independentemente da profissão ou do lugar, nasceu para brilhar. Quando lhe perguntei que fazia ali, entre a plebe, afastado de seus alicates, contou-me, sem pestanejar, que motivos de grandeza maior o haviam privado de exercer o ofício para qual Deus o enviara ao mundo. Em primeiro lugar, disse ele, estavam as dívidas a fornecedores e às finanças. Em segundo lugar, acrescentou, vinham o divórcio e a consequente perda de metade da fortuna. Finalmente, revelou ele que o facto de não possuir qualquer diploma ou habilitação para a profissão de dentista havia sido determinante para que a polícia lhe tivesse entrado de rompante no consultório e levado de algemas, como a um vulgar criminoso. Por mais incompreendido ou frustrado que se sentisse, Ernesto nada poderia fazer para contrariar a justiça: nem sequer terminara o liceu, e só desenvolvera o gosto pela arte de tratar da boca alheia por, desde miúdo, se ter habituado a arrancar dentes aos vizinhos.

“Certas coisas não se aprendem na escola”, suspirou, abafado pelo laço preto à garçon que o obrigavam a usar na perfumaria. Não há dinheiro que compre o talento, ou aquela faísca ou trovão que instiga o palhaço a brilhar no escuro, que motiva o escritor a vergar a página em branco, que inspira o professor para iluminar os espíritos dos estudantes amorfos. “Que culpa tenho se me fizeram mais talentoso do que aos outros?”, perguntou o cubano, com um encolher de ombros tão elegante que quase me convenceu a comprar-lhe um perfume. 

Custa aceitar que um homem tão experiente como eu, que rodou as mais variadas casas profissionais dedicadas ao arrancar de dentes, não tenha percebido que o seu dentista preferido, aquele pelo qual nutriu afeição, era um farsante. Conquanto me sinta usado e talvez até defraudado, na medida em que certos tratamentos que me foram aplicados poderiam ter sido evitados, nada posso alterar em relação ao que me foi feito: os dentes que me foram arrancados não voltam, e de qualquer maneira não prestavam, estavam podres. Guardo a admiração, a sensação de ter privado com um ser fascinante, com uma dessas raras almas que existem para reinar, não importa o que façam. E ao olhar para trás, para aquilo que vivi e para aquilo que gostaria de ter vivido, concluo que somos como aquela indelével poeira que a vassoura empurra porta fora.

Baby shoes

For sale: baby shoes, never worn.

Ernest Hemingway

Durante a gestação do primeiro neto, o avô fez mais de uma dezena de sapatos minúsculos, ignorando a opinião desmotivadora da filha. «São bonitos e inúteis. Os bebés não andam. Para quê tantos sapatos?» Não respondia. Limitava-se a sorrir, olhando com orgulho para os sapatinhos de pele com atacadores, em várias cores, alinhados na prateleira da oficina onde gastara praticamente a vida toda a fazer sapatos para pés adultos. Agora que se reformara, e prestes a ser avô, finalmente podia fazer o que mais queria — sapatos de bebé. Pequenas obras de vestuário belas e inúteis; peças talhadas com tempo, pormenor e rigor. O nome do menino, cravado nas solas com caligrafia fina, conferia-lhes algo de joalharia — Ernest. Sou eu. O avô morreu no dia em que eu nasci, horas antes, e não pôde ver-me de sapatos calçados. Eu também não tenho memória de os ter usado, só o registo nas fotografias é que o comprova. Durante anos guardei-os na esperança de um dia ser pai e de voltarem a ter uso. Estão novos. Acho que só mos calçaram para as fotografias. A minha mãe, nunca entendi porquê, ridicularizava o trabalho do avô. «Um disparate. A trabalheira que teve a fazer sapatos para quem não anda.» A mãe morreu antes do meu acidente e não pôde perceber que os sapatos são importantes, mesmo para quem não anda. É claro que, desde que deixei de caminhar, não lhes gasto as solas. Mas nem por isso deixei de gostar de sapatos, quando são bem feitos. Lá porque sou aleijado continuo a ter direito a usá-los. Por isso, desde que capotei dentro do carro e deixei de conseguir dar-lhes uso no chão, continuei a comprá-los. Tenho uma grande coleção. Vale bastante dinheiro porque, lá está, tal como os sapatos que o avô me fez, estão novos. Mas ultimamente deixei de os comprar. Estou a juntar dinheiro para fazer uma grande aquisição. Mesmo no mercado negro as armas são caras. A pensão de invalidez é insuficiente. Ainda falta muito até ter o bastante e estou ansioso.

Então lembrei-me de vender a coleção de sapatos. A de bebé e a de adulto. Vou despachar tudo. Para onde irei posso ir descalço, embora, verdade seja dita, me custe. Os pés cobertos sempre dão alguma dignidade ao morto. Por isso, venderei todos os sapatos exceto um par. Chega bem.

Vou colocar um anúncio.

Vendem-se. Sapatos de bebé e de paraplégico. Como novos.

Relato de Gustavo Soares

Dorothea Lange, Eloy, Arizona, 1934

Dorothea Lange, Eloy, Arizona, 1934

Diz Gustavo Soares, escreve, num pequeno caderno de apontamentos que me veio parar às mãos, mais propriamente à secretária, num primeiro momento, por procedimento de ofício, e depois, passados dois dias, efectivamente às mãos, escreve Gustavo Soares ter feito do seu local de trabalho, ao longo dos anos e por ardis cuja moralidade me escusarei de avaliar, plataforma de sedução, de engate (segundo escreve), tendo como alvo jovens do sexo feminino, frequentadoras dos banhos termais de Santana, onde até há bem pouco o indivíduo trabalhava como funcionário, repartindo o horário laboral entre tarefas administrativas, atendimento ao público e serviços de manutenção geral. Escreve, cito: fiquei a saber da parte de um conhecido, de um quase semi-amigo, psicólogo ou psiquiatra de profissão, que os indivíduos do sexo feminino, nomeadamente as mulheres mais jovens, com passado complicado no que à relação com o pai diz respeito, principalmente por morte ou abandono deste, têm maior propensão a deixar-se seduzir por homens mais velhos, não exactamente por idosos, mas por indivíduos cuja idade, estatuto e aparência física possa preencher na sua psique o lugar deixado vazio por uma figura paternal ausente. Como eu. Continua: esse dado, associado a uma necessidade premente de satisfação sexual, por me encontrar de momento a solo nesta vida (escreve mesmo assim, a solo), inspirou-me a conceber uma estratégia com vista à obtenção de alguma informação mais concreta relativa à paternidade de uma ou outra frequentadora deste charco, de modo, como se depreenderá, a aumentar as hipóteses de sucesso das minhas planeadas investidas. Sob o pretetxto de uma reformulação e actualização das fichas de inscrição do estabelecimento, pude abordar, numa primeira fase, três moças de considerável potencial para os meus objectivos, tendo-lhes então solicitado novo preenchimento do formulário em questão, ao qual havia acrescentado, por minha própria iniciativa e sem o conluio ou sequer o conhecimento de qualquer outro colega, o campo “Filiação” (numa primeira versão, amadoramente referido como “Nome do Pai / Nome da Mãe”, tendo igualmente sido considerada a hipótese, porventura menos discreta e logo abandonada, de pretender recolher mais dados pessoais acerca do pai da jovem em questão, de forma a avaliar o grau de proximidade entre os dois). Tendo havido pronta colaboração das jovens em causa, sensíveis às costumeiras burocracias dos estabelecimentos de recreio e terapia do Estado, quis a sorte ter uma delas apenas preenchido o nome da mãe (escuso-me, por algum sobrevivente dever de confidencialidade, a revelar aqui quaisquer nomes), sugerindo orfandade, corte de relações, ou pura e simplesmente um desconhecimento da identidade do pai, fruto de abandono em tenra idade ou de promiscuidade sexual materna. À primeira oportunidade que tive, saía a moça em questão do balneário em direção à sopa (a maior e principal piscina de água quente no recinto), interpelei-a a esse propósito (Peço desculpa, Menina S., se me permite), justificando a diligência pela necessidade de manter nos registos formulários devida e integralmente preenchidos. Pude então obter da senhorita a sentida e honesta confissão de que não, não podia dizer-me o nome do pai, pelo simples facto de o desconhecer por completo. Terá aí começado, nesse momento de espontânea abertura, uma relação de crescente intimidade, por mim potenciada sempre que possível, com o propósito já aqui exposto, confessa Gustavo Soares no seu relato.

Descreve Gustavo Soares ao pormenor o aspecto físico da acompanhante (nas suas palavras, a mulher que me acompanhava e, mais adiante, por evidente escrúpulo profissional, a utente, a cliente), concentrando-se com especial interesse na ossatura, e avaliando também a feliz adaptação de carnes e músculos às protuberâncias ósseas. Tudo aquilo tão fascinante, ainda que ao mesmo tempo distante do foco principal do seu relato. Ou talvez eu me equivoque por completo, não saiba de todo, sim, estou porventura enganado e este caderno de notas e impressões, na sua caligrafia cuidada, a dar-se toda a ler por qualquer um, não pretenda fixar os contornos principais de um caso de polícia, desse negligente descuido que os nossos serviços de vigilância cometeram no espaço público de umas termas municipais, mas sim registar aquela figura feminina (sou eu que assim a chamo) nas mais variadas poses e movimentações, sim, em todas as diversas poses que obrigam o corpo a torcer-se ou endireitar-se, como quando Gustavo Soares, levando-a pela mão pelos corredores ilicitamente iluminados dos banhos e chegando ao salão da piscina principal, descobriu os nossos agentes nos preparos e empreendimentos que a mim mais interessa registar. Conta Gustavo Soares, logrei convencer a utente, após um bom número de encontros crescentemente românticos, a cometer delito de trespasse, a saber, penetrar comigo o espaço termal fora do horário de abertura, fazendo dele, por este meio, privado espaço de recreação nocturna. Queria tirar-lhe a roupa e beijá-la muito, admite. Primeiro tirar-lhe as peças de roupa, depois beijá-la imenso nas minhas partes preferidas, em particular nos recantos e ângulos que já lhe admirara. Joelho, escreve, dobra de joelho, leitoso interior de coxa, ventre, colo, carnes axilares. Já ilicitamente infiltrados no interior das termas, relata Gustavo Soares, ao dobrar ligeiramente a esquina do corredor, provenientes do bebedouro na direcção da piscina mais quente, pude imediatamente vislumbrar dois homens dentro de água, em silêncio, ocupados com uma qualquer instalação de cabos eléctricos que não pude no momento perceber. Detenho o passo e com o corpo impeço também que a utente prossiga, embalada atrás de mim. Vai para falar mas já eu estou em cima dela e ponho-lhe a mão sobre a boca, sem violência, antecipando-me com elegância, porque já sei que seguramente haveria de dizer alguma coisa, perguntar o que se passa, não é por aqui?, qualquer coisa, não tendo visto, como eu, dois indivíduos na piscina, de fato de banho, com água a meio torso, junto aos tabuleiros de xadrez em mármore, que no centro da piscina costumam entreter os clientes mais idosos, ocupados eles, os dois sujeitos, com fios e pequenos dispositivos. Viro-me para ela, coloco-lhe a mão direita sobre a boca e com esquerda, quase ao mesmo tempo, envolvo-lhe a cintura de adolescente, puxando-a para mim, para mantê-la sob controlo, imobilizada, consciente portanto de uma certa gravidade de circunstâncias, embora sem o temor ou tensão extrema resultantes da noção de um perigo, descreve assim Gustavo Soares, virando aqui a página do seu caderno. E na folha seguinte continua, puxo-a para mim e de imediato sinto a proeminência do ílio na minha coxa, numa agradável pressão de ossos, empolada pela aventura da situação. Segredo-lhe, não digas nada, estão ali pessoas, e sem que disso esteja de início consciente, percorro-lhe com os dedos da mão esquerda o vale (sim, Gustavo escreve vale) que ao fundo das costas antecipa as nádegas volumosas. Segredo-lhe isto, menos em jeito de alerta que de pedido caridoso, e passo o olhar, num relance, pela fascinante elevação óssea por detrás da orelha de leite. Recordo a primeira vez em que pude contemplar-lhe o que vim a saber chamar-se processo mastóide do osso temporal.

Recordei nesse momento? Ou talvez agora, que escrevo este relato, para memória futura, deleite ou desplante de alguém que não conheço. Foi no nosso segundo encontro, sentados num banco do Jardim de Santana, ela a falar-me do pai desconhecido, desse não-pai que ali me servia de poderoso aliado, e eu a olhar-lhe a face de perfil, o descomunal comprimento das pestanas maquilhadas, o movimento dos lábios na verbalização dos revezes da existência. Enumera Gustavo Soares, o olhar virado para diante, à procura talvez desse pai perdido no mundo, o cabelo arrumado por detrás da orelha sublime por dedos lestos e nervosos. E depois, entrevisto por entre os cabelos dourados, aquela maciça orla de crânio, montículo redondo de osso a anunciar a planura do pescoço, decorado por um sinal muito pequeno e muito escuro, descaído sobre o lado direito. A luz da tarde colaborava. E após o pai (tenta aqui Gustavo Soares recriar-se no conceito do já enunciado não-pai, mas sem grande sucesso, arriscando despai, impai, ambas as soluções rasuradas), ao mesmo tempo que por dentro me regozijo na descoberta daquele tesouro, passa ela de um momento para o outro a queixar-se da mãe, olhando-me apenas por um segundo, para se certificar da minha atenção. Estou mais atento que nunca, absorvido por completo, e ela agora desencosta-se do banco e fica ligeiramente dobrada para a frente, com as mãos unidas sobre as coxas, e o melhor osso do ano revela-se ainda mais, num ângulo mais favorável. Eu a escutá-la, não obstante, que a mãe realmente não sabia como amar uma filha, que na verdade nunca soubera o que era o amor, e que ela agora temia um dia ser mãe e também não saber como é, como se faz. Tenho nesse instante o meu cérebro partido ao meio, escreve assim mesmo Gustavo Soares. Dois processos cognitivos desenvolvem-se em simultâneo, como sempre acontece quando estou com ela. A forma e o fundo. Nesse banco de jardim, mais tarde no corredor nocturno dos banhos termais e também da última vez que a vi, nesse dia que, em podendo escolher, preferiria nunca mais recordar. Dois registos diversos, mais concomitantes. As coisas dela e a minha coisa. Sim, o cérebro a querer respeitar reflexões de espírito, assuntos importantes, mas sequioso da imediatez da carne, escreve Gustavo Soares, muito sério e ponderado, com a tinta preta da caneta já sem o fôlego inicial.

Muda para o azul, prossegue. Liberto-a, primeiro a mão da boca e logo a seguir o braço da cintura. Ela encosta-se à parede do corredor, aparentemente tranquila, sem aquela perigosa urgência de ver pelos seus próprios olhos. Eu sim que preciso. Quero ver mais pelos próprios olhos. Quero, devo. Ainda que fora do horário de serviço, sou funcionário deste estabelecimento termal, lembra Gustavo Soares. Preciso de ver, preciso de entender, quem se move no meu domínio. Dois indivíduos de fato de banho instalam um qualquer aparelho no interior de um ralo de escoamento, na face superior da estrutura central da piscina, com os seus bancos e tabuleiros de xadrez. Estão agora a repôr a tampa do ralo e parecem fazer testes de som. Auriculares nos ouvidos, receptor na mão. Um deles diz, fui a casa da vizinha pedir ovos mas ela não estava. A minha acompanhante encontra-se também toda à escuta e a estas palavras franze o sobrolho numa expressão de estranheza. O mesmo indivíduo acrescenta então, na Argentina o gado bovino supera em cabeças o número de habitantes. Quero explicar à utente que os homens estão a testar um aparelho de escuta, e não a fazer enigmática conversa de circunstância. Quero explicar-lhe, pois está quase a rir-se, ignorante da gravidade da situação, por isso puxo-a um pouco mais para junto de mim, para o limiar do meu ângulo de visão, para que também ela veja, para que se inteire e assim saibamos os dois a mesma coisa. Sinto-lhe no corpo um estremecimento, creio que percebe o que afinal se passa. Não sei se terá completa consciência, mas estas situações não são desconhecidas. Máquinas de ouvir e registar. Gente detida e interrogada por algo dito em confidência. Tenho ouvido dizer, e de repente, sem que o tenha previsto, sinto um rasgo de indignação atravessar-me o corpo e estou para entrar no recinto de rompante e pôr um termo a tudo aquilo. Estou afinal no meu direito, sou funcionário do estabelecimento, apesar de a desoras, em flagrante prática de delito ligeiro. Mas quando estou para avançar sinto-a puxar-me o braço. Olha para mim, com uma expressão de gravidade a tender para um pedido que não pode ali verbalizar. Está a dizer-me que não, que não faça nada, que o melhor é agora virar costas e sair dali . Penso que não quer ver-me em perigo, ver-nos aos dois em perigo. Olho para ela e percebo. Desejo por um lado confrontar aquelas presenças insultuosas, mas ao mesmo tempo sei que isso ditaria o final abrupto dos meus planos com ela. E desse modo, eu próprio preso, morto ou no mínimo desmascarado, não poderia concretizar o meu sonho. Aquilo que eu ainda não lhe disse, que ainda não lhe tive coragem ou palavras certas para dizer (será preciso?), mas que tenho mesmo de alcançar, pois é da natureza dos sonhos, ou da própria natureza deste em particular, a absoluta necessidade de concretização, para que no meu caso algo faça sentido e eu possa acreditar ainda que nem tudo é estrita efabulação da mente, e sempre é possível alguma coisa verter-se em realidade, em momento que depois se recorde e, como num ciclo que se repita, trate por sua vez de alimentar a cabeça por muito tempo.

Fecho o caderno, pois o parágrafo seguinte vem antecedido de uma enorme rasura de meia página. Palavras ilegíveis que desse modo me fazem parar, suspender a leitura, para reflectir. Desconheço os motivos da redacção deste relato e na verdade não sei o que fazer com ele. Devo extrair destas notas, de acordo com o procedimento, o essencial para os nossos serviços. O chefe diz, o tutano. Só que eu não entendo porque Gustavo Soares nos conta tanto ou me conta mais do que eu precisaria de saber. Quer mostrar-nos conhecer as nossas transgressões, mas desconheço porque nos revela as dele. É que assim fico confundido e já não sei o que é realmente importante naquelas linhas. Sabemos que se demitiu do trabalho nas termas municipais no final do mês passado e que no dia seguinte partiu para parte incerta, tendo enviado por correio este caderno, ao cuidado do nosso director. Estou em crer que devo tão somente registar as circunstâncias em que os nossos instaladores foram detectados na execução das suas tarefas. Requerer informação acerca do actual estado de funcionamento do sistema de registo e gravação do estabelecimento termal de Santana. Recomendar averiguações junto dos funcionários do dito estabelecimento, a fim de avaliar a extensão do conhecimento acerca das nossas actividades de vigilância. E consoante os resultados dessas averiguações, recomendar ou não o desmantelamento das escutas. Ou então ir à procurar dela, da senhorita S. Ou simplesmente não fazer nada, cruzar os braços à luz baça de Outono, e esperar que Gustavo Soares reapareça ou se dilua no tempo. Esquecer o homem, deixá-lo em paz e esperar até que tenha logrado realizar o dito sonho. Viro a página.

É muito de manhã e ela dorme ainda. Está deitada ao meu lado, com uma das pernas de fora, joelho subido à altura do ventre e cobertor preso entre as pernas. Vem-me à cabeça transmitir-lhe algumas regras no que ao dormir juntos diz respeito, em particular a proibição de se reter ou monopolizar o cobertor comum, o qual deve, em condições ideais, ocupar sempre toda a extensão do leito, sem deslocações excessivas ou escusadas entradas de ar. Penso que irá perceber. A primeira luz do dia alastra pelo quarto empoeirado. Tento reconstituir um sonho, mas não consigo. A presença dela domina-me. Passo os olhos por uma marca de nascença que já me é bem conhecida. Na coxa, um pouco acima do joelho. Sei que se aparenta com uma qualquer ilha do nosso planeta, tenho a certeza. Folheei certo dia todo um atlas diante dela, à procura da ilha perfeita e contentei-me na altura com uma grã-bretanha esguia e deformada à esquerda. Agora penso, devo continuar à procura. Talvez na imensidão do pacífico descubra a amplificação física de uma perna despida. Ela dorme profundamente e dentro das calças de pijama intuo a possibilidade de concretizar com ela o tal sonho de sempre. Está muito duro, o grande barco, e húmido na ponta. Já muito molhado da contemplação de lençóis desfeitos e terras britânicas. Saio da cama, tiro-o para fora e coloco-me de pé, diante dela, do seu rosto adormecido. E começo então a passar-lho muito lentamente pelos lábios semi-cerrados, primeiro o de cima, depois o de baixo, muito devagar, em jeito de maquilhagem lenta ou combate ao cieiro. Entusiasmo-me muito aos brilhos que lhe ponho na boca, com ela a dormir numa paz de fazer inveja. E imagino então que, a meio de um sonho enigmático, todo feito de fragmentos desconjuntados, ela entreabre os lábios para pronunciar uns quantos projectos de palavra, pedidos incompreensíveis, mas sem urgência, não, sem qualquer angústia ou alvoroço. E eu então passo-lho também muito ao de leve pela fileira dos dentes, várias vezes, de um lado para o outro, envolvido por lábios de seda, inconscientes. Depois volto a guardar o grande barco e beijo-lhe a testa despenteada. Deixo-a dormir e vou fazer café.

A solução para os fracos

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Peçonhento, manhoso e tantos outros piropos de cariz luminoso regurgitou Camilo aquando da apoteótica entrada pela microscópica porta da tasca de seu proscrito amigo Zacarias, o mais conceituado e consistente distribuidor de prazer sexual por entre o mulherio casado do município. Matilde, madame de respeito e virtude, caíra no engodo de requerer os préstimos de Zacarias, sem prestar atenção ao detalhe, para todos irrelevante menos para o marido, de ser casada com Camilo, dono de napoleónica figura, pelo menos em termos de calvície, volume da barriga e estatura. 

Não obstante os três pares de estalos, o divórcio e o processo em tribunal exigindo exílio em África para a traidora e decapitação para o patifório amigo, a desonra viera para ocupar, quase por inteiro, o espaço mental de Camilo, o pobre de espírito, que da traição em diante daria em bêbedo de aguardente e fumador daqueles de acender o cigarro no cigarro acabado de chupar. Idas ao médico, recomendações de exercício, visitas a prostíbulos, miminhos sexuais da dona Rute, prostituta reformada para quem a tristeza dos outros se curava a partir de coito não remunerado. Nada removia o encornado do limbo. Camilo não esquecia, não perdoava o amigo Zacarias — já Matilde lhe sobressaltava menos a mente. Zacarias pedia perdão, quinhentas vezes de joelhos, de rojo, murmurando por favor, meu amigo, olvida meu pecado. Não, exclamava Camilo, às vezes encolerizado, outras vezes, muito por causa da bagaceira, mais pacificado. 

Camilo pedia punição terrena para o ex-amigo, mas o dia do julgamento final, da sentença máxima, do desterro, dos trabalhos forçados, da chacota pública, tardava como os milhões de dólares a entrarem na conta bancária do pobre. A justiça atingiria Zacarias no preciso dia em que traidor e traído se avistaram na tasca. Camilo sugava seu cigarro, ao mesmo tempo que com a língua raspava os restos de cera depositados no dedo mindinho, soprava adjetivação contra o inimigo, como se a palavra o fosse tombar ou enfraquecer, quando, quase do nada, um homem enegrecido, gigantesco, poderoso e medonho acariciou a nuca de Zacarias com um murro que lhe furou o osso e o matou logo ali. Eunuco, eis o nome desse bisonte de dois metros de altura que, também ele ferido na sua honra de marido, viera em busca do malandro para lhe entregar o poder da lei. Zacarias morto. Camilo vingado. A nossa história termina aqui, mas o suplício de Camilo estender-se-ia até ao túmulo: não há solução para os fracos. 

 

A Celeste do sétimo ano

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Não tem dentes na boca, a galdéria, nem um, apresenta a cremalheira partida, uma boquinha de bebé com as gengivas rosáceas. Os primeiros dentes tombaram à força dos estouros do Zé, o chulo. Os outros apodreceram de apodrecimento natural, e também porque a droga, quando mamada em abundância, é material que perdoa pouco. Coitada, ofertando felácio na esquina, pobre, logo a Celeste que era tão boa em termos de feições e beijocava de uma maneira que...ora bem, para descrever seus beijos teria de consultar enciclopédia e explicar o fenómeno das estrelas cadentes e da invasão de Marte por Arnold Schwarzenegger naquele esquecido filme de domingo. A língua de Celeste, bicho húmido, chupa-chupa, pirolito, metia ao barulho matemática, pintura, ciência, química e aromas. Celeste, desfigurada. E eu que a pedi em casamento no sétimo ano, na aula de inglês, perante o mumificado Luís Pedro, a melhor fotografia viva de pôr na campa que conheci. Luís Pedro, cábulas de plantão, empenhado em fazer voar a ponta do giz até à nuca do professor. A propósito de professor, isto de lecionar em Massamá esfalfa um santo. Ontem, de alma mirrada, buscava conforto nos beiços de uma menina de rua, e quem encontro, Celeste, a mesma do sétimo ano, agora na pocilga. Gorda, quiçá, mãe de três potros, casada com um devorador de feijoadas ou pedreiro ou jardineiro ou calceteiro ou canalizador, imaginava-a a fazer qualquer coisa menos associada a um gandulo agarrado à heroína, acometido por recorrentes impulsos de arrancar dentes ao soco. Celeste, debruçada sobre o carro, cuspia que o serviço me custaria dez biscas - pagas cinco no imediato, dez no fim, com gorjeta e taxa de juro, que isto é como nos bancos, pagas em cómodas modalidades, mas a dobrar. De modos que a Celeste, desdentada, me desabotoou as calças de ganga da Levi’s que a minha mãe comprou nos saldos. E não tardou a matar-me a saudade daquela vivacidade que só ela tem. Retomei o amor, pedi-a em casamento, ela aceitou, amanhã compraremos as anilhas de ouro e já planeamos fugir para o Brasil, uma vez que de má reputação estamos cheios até ao pescoço.