Indisciplina moral

As pessoas são estúpidas. Daniel atirou a frase ao espelho, criando um círculo ao exalar o fumo e atirando a cinza para o chão. Tão Estúpidas. As pessoas são más, acrescentou Joana e deu um passo em frente, o vestido verde claro, cor de bicho quando foge, a flutuar-lhe em redor dos joelhos. As pessoas são estúpidas e más, resumiu Rafael assertivamente, acenando três vezes com a cabeça. E Clara sentenciou pesadamente: Roberto é um cafajeste. 

Roberto, dramaticamente, retorquiu: Je suis rien, je comprends rien.

E logo a seguir, adivinhando-lhe a silhueta escondida atrás do padrão japonês do biombo, o cigarro segurado alto, uma perna longa subida até à curva dos seios, como num estudo de Francis Bacon, não estava lá o corpo, só o movimento surpreendido subitamente, incompreensível, completamente intraduzível:

Il faut que je disparaisse, tu comprends?

E depois, em voz baixa:

Além disso, sinto-me sozinho e estou farto de tratar da merda do jardim.

Roberto atirou a beata do cigarro para o chão, meteu tudo dentro da mochila, apanhou um comboio até Paris, França, e daí outro até Londres, Inglaterra, e só parou quando chegou à vilazinha de Woodstock. Aqui, Roberto tinha só dois hábitos. Roberto lia Kant todas as manhãs, durante cinco horas seguidas e depois Roberto ia ao ginásio. Roberto remava todos os dias durante três horas. No fim do exercício, os olhos exibiam o queixume de coisinha extinta dos condenados às galés e então Roberto parava por alguns minutos de pensar em Kant. 

Roberto tinha problemas com os aspectos mais gerais da filosofia moral de Kant, sobretudo com a sua definição do que era uma decisão moral. Roberto remava e remoía. Remava, pensava em Kant e sentia-se rodeado por uma aguazinha que ninguém parecia ter notado e que só ele sentia subir. Kant tinha traído Roberto. Em adolescente, Roberto estava persuadido de que podia viver de acordo com os princípios mais gerais da filosofia moral de Kant.

Naquele dia, no fim do treino, Roberto dirigiu-se ao pub que fica na rua principal em frente à igreja metodista e pediu um pint de cidra.  

Addlestones, cloudy, s’il vous plait. Sentou-se ao balcão e atirou o casaco para o soalho. O barman, com uma camisa de xadrez azul escura, impecavelmente abotoada até ao colarinho, tirou a cidra, limpou as mãos a um pano que pousou sobre o ombro, serviu-o e passou um dedo pelo bigode de pontas aguçadas e descaídas no contorno dos lábios.

Merci. 

E o barman respondeu-lhe: Roberto, a man when he goes out to row, he does not think of anything, especially not about Kant, it’s bloody bad taste. Or if he does think of such things, methinks he ought to do so about fair-eyed maidens, tops. E esticava-se para o lado de lá do balcão, o último limite da sua oficina de Hefesto. The Smiths tocavam nos altifantes e o barman pousou um beijo ao de leve na testa ainda a transpirar de Roberto. 

Roberto dizia, mas tu não entendes. Se Kant está errado, se não existe tal coisa como a possibilidade de um homem tomar uma decisão moral autonomamente, perfeitamente desligada de tudo, então como é que o princípio de Arendt que é baseado nesta ideia pode não estar errado?

De que princípio de Arendt falas tu?

O que te diz que é preciso uma vontade alheia à emoção e ao interesse próprio para decidir bem, para escolher o bem. Uma vontade que ao mesmo tempo (contra Kant), não se baseie em princípios abstractos ou gerais depois meramente aplicados a situações particulares, mas antes uma vontade que produza os seus próprios princípios pela mera faculdade de pensar sobre cada situação particular. Como é possível uma vontade alheia à emoção e ao interesse próprio, que ao mesmo tempo delibere sobre as situações mais específicas, mais particulares? Nenhum homem é assim tão honesto. 

Roberto, respondeu-lhe o barman, tu não percebes nada acerca do desejo. E depois emendou-se. Tu não percebes nada acerca de L’Amour. 

Roberto saiu para a rua ainda a enrolar o cachecol com três voltas ao redor do pescoço e a acabar de vestir o casaco. Tacteou à procura das luvas nos bolsos, pô-las e puxou-lhes as pontas para dentro das mangas do casaco.

Uma rapariga muito alta e muito loura, vestida com um casaco e com uma saia verdes, uma camisola branca, meias pretas de rede muito fina, quase transparentes, passou e cumprimentou-o com um aceno, vinda da direcção oposta. Não era sequer um cumprimento, era uma espécie de admissão da sua presença. Agora no meio do passeio, impediam a passagem um ao outro. Dentro do casaco, ela trazia um cachorrito que se abrigava da neve encostando a cabeça contra o peito dela. 

Ela disse: Na verdade, não é contradição nenhuma, na verdade o modelo de decisão moral de Arendt tem mais a ver com Aristóteles do que com Kant. E ajeitou os grandes óculos de massa que lhe pendiam para a frente sobre o nariz. Numa fracção de segundo, Roberto imaginou-a muito mais velha, a fazer exactamente o mesmo gesto. 

Enquanto Roberto desapertava o intricado nó que dera à corrente que lhe prendia a bicicleta (em redor do pneu da frente, passando por dentro do banco e acabando no outro pneu, preso ao cadeado em forma de U), ela continuou. 

É uma ideia ligada a outra, a de que tu ages de acordo com cada situação, de que a tua resposta moral é um acto, mais do que uma abstração, e que é numa rede de actos que os teus pensamentos, a tua vontade, encontram expressão, o modo de se comunicarem aos outros. Nesse sentido, Kant é mais platónico, Aristóteles mais aristotélico. Assim, o melhor modelo de Lei é o modelo de Arendt. Considera por exemplo o Talmud, que diz que uma comunidade não pode matar um homem, mesmo que seja para bem de toda a comunidade. 

Mas vês o meu problema?, disse-lhe Roberto, lutando para desengatar o cadeado em U do ferro em que a bicicleta estava presa. Essa lei do Talmud é uma abstração, é exactamente como o princípio moral de Kant, supõe uma vontade alheia à emoção e desligada de qualquer interesse próprio. Nenhuma dessas coisas existe. Se fosse preciso um só homem morrer para salvar um só outro que fosse, alguém trataria sempre de o matar.  Um deles apareceria inevitavelmente morto.

O cãozinho ladrou impaciente, escondendo-se dentro do casaco. De todos, era o que tinha mais frio e portanto menos paciência para filosofia. O cão pensou: A necessidade é o único deus. Só segundo a necessidade é possível decidir moralmente e todos estamos determinados pela necessidade. Fechou os olhos, aninhou-se mais para dentro e pensou no Osso. O cão era um neo-realista que acreditava no determinismo. No fundo, era um sacana desinteressante. 

Não, estás errado, disse a rapariga. A Lei só existe por causa do caso particular. Desse ponto de vista, está de acordo com a descrição de Arendt. A Lei é a expressão de uma vontade impermeável ao interesse próprio e, no entanto, responde com virtude aos casos particulares.

Mas e L’Amour? Roberto fez deslizar o dínamo sobre a roda da frente e ligou a luz a pilhas do cesto da frente, que piscou vermelha e intermitente na noite cerrada. Eram talvez sete da tarde. A escuridão, branca e amarelecida com a neve e a luz alta dos candeeiros, tornava cada ideia mais difícil de seguir, mais lenta na sua espessura. A atenção só dura até certo ponto. Quando se baixou para puxar a extremidade da perna direita das calças para dentro da peúga e porque ela estava debaixo da luz, Roberto reparou que no tornozelo a meia da rapariga tinha um pequeno rasgão e por baixo do rasgão um hematoma pequenino, azulado e amarelo. 

Roberto voltou à biblioteca e sentou-se a ler L’Amour. O que fazer, por exemplo, de tudo o que é inconsciente? De todas as escolhas feitas sem pensar? De tudo o que não é alheio à emoção nem está desligado do interesse próprio, ou seja, o que fazer de tudo? Talvez Platão e Aristóteles aqui pudessem concordar um com o outro, com um aceno de cabeça cada um, ajeitando disfarçadamente as fitas de jogadores de ténis a prenderem-lhes os caracóis espessos, meditando pelo canto do olho no tamanho dos bíceps do adversário. «Tentar escolher o melhor.»