Leve


Ela passa aqui todos os dias ao final da tarde com a mochila às costas. Quando vem feliz, corre desaforida, não olha ninguém, corre, corre e não me vê. Quando vem triste ou cansada ou acompanhada, passa devagar, com uma respiração tranquila, um sorriso simpático e cumprimenta toda a gente com quem se cruza. Não sei se sabe quem sou, não se deve lembrar, era muito nova, muito mais nova. Não se lembra, não se pode lembrar. Não sei ao certo que idade tem.

É muito pequena, muito branca, muito magra e tem o cabelo muito comprido, demasiado comprido, sempre solto, nunca o traz apanhado. Quando passa por mim a correr, o cabelo voa e não me deixa ver a sua cara. Isso irrita- me.

Sento-me no alpendre e espero-a. Pouco depois, oiço-a cantar e vejo-a antes que me veja a mim. Está distraída, vem distraída, não me parece triste, deve estar cansada, deve ser isso. Hoje traz um vestido preto pelos joelhos que deixam perceber uma ferida grande na canela esquerda. 

Quando percebe que a estou a observar, pára e cumprimenta-me envergonhada. Afasta-se, mas chamo-a de volta e digo: 

“Como te chamas?” 
“Cláudia.” 
“Que idade tens, Cláudia?” 
“Onze.” 
“És muito parecida com a minha filha, sabes?” 
“Não a conheço. Como se chama?” 
“Comprei-lhe um vestido para oferecer no seu aniversário.” 
“É bonito?” 
“Eu acho que sim. É azul e branco. Gostas?” 
“Não o vi.” 
“Gostas das cores?” 
“De azul e branco?” 
“Sim.” 
“Gosto muito!” 
“Tenho medo que o vestido não lhe sirva.”  
“Isso seria triste.” 
“Ela é muito parecida contigo.” 
“Já me disse.” 
“Não te importarias de experimentar o vestido?” 
“Como?” 
“Se o vestido te servir, também serve a ela.” 
“Não posso experimentar um vestido que é para ela!” 
“Porquê?” 
“O vestido não é para mim!” 
“É para a minha filha, que é muito parecida contigo.” 
“Ela pode ficar zangada. Eu ficaria zangada se alguém vestisse a minha roupa.” 
“Ela não saberá.” 
“Isso não é certo. Não é certo mentir.” 
“É por uma boa causa, não achas?” 
“Qual causa?” 
“O vestido tem que lhe servir. Imagina como ficaria decepcionada se não 
pudesse usar o vestido.” 
“Oh.” 
“Não me queres ajudar?” 
“Ela mora com quem?” 
“Mora longe.” 

Quando entramos em casa, Cláudia senta-se no sofá. Nervosa, olha a sala e demora-se em cada canto, em cada pormenor. Pousa as mãos sobre as pernas, umas pernas finas, tão bonitas, tão delicadas. Joga o cabelo para trás das costas, puxa as meias brancas com força, tenta esconder a ferida. Ajoelho-me em frente dela, puxo a meia para baixo e pergunto-lhe como se magoou. Conta-me uma história de corrida desenfreada, uma brincadeira parva e uma pancada forte num ferro. Toco com o dedo e pergunto-lhe se dói. Diz-me que sim. Beijo a ferida e prometo-lhe que vai passar, que sarará rapidamente. Ela sorri e pergunta-me se pode usar a casa-de-banho.

Levo-a até lá, depois subo ao sótão, procuro as canetas de feltro, as velhas canetas de feltro. Desço, volto à sala, desvio a sapateira, olho a parede branca e oiço Cláudia:  

“O que está a fazer?” 
“Trata-me por tu, somos amigos.” 
“O que estás a fazer?” 
“Gostas de desenhar?” 
“Gosto muito. Porquê?” 
“O que gostas mais de desenhar?” 
“Animais, gosto muito de animais. Leões e girafas.” 
“Eu gosto de desenhar árvores e casas. Vamos desenhar nesta parede?” 
“Na parede?” 
“Não faz mal. Desenharemos em conjunto; o que me dizes? Tu desenhas os 
animais e eu as árvores.” 
“E uma casa.” 
“Uma casa junto dos animais selvagens?” 
“É a casa do caçador que os vai matar.” 

Começo a desenhar a cabana. Cláudia pega numa caneta cor-de-laranja, coloca-se de joelhos a meu lado e começa a desenhar uma girafa. Distraio-me e fico a olhá-la. Está muito concentrada, desenha tão bem, com muito cuidado para não falhar, com desejo de perfeição, a perfeição dela. Volto à cabana e tento concentrar-me, mas não consigo. 

“Gostas da tua mãe?” 
“Claro que gosto. Ela é linda.” 
“É tão bonita quanto tu?” 
“Muito mais bonita, muito mais.” 
“Devias cortar o cabelo, não gosto dele assim.” 
“Eu gosto e a minha mãe também.” 
“Ela também tem o cabelo comprido?” 
“Sim, mais comprido que o meu.” 

Levanto-me e levanto-a. É tão leve, tão fácil de pegar, de imobilizar, de dominar. Ela abre muito os olhos, está assustada. Pouso-a e aponto para os joelhos que estão muito vermelhos. Pergunto-lhe se não lhe dói e ela diz-me que não. Coloco as palmas de minhas mãos nos seus joelhos e fecho a mão com força até que ouvi-la gritar que estou a magoá-la. Rio-me e peço-lhe desculpa, digo que estou a brincar, que estou só a brincar. Cláudia quer sair, quer ir embora, corre para a porta, mas eu agarro-a pelo braço, tenta morder-me mas não consegue. Trago-a para junto da parede. A meu lado ela é tão pequena, tão frágil, tão vulnerável. Pego numa almofada e coloco à sua frente. 

“Vamos terminar o desenho.”