Trump, democracia e Stephen King

Donald Trump veio agitar as águas meio adormecidas da virtude democrática. Sempre houve, sempre haverá, anti-democráticos, algo, aliás, que a própria democracia não só deve aceitar como estimular, caso contrário entra em auto-contradição e tenderá a cristalizar. Mas com Trump as dúvidas adensam-se, mesmo no país onde, como referiu Tocqueville, as “ideias democráticas constituem uma forma de religião cívica”.

Ultimamente, escreveu-se muito sobre o declínio da democracia, evocando como prova o candidato à Casa Branca do partido Republicano. “Se uma personagem tão insensata e mentirosa pode liderar o país mais poderoso do planeta, então a democracia não pode ser um bom regime político!” Ora, é justamente porque quase tudo cabe na democracia, isto é, na vontade do povo (manipulada ou não, esta é outra questão), que Donald Trump pode ser Presidente. Noutros termos, se houvesse critérios de virtude irredutíveis para a escolha dos candidatos, então não seria uma democracia, mas uma normocracia, se me permitem o neologismo. Mais, imaginem que todos eles tinham de ter dito “a verdade, e nada mais do que a verdade”, quantos seriam verdadeiramente elegíveis? E não me refiro a mentiras piedosas.

Dito isto, sou relativamente agnóstico em relação às eleições americanas porque não quero prenunciar-me com base em preconceitos, mas parece-me que só a cair de bêbado votaria em Donald Trump. Justificação? Desagrada-me o seu carácter (o visível) e a sua mensagem (nacionalista, belicista e quase racista). Mas mais do que isto, escolho como minha a argumentação que Stephen King (raramente o li) expôs no The Guardian, Agosto de 2016:

“Não acredito no suposto nivelamento por baixo dos americanos; mas, à medida que a leitura quotidiana perde terreno – e é o caso –, o pensamento analítico também decai. A leitura é um prazer, e para mim isto é muito importante; todavia, ela estimula também os sentidos e permite detectar claramente o cheiro da imbecilidade. […] Em mim, não é o democrata que Trump arrepia, mas o escritor e o leitor. Ouvir os seus discursos é como ouvir um piano a cair numas escadas. Só se ouvem notas falsas, nada de música. Vou realmente lamentar Obama... Nas suas palavras havia sempre poesia, música...”