As Aventuras do Senhor Lourenço (§18 o resto dos dias, Bacanal parte I)

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[a melhor forma de continuar, para mim a única, mas eu não sou um escritor profissional, quando surge “the dark country of no ideas” é ir aos originários, aqueles que apanharam a primeira linha de desenvolvimento da mente humana sapiens, gregos pré-clássicos e clássicos. Foram eles que fisgaram os nossos impulsos mais primordiais e os traduziram em discursos inteligíveis, é impossível superá-los, a não ser em insignificantes parcelas de vida. Por isso, Nietzsche ou Freud, Heidegger ou Foucault, Badiou ou Hegel... os mantêm como principal fonte de inspiração. Não julguem que me desvio um milímetro sequer do plano descritivo, introduzo apenas, a lá Eurípides, o episódio de uma noite delirante, introduzo e uso, forma de mostrar também aos leitores superiormente eruditos que tenho grelhas hermenêuticas chiques, o velho truque dramatúrgico do mais racional dos tragediógrafos gregos]

Lourenço tinha entrado em órbita, à volta de uma constelação mais do que de uma estrela: escola, Manuela e vida social de herói evanescente. O Joaquim, qual cometa, aparecia a espaços, fulgurante e mal cheiroso (fazendo odes à vacuidade triunfal da época), para testar o equilíbrio das revoluções (astronómicas). Normalmente apanhava os restos do dia e fazia um patchwork discursivo com o máximo de sentido possível. Começava sempre por uma tese, que ia escorando como podia em argumentos colhidos nos lamentos de Lourenço ou naquilo que observava, e Joaquim era um finíssimo observador, este talento não tinha sido afectado pelos muitos anos de drogado, devido, talvez, à atenção que os solitários desenvolvem. Em vez de terapia, gosto de lhe chamar “encontro entre o agir e o pensar”, no fundo Lourenço reflectia-se através do Joaquim. Ele era a Ave de Minerva que vinha iluminar os impulsos vitais que haviam preenchido a existência de Lourenço, às vezes de um só dia, outras de vários.

Certa vez, Lourenço perguntou ao Joaquim se devia alinhar com a festa do Plateau.

– Qual festa?

– Não falaram contigo?

– Não sei de nada.

– É uma festa com o pessoal da escola para comemorar um ano do meu “acto heróico”, assim lhe chamam.

– Mas porquê no Plateau, a mais prostituta de todas as discotecas.

– Prostituta?

– Sim, passa a mesma música há 30 anos, submetendo-se a clientes que definiram o gosto musical na adolescência, memorizando, às vezes mal, 3 ou 4 letras, e nunca mais saíram dessa caixinha estética. E lá vão eles ano após ano, carregados de rugas mas armados em malandrecos, múmias dançantes, as mulheres mais interessadas nos jovens libidinosos à procura de uma queca fácil, os homens nas pouquíssimas adolescentes e na cerveja ou whisky.

– Não me revejo nessa discrição.

– Pois não, há quanto tempo não vais lá?

– 5 ou 6 anos, e tu?

– Há mais de 10, mas eu não preciso de ver as coisas para saber como funcionam, sou quase um Tirésias, ou uma pítia pós-moderna.

– Deixa, Joaquim, deixa que a festa aconteça, quero é que venhas, é muito importante para mim que venhas.

– Está bem, às vezes bater no fundo permite colocar as questões certas. Sei bem do que falo, já bati em tantos fundos que só por sorte extrema não estou partido. Ou melhor, partido estou, mas não todo, ainda sou um corpo com órgãos, um cérebro que regula os fluxos caóticos da realidade, um aparelho digestivo que decompõe os nutrientes em moléculas assimiláveis. Ainda domino o universo da linguagem, embora deteste a porcaria do novo acordo, gesto arbitrário que junta o pior que há na academia e na política. Em mim ainda funciona bem a escatologia fisiológica. Tudo sem precisar de acreditar em Deus nem alternar, freneticamente, como alguns aqui na escola, entre medicina tradicional e alternativa, endireita e fisioterapeuta, chás e fármacos. Já viste, Lourenço, esta máquina ainda funciona, e tu sabes que eu sempre fui e serei um funcionalista, o que importa é que as coisas funcionem, melhor quando o fazem bem. Eu é que sou o Chaosmos do Joyce.

Pôs-se um cartaz na sala de professores (FESTA EM HONRA DO NOSSO HERÓI LOURENÇO, sábado, dia 23, na discoteca Plateau, Santos. Entrada €10, com direito a duas imperiais, sumos ou águas), e a lista de inscrições ganhou rapidamente volume: 88 assinaturas preencheram quase três páginas A4. Numa das margens alguém escreveu: “o coração não consegue viver dentro de limites!”.

Ouvia-se um ruído de fundo inebriante, estávamos em Maio e nesta altura nas escolas tudo converge ou para a loucura ou para a depressão. Às vezes enlouquece-se para evitar a queda anímica. A forma mais fácil de o fazer é deixar que Eros se manifeste com mais à vontade. Havia, além do mais, a vaga ideia, falsa mais poderosa, de que um Dj do Plateau era descendente de uma linhagem dionisíaca bastante influente da Europa de Leste. É para rir, claro. Mas não chega aos calcanhares dos Segredos de Fátima. Outra explicação, menos plausível, é a de que o ser humano se entusiasma de forma altruísta (que sempre foi uma sublimação dos apetites sexuais) com a grandeza dos outros.

Preparava-se, então, um bacanal. Sem Penteu e Agave, mas com ménades e o esbatimento da polarização sexual, havia uma tonalidade andrógina nascente e muito desejo de sexo no ar.

(cont.)