UM TROPEÇO NOS DIAS QUENTES (nota de leitura)

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João Bosco da Silva é e não é um jovem poeta, trata-se do 8.º livro que publica (http://www.enfermaria6.com/joo-bosco-da-silva), tempo e trabalho suficientes para o retirar, biográfica e esteticamente, das incandescentes experiências dos neófitos. Ao mesmo tempo, ainda não se cansou das palavras, percebe-se que as acolhe como se fossem só amigas, difíceis, mas amigas. Por estar neste limiar, que é sempre um interstício de liberdade, e por eu gostar do que Northrop Frye escreveu (“A absurda fórmula quântica da crítica, a asserção de que o crítico se deve confinar a «extrair» de um poema exatamente aquilo que vagamente se assumiu que o poeta terá «colocado» no poema de um modo consciente, é uma das muitas e desmazeladas iliteracias que a ausência de uma crítica sistemática permitiu que alastrasse.”) vou dizer o que bem me apetecer, com o devido respeito pelo autor. E neste livre jogo de pensamento talvez coincida, de vez em quando, com o que ele queria que percebêssemos e sentíssemos.

O livro tem três conjuntos de poemas: “Tropeço nos dias quentes”, “Tóquio” e “Poemas Siberianos”. O primeiro é bastante mais vasto e forma o espírito do livro. Nele aparece por vezes, poucas vezes, o habitual erotismo, quase pornográfico, de Bosco da Silva (em geral, trata-se de um acto de imberbes que descarregam energias no primeiro buraco que encontram ou ejaculam para o ar). Mas no essencial, os poemas assumem uma viagem ao passado, ao seu passado. Sem nostalgia, e muito menos qualquer rito de auto-celebração, recordam o sem-valor e os falhanços. E quando aparece o avô é para irradiar tristeza, quase pura, sem a mediação poética (capaz, muitas vezes, de ressuscitar mortos e de os pôr a dançar, como se não tivessem viajado, paralíticos, para longe). É a tristeza do que se esvazia, não de quem busca catarses ou linhas de sentido para o presente e o futuro. Portanto, quando Bosco da Silva espera “que valha a pena o passado”, sente-se que a resposta só pode ser: não! Por nada em particular, somente porque ele está cheio de actos falhados, como o presente e previsivelmente o futuro (“Acredita que todos os dias também eu me perco um pouco mais / para sempre.”). Daí tratar-se de “tropeços”, desse embater, involuntariamente, sem inteligência, nas coisas que a vida vai semeando, em modo armadilha, na nossa passagem.

Este retorno ao passado está condicionado, como sempre acontece, pelo presente. Mais, para Bosco da Silva “o passado é [até] influenciado pelo futuro.” Assim, acontece ficarmos sem saber se o passado foi triste e com pouco sentido ou se o observador poeta está tão desolado que só pode lançar sobre o pretérito o seu estado de espírito niilista actual. Ao mesmo tempo, parece haver um efeito de ricochete, ao querer compreender, e julgar, o passado, este vira-se para ele e pergunta-lhe: “Olha lá, achas que te tornaste numa boa merda?”. De qualquer forma, “O regresso é apenas um desfile de ruínas, é uma amputação / certificada”. Talvez por isso, a par da palavra “passado” encontremos, similar na frequência e intensidade, as de “esquecimento” e “vazio”. Ir ao passado para constatar que “O que está perdido está perdido, não vale a pena mastigar o vazio que ficou.” Ou “deixa o esquecimento levar todos os sonhos e dores, lavar a poluição […] não vale a pena, apaga a luz e espera pelo fim da noite.” Tudo queima, em lume brando, passado, presente e futuro. Mas o que seria da civilização sem um mal-estar persistente e invencível?

É por isso que o título do livro poderia ter sido: “Querido passado não fizeste um futuro”. Apropriado a um manual do esplendor invertido, uma tragédia estóica, em vez do histrionismo catártico das tragédias mais conhecidas. Tragédia mais ética do que moral, porque se trata de um indivíduo ensimesmado, dando chapadas a si próprio. E nisto também se percebe que Bosco da Silva se transgrediu. Mantendo alguns traços do seu cânone (sexo, diatribes de infância, intentos surrealistas – apesar de Franco Alexandre –, experimentos alcoólicos, escatologias fisiológicas), esta viagem ao passado abriu a porta, quer ele a atravesse, quer não, para outra poesia.

Qual? Não sei bem, não sei sequer se ele saberá, e se isso interessa para alguma coisa. Se todos os poetas devem, para o ser, encontrar o que é duradouro no fugidio, cada um fá-lo-á à sua maneira. A maneira de Bosco da Silva será a que se lhe impuser sem remédio. Para já é muito bom que se desvie tão bem dos clichés, a principal causa da decadência da poesia em Portugal. Um cliché é uma ideia sem raízes inventivas, uma ideia-hábito, ou uma ideia-preconceito, ou uma ideia ready-made, que não projecta qualquer necessidade interior, que não se confronta com a possibilidade do universal, que não alcança qualquer noção de beleza. Mas acima disto tudo, eles impedem que o poeta desenvolva um estilo pessoal, e sem isto a sua vida artística será curta e aborrecida. Não se ter encantado pelos clichés, faz de Bosco da Silva um poeta para o futuro, tanto mais que tem uma certa genialidade panóptica. É com profundo interesse, pois, que esperamos pelo seu próximo livro. Entretanto, leiam este, terão muito a ganhar.