Votos 2023

Jean-François Millet, As Respigadoras, 1857

Aproxima-se a época de lançamentos de lemas e anseios (a parvoíce é o combustível mais barato e mais usado), 2023 está aí ao virar da esquina e devemos entrar nele com temeridade e amnésia. É humano e é irritante. Sobretudo porque o humano não é um animal recomendável e porque este gesto nasce de uma confiança ingénua e acaba na indiferença (bem pior do que o fracasso, que se for assumido é um bom impulso para a ação).

Eu, que ando sempre ao rebusco de palavras (lembro-me desse hábito inscrito na pobreza transmontana, rebuscavam-se batatas, castanhas, nozes… depois das primeiras e maiores colheitas dos donos das terras, os pobres dos pobres apanhavam os restos em jeito de esmola digna), de centelhas de sentido esquecidas pelas máquinas incansáveis e predadoras de storylines, algum que me possa saciar pontualmente (apagamos as grandes composições metafísicas que conduziam, feliz e contente, o indivíduo ao altar, lugar dos sacrifícios sagrados).

Com a sorte do costume, encontrei dois montinhos de palavras que não irei lançar para 2023 mas porei no bolso do casaco orgânico puído para de vez em quando ler e experimentar uma órbita que não me afaste da minha Estrela do Norte.   

A primeira, sei exatamente onde a rebusquei, Simone de Beauvoir, Pour une morale de l’ambiguïté (Para uma moral da ambiguidade; tradução portuguesa a sair no próximo ano nas Edições 70), um livro de 1947 perfeitamente atual: «Não se devem confundir as noções de ambiguidade e absurdo. Declarar absurda a existência é negar que ela possa dar um sentido a si mesma; dizer que é ambígua é postular que o sentido nunca é fixo, que deve ser constantemente conquistado. O absurdo rejeita toda a moralidade; mas também a racionalização completa do real não deixaria espaço para a moralidade; é porque a condição do homem é ambígua que através do fracasso e do escândalo ele procura salvar a sua existência

Da segunda, sei apenas o nome do proprietário, não da terra na qual a apanhei: «A vida não é autoconservação, mas autoafirmação.» (Byung-Chul Han) Uma afirmação de si feita por um pessimista que ainda não desistiu de fazer o bem.