o despertar da primavera

Milton, Oxfordshire

perto de um escritório de uma corporação
perdido numa vila algures em inglaterra
há um pequeno cemitério onde jazem
soldados da royal air force que morreram
na primeira guerra mas foram transladados
muito mais tarde e já neste século
os seus corpos outrora ágeis
repousam agora debaixo dessas pedras
onde se lê thy will be done 

em tardes a fio
sem mais nada para fazer
do que pontapear a própria consciência
beber muito café olhar pela janela roer as unhas
isto há-de ser o que kierkegaard chamou
o desespero humano 
a função estética do tédio no entanto
é empregar muitas horas a meditar
no sentido da palavra definhar
ou esperar por d. sebastião numa manhã
de névoa e absurdo quando violentos
cavalos cortassem o nevoeiro
e a corte dos teus brilhantes amigos
me acalmasse com alguma frase
proferida na mais profunda liberdade
num assegurar de que a inteligência humana
ainda existe e está de boa saúde neste planeta 

cavalos a uma velocidade de verdadeiros aeroplanos
ou porque falo assim com o meu coração
era o que diziam os soldados de homero
antes dos duelos finais e das últimas palavras
pouco antes de tombarem
pela causa troiana ou por uma mulher
que não era a de nenhum deles nem nunca viria a ser
a guerra como a mais obtusa e esquálida e oportunista
das funções de uma imaginação melodramática 

penso nos dois que repousam no cemitério
da velha igreja em milton
ficaram muito tempo longe de casa
e pode ter sido algum gesto de caridade
nacionalista e populista na pior das hipóteses
talvez algum tory de província entusiasmado
com a possibilidade de ganhar alguns votos
lembrando aos paroquianos uma inglaterra
que se quer orgulhosamente só
de um tempo glorioso em que chegaram
a tombar aos mil
nos vastos campos da frança, da flandres 
nos alpes da suíça
e vencedora porque apoiada pelo
não menos vasto exército norte-americano

pode bem ter sido ou não esse o gesto
que os há-de ter trazido de volta aqui
de volta a casa
ou na melhor das hipóteses
um impulso decente
alguma coisa calculo
ao género de no man is left behind
mas a verdade é que eles jazem
agora em casa no solo pátrio
que os enviou para morrer longe 

ocupa-os agora o silêncio debaixo dos castanheiros
no cemitério da igreja onde de outro modo
lápides do século XIX dão conta das usuais
mortes prematuras de candidatos a byron
que nunca saíram da vila onde nasceram
mortes de parto e mortalidade infantil
mas os meus dois soldados

têm nomes bíblicos peter e simon
peter and simon, caro leitor, were left behind
voltaram a casa em meados de 2000
depois de terem caído em 1916 e 1918
um cadáver trazido de volta a casa
não se confunde com um rapagão alto e atlético
a beber sucessivas canecas de meio litro de cerveja
no pub que fica mesmo em frente ao cemitério
e está aqui há um século 

eu no entanto depois da visita diária
a paul e simon sento-me no meu posto
para esta outra missa de corpo presente
e medito nos mortos que não regressam a casa
nessa antecâmara do terror
que é a possibilidade de alguma força no mundo
reclamar de ti a pound of flesh ou mesmo
toda a tua carne contra a tua vontade
e passo o resto da tarde a ler wedekind
o despertar da primavera  

uma peça banida da alemanha
no princípio do século
(uma geração antes de peter e simon
tombarem a combater os alemães) 
onde a morte e a paixão se misturam
no veneno de uma comédia de enganos
onde adolescentes que leram talvez
demasiados autores gregos questionam deus
a solidão e o comprimento das saias
que uma rapariga no virar da adolescência
pode usar e morrem tragicamente
por vergonha, desespero, opressão
uma solidão absurda e sem eco
que é o rosto do mundo quando a espaços
nos fita sem olhos e sem boca 

quando a única necessidade absoluta
a única vontade a ser cumprida
são esses momentos de falha humana
por onde entra a luz e a percepção
de que o corpo não é o momento
do seu sacrifício enquanto instrumento
ao serviço de uma vontade que não é a sua
de uma ordem que ignora e oblitera o seu significado
mas antes que um corpo é o seu nome
a mais alta nota da sua mais elevada revolta
tu perdido no teu sono
e no teu suor ao comprido intacto
perfeitamente sagrado na transcendência que é a tua:
o chiaroscuro, o teu corpo e o teu tempo
o toque dos vivos

 

Oxford, 11 de Agosto de 2018