O corpo feminino 

 Ele disse, não quero uma dessas coisas cá em casa. Dá uma falsa noção de beleza a uma menina, já para não falar de anatomia. Se uma mulher fosse feita assim cairia de borco. Ela disse, se não a deixarmos ter uma como todas as meninas, ela vai-se sentir isolada. Vai-se tornar num problema. Vai ansiar por uma e vai querer ser uma. A repressão gera sublimação, sabes bem isso. Ele disse, não são só as mamas de plástico pontiagudas, são as roupas. As roupas e aquele estúpido boneco masculino, como é que ele se chama, aquele com a roupa interior colada. Ela disse, é melhor despachar isto enquanto ela é pequena. Ele disse, está bem, mas não me deixes ver. Veio a sibilar pelas escadas abaixo, atirada como uma seta. Completamente nua. O cabelo tinha sido cortado, a cabeça virada de trás para a frente, faltavam-lhe alguns dedos dos pés, e estava toda tatuada com arabescos de tinta roxa. Atingiu o vaso das azáleas, tremeu por um momento, como um anjo remendado e caiu. Ele disse, acho que estamos safos, o perigo já passou. 

Margaret Atwood
Tradução de Maria Sousa  

 

Mais depressa

Andar não era suficientemente rápido, por isso corremos, correr não era suficientemente rápido, por isso galopámos. Galopar não era suficientemente rápido, por isso velejámos, velejar não era suficientemente rápido por isso rolámos felizes por longos carris de metal. Os longos carris de metal não eram suficientemente rápidos, por isso conduzimos. Conduzir não era suficientemente rápido, por isso voámos. Voar não é suficientemente rápido, não para nós. Queremos lá chegar depressa. Chegar onde? A qualquer sitio onde não estejamos. Costumam dizer que uma alma humana só pode ir tão rápido quanto um homem pode andar. Nesse caso, onde estão as almas todas? Deixadas para trás. Vagueiam aqui e ali, lentamente, luzes sombrias, tremeluzentes, de noite nos pântanos, à nossa procura, mas não são suficientemente rápidas, não para nós, estamos muito à frente delas, nunca nos apanharão. É por isso que nós podemos ir tão depressa? As nossas almas não nos pesam.

Margaret Atwood

 

 

Mais nenhuma foto

Mais nenhuma foto, de certeza que há suficientes. Mais nenhuma sombra de mim atirada pela luz para pedaços de papel, para quadrados de plástico. Mais nenhuns dos meus olhos, bocas, narizes, humores, maus ângulos. Mais nenhuns bocejos, dentes, rugas. Eu sofro da minha própria multiplicidade. Duas ou três imagens teriam sido suficientes ou quatro ou cinco. Isso teria permitido uma ideia firme. Isto é ela. Assim, sou aguada, enrugo, de momento em momento dissolvo-me nos meus outros eus. Vira a página: tu, a olhar, estás novamente confuso. Conheces-me bem demais para me conhecer. Ou, não bem demais: a mais. 

Margaret Atwood
Tradução de Maria Sousa

Gajas impopulares

Todos têm a sua vez, agora é a minha. Ou pelo menos era o que nos ensinavam no jardim-escola. Não é realmente verdade. Alguns têm mais vezes que outros, e eu nunca tive uma, nem uma. Eu mal sei dizer eu, ou  

meu, tenho sido ela, a ela, aquela, há tanto tempo. 
 
Nem sequer me foi dado um nome; fui sempre a irmã feia , ponham ênfase no feia. Aquela para quem as outras mães olhavam e depois desviavam o olhar abanando as cabeças suavemente. As suas vozes baixavam ou calavam-se quando eu entrava no quarto, com os meus vestidos bonitos, a minha cara inerte e carrancuda. Elas tentavam pensar em algo para dizer que redimisse a situação - bem, ela é forte - mas sabiam que era inútil. E eu também. 
 
Acham que eu não odiava a pena delas, a sua bondade forçada? E saber que, não importava o que eu fizesse, o quão virtuosa eu era, ou trabalhadora, eu nunca seria bonita. Não como ela, aquela a quem bastava estar sentada para ser adorada. E ainda se admiram porque eu espetei alfinetes nos olhos azuis das minhas bonecas e lhes puxei o cabelo até elas ficarem carecas? A vida não é justa, porque é que eu deveria ser? 
 
Quanto ao príncipe, acham que eu não o amei? Amei-o mais do que ela; amei-o mais que tudo. O suficiente para cortar o meu pé, o suficiente para matar. Claro que me disfarcei com muitos véus, para tomar o lugar dela no altar. Claro que a empurrei da janela para fora e puxei os lençóis para cima da cara e fingi ser ela. Quem não o faria, se estivesse no meu lugar? 
 
Mas todo o meu amor chegou sempre a um mau fim. Sapatos a escaldar, barris cheios de pregos. É assim que se sente, amor não correspondido. 
 
Ela também teve um filho. A mim nunca me foi permitido. 
 
Tudo o que vocês quiseram, eu quis também. 

 

Margaret Atwood