Todas as cidades são mulheres

Todas as cidades são mulheres
Todas as mulheres irão ser cidades
Quero é saber do chapéu de fazenda
da mais antiga varina de Lisboa
e se ela ainda pensa em sardinhas
no canto mais escuro dos Prazeres
Há quem diga que está no ventre duma baleia
que acabou com o passado e o ofício
em que ainda os pés descalços
tinham mais poesia que os corações
Todas as palavras são sardinhas afogadas
varinas antigas de beleza ritual
a soprar a barriga dos peixes mais feios
para transformar a morte em alimento.

 

Ulises debería ser nuestro único dios

Ulises debería ser nuestro único dios
No digo esto sólo por habitar Lisboa
aun habiendo llegado desde más lejos
Lo digo como hijo de un oficio ingrato
que nadie paga salvo con amor perdido
cuidar las palabras y todas sus heridas
amores extraviados sin patria conocida
Debía ser Ulises nuestro único dios
Y cuando digo dios quiero decir amigo
el que nos escucha cuando atardece
y las sombras son suaves y regresan
Sin Ulises no hay historia del futuro.

Oração fria de Antonio Gamoneda

A arte de traduzir é, simplesmente, uma das mais elevadas e secretas. Poucos humanos conseguem levar poemas para uma outra língua com essa estranha e árdua fidelidade que reproduz a ebriedade, o ritmo, e o pensar cosido à música da vida da qual nasce o poema. Mais difícil ainda frente ao sentir popular, é fazer viajar a poesia para uma língua aparentemente familiar ou próxima. Mudar, verbo escolhido por Helberto Helder para este facto sagrado que sempre convoca a apropriação de outra voz e a recriação oral e escrita do poema, um verbo que, Gamoneda aceitou e recebeu com gosto. Sempre tem que ser um poeta a mudar a voz de outro poeta e sempre que isto acontece nota-se logo a partir do início da leitura.

            E é neste caso, o labor de João Moita que atesta da validade de todas estas intuições: não só a escolha de poemas de Moita é feliz como a tradução aparentemente mais fiel e menos mudada parece apontar uma facilidade de trabalho que talvez na verdade não exista. Talvez por uma das qualidades essenciais da poesia deste autor espanhol ser a própria musicalidade e a simplicidade do verso, facilite e até explique em grande medida a magnífica e bem-sucedida antologia portuguesa do autor.

            Como dizia, a apresentação da vida e da obra do autor feitas pelo antologista são muito pertinentes e oportunas para o leitor português. A antologia que tem como base uma outra recolha aparentemente definitiva feita pelo autor (Esta luz. Poesía reunida (1947-2004), Galaxia Gutenberg, 2004) é uma boa oportunidade para estabelecer um diálogo panorâmico com esta voz imprescindível pela autenticidade da sua voz ímpar, e onde a musicalidade e o pensar poético se encontram absolutamente fundidos.

            É preciso notar também que a antologia efectuada por João Moita acrescenta cinco poemas presentes no último livro, até ao momento, de Antonio Gamoneda: Canción Errónea. Facto que considero deveras importante por se tratar de um livro que no meu entender supõe um píncaro essencial da obra do autor, uma espécie de planalto a partir do qual a voz poética olha o passado e a ausência futura. A inclusão de alguns poemas deste livro facilita, melhora e acolhe uma necessária impregnação da obra do autor na perspectiva do tempo. Canción Errónea é um livro que supõe a maturidade total da voz e a sabedoria poética, onde alguns dos poemas fazem arrepiar pela profundidade e clareza da voz na perspectiva deste tempo ou desta morte vivida que é sempre a poesia: [...]Amo este corpo velho e a substância/da sua miséria clínica. /O esquecimento / dissolve a matéria pensante  /diante dos grandes vidros / da mentira. /Já /tudo está dirimido. / Não há causa em mim. Em mim não há /mais que cansaço e /um extravio antigo: /Ir /Da inexistência /à inexistência. /É /um sonho. /um sonho vazio /mas acontece. /Eu amo /Tudo quanto cri /vivente em mim. /Amei as grandes /mãos da minha mãe e /aquele metal antigo /dos seus olhos e aquele /cansaço cheio de luz /e de frio. /Desprezo /a eternidade. /Vivi /e não sei porquê. /Agora hei-de amar a minha própria morte /e não sei morrer. /Que equívoco.

            Poética vital, poesia vital que intensifica a vida. Assunção do mistério, diálogo com o invisível, reconhecimento do rosto na memória, consciência e afirmação da presença na ausência futura, vivência do corpo informe do símbolo, criação da beleza no impossível, são elementos essenciais de uma poética que resulta já imprescindível no nosso confuso tempo de poéticas barrocas, instranscendentes, superficiais e pacatas, cheias de um sentir quotidiano situado fora da imanência do sagrado que a vida impõe. Só na humildade, na aceitação profunda do símbolo poético pode nascer uma poesia autêntica e intemporal, onde nenhuma palavra é decorativa senão essencial, palabra esencial en el tiempo, definição da poesia de Antonio Machado que bem honra a escrita de Antonio Gamoneda. Quem queira penetrar no segredo da poesia que foge do acidental, quem queira fugir da poesia que nasce da experiencia passageira e intrascendente, acidental, deverá ler estes versos.

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Do mistério do ofício

DO MISTÉRIO DO OFÍCIO

A língua caminha atrás de mim
pelo deserto azul que é grande
saboreia o rosto fiel dos meus anseios
no rito canibal do dia novo
Por vezes submerge a verdade
e se enruga como um corpo na água
A verdade molha sempre demasiado
no falso desnudar da promessa

(p. 49)

O pássaro dorme dentro do barro
canta na manhã a sua árvore
voa longe a fazer ninho
para buscar e farejar o calor perdido
E sempre vem do céu para dormir:

Só os poetas podem chamar irmãos aos pássaros.

(p. 50)

Conta a lenda que São Francisco, depois de virar as costas às materialidades do mundo, entrou pelos bosques e, despojado de tudo, chamou a si a natureza, e não só as plantas como os animais o receberam de braços abertos. Em particular os pássaros, a quem chamava de irmãos.

Serve esta pequena nota ou lembrança para entrarmos no novo livro de Pablo J.P. López, poeta espanhol de quatro nomes (n.1983) e de um rigoroso talento poético. Tal como o santo que buscou a simplicidade, e renunciou aos seus bens, aos ornamentos das suas roupas, também Pablo constrói a sua poética com base nesse princípio - os poemas com os quais começámos exemplificam, de resto, o que digo. 

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