Há que apenas saber adoecer; Até que a fenda desabe; Seria querer muito para uma latinoamericana?; Mais forte que o açoite dos feitores; Quando stanislavski leu pela primeira vez a gaivota

Há que apenas saber adoecer

Não sinto sua falta
Quando posso dela
Tomar uma forma
Da qual tiro prazer

Tudo que não é arte me aborrece 

Como agulhas de gelo
O amor muitas vezes
Toma a face da violência 

Esmagada
Pela simples materialidade do meu corpo

Sou só 
Como Franz Kafka 

E até mais
Por ser mulher

Quão pequena me torno diante das abelhas!

Transformo minha doença em arma contra esse mundo
Ninguém como eu reconhece uma prisão
Nem Franz Kafka 

Agora não tenho recursos para análise
Tão consumida pensando em você 
Não escrevo

Sonho que minhas mãos são inflexíveis
E tento em vão empunhar
O medo insuportável de ser feliz ao seu lado

Me sinto exposta a tudo quanto você está protegido

Já não tenho salvação enquanto mudar seja
Transplantar os olhos

A escrita não cura a doença do mundo
E já nem posso chama-la de minha
Mas sem ela é impossível viver


Até que a fenda desabe


Movida por invisíveis galopes - busca agônica pelo divino - 
Onde aqui dentro tudo é tão apertado?
Onde aqui dentro - espaço de mundo imenso - me sinto cercada?
Onde habitam carvalho e seiva - labaredas em trânsito - 
Onde você fogo incontido lambendo meu peito
Onde você ripa seca e seus gumes
Inscrevem em mim o impossível:
Aquele que não para de se não inscrever


Seria querer muito para uma latinoamericana?

Tenho um amigo chamado Glauber. Sempre que desejava agradar se dirigia aos amigos assim: Como vai mestre. Elegante como sempre o mestre. Mesmo que fosse o mais esculhambado dos amigos, como o era João, que entendia naquela fala uma necessidade de tocar o barco. De modo que estamos todos à deriva sinto-me muy íntima de ambos. O delírio do Glauber era fazer cinema com imagens. Ele dizia: Palavra é coisa de teatro e não cinema. Glauber era um homem sem claquetes. Costumava interromper os amigos nos momentos mais inusitados, instaurando uma atmosfera de conspiração que o acompanhou por toda vida: Não diga que me viu para a sua segurança pessoal. Deixando o ambiente logo em seguida. Eu que não cheguei a conhecer o Glauber entendo perfeitamente seu sentimento asfixia. Sentimento esse que contribui em muito nas mortes prematuras. Sei também que o BR tem essa mania de maltratar seus melhores filhos. O máximo grau de vitalidade anárquica que esse corpo cansado atingiu foi decidir que não quer fazer um livro que vá tomar um ou dois dias do sujeito lendo pra ele ser enganado. Só pra tomar dinheiro alheio em troca de alguma distração inútil. Uma das poucas escolhas que um escritor pode fazer na vida é seu leitor. Quero escrever pras pessoas que queimam a vela dos dois lados, saca? O mínimo que se espera de um bom leitor é que ele ande nu na sua intimidade. O mínimo que se espera de um bom leitor é que ele tenha um amor especial pelos esquecidos e os que deixam de escrever. Sendo princípio e fim escrevo porque não há Deus ou homem que seja como Deus pra mim.


Mais forte que o açoite dos feitores

Uma sombra vespertina me contagia
Não se trata de mandar ou não notícias
O único modo de governar cada brecha
Desse tempo falho é interrompendo-o
Minha boca é morada ácida
Quero uma figueira sem pássaros
Para gozar dos frutos e anseios
De querer ser grande
A colher já não cabe no bule
Sua espada já não cabe em meu ventre
E atravessa cortando sua manhã 
Perpassa grades
Parte chaves
Assim invisível incorpórea
Vou ao termo
Posto de pé o próprio amor inflamado
Vai a pique
Você se queima
Mas sou eu quem sai ferida


Quando stanislavski leu pela primeira vez a gaivota


Temo que no fim o dinheiro valha mais que a arte e suas ideias. Permaneço distante de toda ação libertária no bangbang tropical. O que alimenta minha culpa é isso que deseja unificar todas as contradições, mas nunca fui boa em charadas, por isso não pude ouvir aquele que me falava decifrar seus recados:

Não é com as mãos que se pega uma mensagem na garrafa

A verdade trama
Rede múltipla
Abre percursos
É preciso percorrê-los
É preciso manter o impulso
É preciso passar por cada ramificação
Não há atalhos
Porque se trata do
Olho no olho

Quando stanislavski lê pela primeira vez a gaivota pergunta a nimirovitch: como eu vou encenar essa peça esquisita? Ao passo que seu parceiro prontamente o responde: se vira. 


Cinco poemas

FEITO VIVO


Nunca lancei meus olhos com
tanta sede
Cada retícula cada vinco cada
falha eu
captava sôfrego
Um retalho da fissura
abstrata no concreto todo
pedaço suspenso de coisa
Até a fibra adivinhada eu
mirava com vontade de
quem nunca mais iria
ver 


 

MENINO PICADO POR UM ESCORPIÃO

O choro intermitente e devido à insuficiente porção de veneno
formou-se um roteiro oculto indecisa
assíntota alacranada se avizinhando às pequeninas artérias - viés de um
ódio inacabado algo volátil anônimo
acomoda-se à ardência enquanto
vigiamos a pulso mínimas metamorfoses em cada sentido.
Ignorando até onde nos atravessa essa marcha puntiforme de
calibre venoso turvando o que
parece sempre a ultima contemplação
ele nos dá um desconhecido
sorriso.


 

PARA TUDO NA VIDA, UMA BOA IMAGEM

No painel da traseira do ônibus
na mídia digital do consultório
no meio aquoso da revista: casal de sorridentes velhinhos
(bote em forma de cisne) digamos
propaganda de pecúlio e empréstimos para aposentados. 
Jove ilustra colchões de mola e casas geminadas. 
Crianças suspensas em balões verdes para o plano de saúde.
Móbiles indiferentes à necessidade
premeditada.


ESSA LEVEZA

Tipo peso se
ausenta
da cama
e             é
percebida: o corpo desloca
a transparência


DESCULPE, BUT

Desculpe, mas pertenço a um mundo desvirtuado
Também não me sinto moralmente apto a
tirar da experiência um lema
Desculpe, mas minha formação musical é promíscua
Desculpe, infelizmente essa metáfora não me atinge
Obrigado, mas não vivo de ênfase
Desculpe, não planejo dizimar a ideia contrária
Desculpe, mas não concluí a tarefa com êxito


Quando as coisas acontecem

Quando as coisas acontecem, nunca é bom perguntar “porque é que aconteceram?”. Concentrem-se na expressão “as coisas”. As coisas não é bem “tudo”, pois não?...

Bom, se perderam o fio do meu raciocínio, há sempre que recordar a história de uma certa menina que disse, olha lá, como é que vais sair do labirinto sem um fio?...

É claro que a maioria das meninas nunca se lembraria disso. Ela lembrou-se. Como recompensa, foi traída. Estranham os factos?... Só se não pertencerem à elite. Nesse caso, avancem para a alínea b).

b) Não sei quem é Ariadne. Conto-vos por palavras minhas: havia um homem muito bonito, um actor famoso, que decidiu que queria entrar num sítio difícil. Ela, claramente apaixonada, lembrou-se do óbvio. Ele queria tê-la na sua cama. Anuiu. Foi ao sítio difícil, por sugestão dela, e por causa dela (uma pista), conseguiu voltar. No fim, já estava um bocado farto, por isso disse: adeus! Ela não ouviu, e por isso sentiu-se traída. Quem achar que isto é uma versão simplista da história, avance para alínea a)

a) Nunca perecebeu(este) porque é que alínea a) se chama “alínea” e não simplesmente “línea”? Avance para a alínea c)

c) Alíena c). Quando na antiguidade alguém dizia: estou a ler da linha c), dizia, em latim, porque todos na antiguidade falavam latim, “a linea c”. É claro que nessa altura “c” soava a “quê?”, o que podia ser confuso.

Passando todos estes prolegómenos, podem-se estar a perguntar o que é exactamente “acontecer”?

Deixo-vos com este pequeno enigma: quem são vocês?... Se por um instante pensarem que nunca haverão de morrer, estão dentro da linha corrente e coerente de pensamento. Se por um instante duvidarem, asseguro-vos: estão fodidos. Vão morrer.

Por isso, se acontecer alguma coisa na vossa vida, não se esqueçam que “coisas” é muito mais grave do que acontecer. Acontecer, toda a gente acontece. “Coisar” é que nem por isso.

Com os melhores cumprimentos, e esperando resposta em relação ao Anexo B,

Pedro de Braga Falcão

Momentum

I.
 
a chegada do interlúdio nocturno dispara na direcção de
um candeeiro intermitente à luz de todas as vezes. 
 
- são instantes fotográficos
 
em que a espera medeia o que lhes cabe nas mãos, ou
nas lareiras dissipadas pelo ventre do consolo da noite
 
são muros que se inundam à primeira oportunidade de errar. 
 
existe o salto e uma lebre espreitando na esquina
o torpor felino de um nome esquecido um
pássaro atordoado numa gaiola de estrelas. 
 
a penumbra e a sombra quando chegam são remorsos de
dois corpos que saem de si e entram em si
trocando de lugar no olimpo terrestre, pintando através dos sentidos a
insígnia profana de existir. marginais
 
um velho cospe para o chão a doença antes da morte lado
a lado com eles, sulcos de uma solidão urgente. 
 
- entre quatro paredes ninguém é feliz de pé. 
 
os ossos são o que mais se gasta a seguir, a pele sucumbe à razão
de nenhuma sensibilidade dizível e o último despojar é a sorte largada
em cruz: 
 
- enquanto o solstício não se anuncia, 
chegar é a melhor forma de  partir. 


II.

quantos poemas pediste neste labirinto pombalino? 
 
agora que nada tens, arrasa-te diante da folha amarelecida rasuras os cantos
com anotações minúsculas  e riscas demasiadamente na vertical movendo a
cabeça como quem espera a aragem vinda de longínquos poentes. 
 
a pergunta esmaga-te a gramática cardíaca e tu
já só consegues prosar uma mudez insuportável.  
 
só o poema te conhece. só na poesia te reconheces.  
 
afinal quantos poemas perdeste no engolir desta espiral
necessária? 
 
o vício precisa-te. tu retribuis-lhe e o vício-versa
 
na varanda o ofício do
cansaço registava o começo
das manhãs. 

 
a demência e o amor abrem-te por fim, 
os seus caminhos nas tuas veias sujas
 
- alcatrão pó e promessas por cumprir – 
 
e tu, 
destituição de fome ou falta de agasalho
 
decides enfrentar o que te consola quando no
palco são já outros que te espiam a ti.

A nudez de Scarlett Johansson com uma nota de Byung-Chul Han

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A Maja Desnuda de Goya, c. 1870/80, inaugura os nus femininos reais, foi uma das primeiras vezes em que o púbis aparece retratado, ao mesmo tempo que o olhar da personagem nos confronta e nos desarma, obrigando-nos a vê-la como um ser histórico em vez de mitológico. Note-se, todavia, que o seio direito está fora do lugar, desafiando claramente as leis da gravidade. Goya sacrificou o realismo da anatomia à, creio, erotização da personagem, o que comprova o fascínio do masculino por esses órgãos que servem a vida.

O texto infra foi escrito em 2011 (introduzi pequenas alterações), ano do acontecimento (suposto roubo e difusão de fotografias íntimas do telemóvel da actriz Scarlett Johansson), revisito-o agora a pretexto de um livro recente de Byung-Chul Han sobre a Salvação pelo Belo (espero recenseá-lo em breve). Uma das teses do filósofo é a do desaparecimento do belo, porque tudo se tornou liso (“O liso é o fio de [Ariadne] da nossa época. Ele liga as esculturas de Jeff Koons, o Iphone e a depilação brasileira”), não há dobras, físicas ou metafísicas, estrias onde alojar a dúvida ou a dor, tudo acontece numa tessitura implacavelmente dócil e fluida, corpos depilados e obras de arte sem qualquer obscuridade ou indecisão, como as de Jeff Koons, desprovidas de profundidade (“Face à sua arte, nenhuma interpretação, nenhum juízo, nenhuma hermenêutica, nenhuma reflexão, nenhum pensamento é necessário”). Ainda relacionado com as imagens de Johansson, diz Byung-Chul Han: “Face à vacuidade interna, o sujeito da selfie tenta, em vão, fazer-se engraçado. As selfies são formas vazias de si. Elas reproduzem o vazio. […] Trata-se de um narcisismo negativo.” Vejamos então o que pensava e agora se actualizou.

“O Jornal El País tem um artigo muito interessante de Vicente Verdú com o título “Scarlett y el púbis”. Relata o pretenso roubo das fotografias do telemóvel de Scarlett Johansson. O artigo desenvolve-se a partir da hipótese desse roubo ter sido encenado. O articulista estranha que tirando fotografias a si mesma, liberta da roupa protectora (que tantas vezes favorece o erotismo), Johansson as tivesse deixado num objecto que facilmente se perde. Já o acto narcísico das auto-fotografias [em 2011, o termo selfie não estava na moda], claramente atravessadas por energias libidinosas, é para ele compreensível, porque essa é a quase-condição para ser o que é: objecto de desejo e fonte de inspiração estética.

Surpreende-o também que tudo pareça tão escrupulosamente encenado, ao ponto de não o ser. Isto é, com a inflação actual de imagens que expõem o corpo nu esculpido em make up (tangível ou digital), um que apareça desleixadamente natural aumenta tremendamente a carga erótica. Além dessa naturalidade, Johansson aparece em lugares e com posses onde os homens normais costumam viver a realidade ou as fantasias sexuais, dando assim verosimilhança ao “sexo óptico” que as fotografias transportam.

Verdú termina dizendo: “Scarlett Johansson, ou qualquer outra com estatuto idêntico, não pode conformar-se em oferecer ao voyeur contemporâneo o mesmo aborrecido top-less de sempre, ou a insignificante morfologia do seu sexo, mas um cenário onde passeia, adormece, pensa, se depila.” Isto é, Johansson “oferece-se” num cenário realista que parece acessível ao “comum dos mortais”. Johansson tem, pois, de convidar-nos para a sua casa e desenhar poses que fazem de cada um de nós o seu voyeur preferido. Abertas a todo o mundo através da internet, estas fotografias dão-se, paradoxalmente, como únicas, autografadas pelos gestos e cenários íntimos, a cada um dos espectadores.