Ars Erotica

Mulholland Drive, David Lynch

Mulholland Drive, David Lynch

Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick

Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick

O Segredo de Brokeback Moutain, Ang Lee

O Segredo de Brokeback Moutain, Ang Lee

No primeiro tomo da História da Sexualidade (A Vontade de Saber), Michel Foucault discute a ausência de uma ars erotica no Ocidente, substituída pela scientia sexualis. Mas, é esta a novidade, Foucault não liga essa falta à repressão sócio-moral da sexualidade, como o fez apressadamente Maio 68. Na verdade, desde o século xvii que se multiplicam os discursos sobre a sexualidade. Numa longa análise dos dispositivos legais (direito canónico) e morais (pastoral cristã) sobre o lícito e o ilícito sexual (incesto, adultério, sodomia, homossexualidade, pedofilia, sexualidade dos loucos...), descreve genealogicamente uma “verdade do sexo”, que no Ocidente se declinaria numa scientia sexualis, assente na polarização entre permitido e proibido; enquanto o Oriente, um certo Oriente, estava há muito mais interessado numa ars erotica, onde a verdade sexual se ligava ao prazer.

O nosso conhecimento sexual, controlado inicialmente pela moral cristã, inscreveu-se na compreensão dos mecanismos da sexualidade através da confissão. Algo que favoreceu o nascimento da Psicanálise freudiana. De seguida, séc. xviii, uma certa objectividade científica decidiu explicar – biologicamente, sociologicamente e psicologicamente – a acção que mantém viva a espécie humana, discutindo-se a sexualidade sob a capa da procriação. Tudo isto aumentou imenso o aparelho discursivo em torno da sexualidade, começámos a falar de sexo pelos cotovelos (mas sem abordarmos explicitamente a questão do prazer, vamos mais facilmente, sobretudo no anedotário misógino, para o campo da sujeição, do domínio machista e dos aspectos clínicos ou reprodutivos).

Entretanto,  o cinema, mas também a fotografia e a pintura, foi desenvolvendo a ars erotica que não tínhamos. É esse testemunho, em reduzidíssima amostragem, que deixo acima, algumas encenações eróticas tão intensas que se alojam numa espécie de metafísica do amor, servindo de modelo a possíveis deuses (é isso que um grande realizador faz: um filme para deuses, nos bons exemplos de Kubrick, Lynch ou Lee).

Mas há diferentes níveis de jogos de linguagem/imagem eróticos. Hoje, fora da arte, o sexo é ao mesmo tempo um facto omnipresente e dissimulado, banalizado, dramatizado, desprezado e apreciado. Nunca a intimidade tinha irrompido tão fortemente no espaço público, uma forma de narcisismo e de comércio, seja, das duas ao mesmo tempo. Mas isso não aclarou certos problemas, sobretudo o de sabermos pensar e comunicar a nossa intimidade. Aliás, quando decidimos falar dela, refugiamo-nos na performance ou no idílio sexual. Continua a ser penoso confessar as dificuldades sexuais, a forma como nos submetemos aos interditos, as controvérsias entre impulsos e moral, as fantasias inapropriadas... Por outro lado, há um movimento em França onde se pode vislumbrar um novo paradigma: o “plan cul” (tradução livre: “plano f.”). Assenta em encontros com objectivos estritamente sexuais, “fazer amor sem relações amorosas”, e pode abrir para um novo tipo, muito menos preconceituoso, de educação sexual. Alguns objectam que tal já foi experimentado no movimento hippie de 60, mas julgo que então a contra-moral era ainda um forma de moralizar. De uma certa forma, parece que nos queremos aproximar do Oriente, de um hedonismo sexual sem compromissos morais. Ou será mais um bombom envenenado? (Upss, às vezes, fugindo a Nietzsche, parece que quero sobretudo discutir a melhor maneira de ser pessimista).