A invenção da noite

A languidez dos corpos inundava todos os recantos da nave, onde outrora se tinha insinuado a terrível batalha do sonho, do sexo e do abandono. A música tinha caído aos nossos pés, como uma águia alvejada, e a manhã feria de morte as pálpebras frágeis dos gladiadores. Enquanto dono da casa, cabia-me propiciar uma certa ordem naquela tendência para nos deixarmos morrer ao sabor de nenhum socorro. Muito a custo, deixava o calor dos meus lençóis, e a beatífica Beatriz no seu sono cheio de cavalos e hecatombes, e abria a porta do meu quarto para começar a fruir a densidade dos odores, a espada culpada da manhã no meu rosto, a visão dos corpos amontoados numa nudez de pormenor, numa fadiga caprichosa e relutante, numa ontologia de cera e indecoro. 

Na minha casa cabiam todos os percalços da noite. Era eu que a inventava. Começava a inventar a noite no fundo da casa, no quarto das desarrumações, onde alguns casais ainda soçobravam, pele contra pele, sono contra sono. Passava pelos corredores, esquivando as dunas que os corpos fechados instruíam numa espécie de oração sem fundo. 

Chegava à sala e o aparato era medonho. Mas aquilo fazia-me feliz, como nunca nada me tinha feito antes. Havia corpos descosidos na cozinha e nas casas de banho, alguns colados às paredes e aos tectos, outros levitavam na luz imprecisa da solidão insólita, como num lago, sob uma história infundada, insectos mortos. 

Fechava as janelas, com o máximo cuidado, descia os estores ou as persianas indolores, e a calma, a minha calma, ia-se restaurando pouco a pouco. Não era raro acontecer alguns deles despertarem, mas mantinham uma ingenuidade impostora que lhes dava um certo luxo amador e privilégios vindouros. A elas, às que permaneciam respeitosamente castas no seu fingido descuido oblongo, premiava-as sempre com um baile à queima-roupa. Ficávamos a dançar às escuras como monstros, algumas vezes até voltar a verdadeira noite. Era nessa altura que eu mais gostava de acordar a Beatriz.