Como eleger um tipo com vontades várias e dispersas, dando-lhe uma unidade que nunca terá

Naqueles dias, havia uma grande máquina ruidosa que fazia “pum, pum, pum”. Nessa máquina habitavam estranhos seres quadrados, feitos de uma matéria que dir-se-ia papel, mas que, na realidade, consistia em coisas “digitais”

(Não que os dedos fossem necessários; não, é uma expressão feita, assim, “digital”, diz-se mesmo assim: “di – gi – tal”.)

É claro que não levou muito tempo até haver um quadrado com ar de círculo que disse: “Ena Pá! Isto era mesmo o que eu andava à procura! Uma máquina que faz ‘pum, pum, pum’, só que sem eu querer. Isto quer dizer que, sem a minha vontade, tudo pode acontecer por si”. Chamemos “indivíduo” a este sujeito. Indivisível, portanto, e irrepetível como todos nós. Ao contrário da crença comum, o mal não é todo igual, varia muito e tem vontades muito dispersas. A alguns apraz arrancar unhas, a outros ver alguém arrancar unhas. Depende muito. Não das unhas, claro – da vontade.

Entretanto, a inércia, essa estranha senhora subtil e mal-amada, com olhar de gema e sorriso de ferro, disse melancolicamente: “ah, se eu falasse”. Prostrou-se num canto e continuou, com a sua habitual bonomia, a rezar.

Nisto, um desses quadrados que tem nome, neste caso K, teve um problema. K pensou que tinha muita importância o que escrevesse, escrevinhasse, com os dedos, nessa tal coisa sem papel. Pressuposto: os (as) milhares de capas do mundo inteiro podiam fazer com que biliões de pessoas (“as” pessoas) começassem a achar que determinado indivíduo (o tal indivíduo irrepetível) era uma inversão de todos os valores do mundo – como se todos os valores do mundo se pudessem inverter sem ajudas externas. A dos (das) capas, em específico.

A inércia continuava a olhar, e pela primeira vez na vida disse: “parem! parem!”. É que lhe custava – num sentimento que não saberia dizer se era inveja ou cobiça – exortar a que os outros preguiçassem como ela. Num certo sentido, a inércia tem atributos que se assemelham a uma divindade pan-helénica.

Bom, nisto o quadrado K viu que tinha criado algo bom. Como estava ainda no primeiro dia, achou que era cedo para descansar. Viu que a poia que fizera era grande e bonita, fumegava, transbordava opinião, ruía e falava. Estava cheia não de boas intenções, mas das suas boas intenções. Só não calava. Não, em certo sentido, anunciava: dizia, o indivíduo é a encarnação de todo o mal.

Entretanto, na Transilvânia parisiense, vários quadrados nunca tinham ouvido falar assim do indivíduo. Pensavam: “é pá, ele não é assim tão mau”. Assim mesmo, por estas palavras. Por “pensavam” entende-se o seguinte: “produzir pensamento sobre”, algo que, na larguíssima maioria dos casos, os homens estão habilitados a fazer, a não ser que estejam em coma profundo (e até isso parece-me discutível). Custa admitir, aos (às) capas, mas é absolutamente comum, banalíssima até, a capacidade biológica de produzir pensamento. Homens e mulheres. Homens, mulheres e crianças. Coisas não. Animais também o farão, mas não da mesma forma. Bom, “homens” em sentido lato. É melhor falar em “humanidade”. Não se ofendam. Guardem os vossos dedos para a digitalização do mundo, que corre dentro de momentos.

(Se ainda não entenderam, isto é uma rábula sobre Donald Trump, vá, desculpem lá o eventual equívoco, sei que é difícil, mas as boas alegorias e parábolas são difíceis de acompanhar. Um dia Jesus disse “amai-vos uns aos outros” e os discípulos perguntaram-lhe, “Senhor, porque falais em parábolas?”, não necessariamente por esta ordem; ou seja, mesmo as palavras simples são parábolas, não por acaso eram a mesma palavra antes de serem duas).

Então, esta humanidade, que tem a capacidade de pensar, começou, precisamente, a pensar sobre o indivíduo. Olhou bem para ele, e viu que era extremamente tonto. Olhou para si e pensou, e pá, eu sou bem tonta. Ficou feliz, porque a identificação é um processo bastante bonito de apropriação do mundo. É assim que crescemos, que porra. É lindíssimo.

O quadrado K olhou para esta parte da humanidade e pensou que ela estava a pensar cada vez pior. Convocou todos os (as) capas e decidiu que estava na altura de começar a digitar mais com os dedos. Bombardear com ideias verdadeiras a humanidade que pensa mal. O indivíduo, insistiam, é um idiota. Um tonto. Um estúpido. Um verme. Um cabrão. Um preconceituoso. Um fascista. Um homem que representa uma época que não deve mais existir.

Nisto, a humanidade, metade dela, extremamente digitada porque conhecia perfeitamente a máquina que fazia “pum, pum, pum” ou conhecia alguém que lia bastante a máquina que fazia “pum, pum, pum”, começou a pensar: ó diacho, estão-me a chamar idiota? Tonto? Estúpido? Verme? Cabrão? Preconceituoso? Fascista? Sou de uma época que já não deve existir? Ai é?... Ai é?... (nunca, nunca subestimem o poder do “ai é!”, decorrente da identificação)

Reparem no espanto, na estupefacção com que a humanidade, metade dela, saboreia as últimas palavras, “uma época que já não deve mais existir”. É revoltante, eu próprio sinto-me revoltado, com este perigoso insulto ontológico. Dizerem-te que não tens época é quase como forçarem-te a suicidar. Com a agravante metafísica.

Claro que o quadrado K, e os (as) capas, continuavam a digitar furiosamente, construindo uma idealização do mal puro, abstracto, filosófico, imaterial. Ou simplesmente digitando indiscriminadamente contra. Ou “partilhando conteúdo” (que coisa horrível de se fazer, que nojo).

A outra humanidade, que desconhecia conceitos pouco tangíveis como o da imaterialidade, nada entendia, e começava cada vez mais a convencer a outra humanidade de que ela própria existia, caramba, era presente, estava ali. Tinha época.

Nunca tinha ouvido falar assim do indivíduo, pensava até que era bem sucedido e rico, o que é uma coisa que grande parte da humanidade, mesmo a outra – percentualmente, se querem números científicos, representa cerca de 91,27% do total das humanidades do mundo, sei porque uma cegonha mo disse – considera até bastante positiva.

A inércia, entretanto, lacrimejava e olhava com piedade para os dedos furiosos, furibundos e cansados dos (das) capas. Desistira de tentar fazer o que quer que seja, e sentiu-se bem com isso. Estava, digamos assim, na sua natureza. E ainda nem era terça-feira.

K, que nunca foi “o” K, mas simplesmente um mero e insignificante K, como o indivíduo, estava estupefacto com a humanidade. Achava-a mal. Como podia ela gostar de uma idealização do mal puro, abstracto, filosófico, imaterial? Tal como ele o construiu? De uma época que já não existe?

As épocas gostam muito de aparecer. Sacanas.

Retaliando cada vez mais, os (as) capas digitaram e regurgitaram as suas amadas verdades e meias-verdades, porque não há que olhar a meios para atingir fins. (A inércia não, para o bem ou para o mal, nunca intervém em assuntos de estado, a não ser que seja preciso, necessário. Não achou, portanto, que fosse necessário).

Entretanto, o indivíduo, que até conhecia algumas coisas de digitação, nunca teve tantas oportunidades para digitar ele também, uma vez que os dígitos dos outros lhe permitiam uma profusão de digitamentos que nunca esperou.

Uma ideia foi crescendo dentro dele: “Oh lá! A humanidade não é tão estúpida como eu pensava. Há muita gente que pensa como eu”.

Houve, então, um enorme polegar que lhe respondeu afirmativamente; parece que toda aquela parte abominada pelos (pelas) capas se erguia num só gesto viril, fálico, impetuoso, fácil. “Gosto”. Seria esta a forma verbal que resumiria uma época.

Ficou muito feliz com o sucedido e continuou o seu nobre caminho, com vigor e felicidade renovados (ou “renovadas”, vamos lá a concordâncias politicamente correctas).

Escusado será dizer que os (as) capas digitaram ainda mais, em intensa e epopeica retaliação.

Por cada digitalizador surgiam, porém, inexoravelmente, pelo período variável de um instante a uma vida inteira, dois que não queriam digitalizar, mas iriam agora, com certeza, votar. Diziam nesse momento: “Ai é?”. Não vos disse? Não subestimem o poder do “ai é?”. Qualquer criança sabe disso.

K continuava sem acreditar na existência carnal de metade do mundo. Sabia que ela existia, mas apenas como conceito. Essa metade do mundo, porém, sabia bem da existência carnal de K, porque se achava incapaz de imaterialidades. Ele, aliás, gritava-a, com os seus amigos, na máquina que fazia “pum, pum, pum.” Nesse ambíguo equívoco, e num certo sentido, essa época nunca poderia deixar de ser essa época ou outra que era a mesma.

(Volto a lembrar que isto é uma alegoria, ou parábola. Como a de “amai-vos uns aos outros.”)

Bom, um belo dia, a 9 de Novembro de 1638, nada aconteceu porque não conheço bem a história de 1638.

Hoje, porém, todos sabem o que aconteceu.

K ficou imensamente perturbado. Achou que a sua digitação era um anátema-karma contra aqueles que existindo deviam deixar de existir.

A partir desse dia, o indivíduo não cresceu mais, porque já era adulto, e tornou-se presidente de algo grande, mas passível de ser nada. Os (as) capas continuaram a fazer dele um exemplo pleno do mal radical, do mal absoluto, do mal encarnado. E não é que se veio a tornar isso mesmo (esta profecia depende do momento em que leem estas linhas; se, por exemplo, um camião acabou de vos atropelar ou estão a morrer de fome numa crise ambiental à escala global, altura em que, aliás, vos desaconselho vivamente a que continuem a ler estas linhas – recomendo, se ainda não leram, um dos grandes mitos da humanidade, “Crime e Castigo” de Dostoievsky, porque tenho um fundo profundamente sarcástico e humano ao mesmo tempo, perdoem-me...)? Claro que os políticos lhe iam apertando a mão ou fazendo a guerra. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Muitos outros indivíduos foram nascendo e morrendo, como em todas as épocas do mundo.

No fim, já sabem, veio um meteorito e destruiu tudo.

Entretanto, não se esqueçam: “quem toma o homem por uma só, bela e pura natureza é tão estúpido como aquele que pensa que todos são como ele”.

Não demos, portanto, muito importância a quem diz que vai construir muros e tem a sinceridade (sim, sinceridade) de dizer aquilo que metade da humanidade agora, por breves momentos, pensou. Sublinhemos muito, muito, muito quem destruiu muros, amou quando pôde quem pôde e deixou uma época um pouquinho, infimamente melhor para quem se seguiu. Guardem para o fim das vossas digitações um pequeníssimo apontamento sobre o que julgam ser o mal encarnado. Um apontamento breve e sugestivo, subtilmente relacionado com o que se está a dizer, cria mais ideias do que três milhões de discursos e crónicas localizadas. A sugestão é um processo muito interessante. O indivíduo que o diga. É claro que, com estas prudentes sentenças, acabei de encontrar uma solução para o mundo.

E sim, isto é uma parábola.

Com os melhores cumprimentos, e aguardando resposta,

Pedro Braga Falcão