Sinéad Morrissey, Uma anatomia do olfacto

tradução de José Manuel Teixeira da Silva

É a melhor parte do dia - quando ele termina
aqui mesmo, contigo, entre lençóis que cheiram à nossa pele.
Consigo senti-la na noite: a tua pele, a delicada, magnética membrana
podia trazer de regresso a casa o meu ser perdido
com um simples toque no meio do escuro. Reconheço-a de novo, essa expansão
de sons e luz. Destrói qualquer distância entre nós dois.

Tinham cheiros os vestíbulos dos amigos de infância, cheiros familiares
que perseguiam os membros da família até à escola, quando iam clandestinos
nas mangas dos casacos e nas lancheiras, e eram furtivas revelações
das origens, de quem fez o quê, do que se calou
de súbito tão evidente como se tivesse acabado de chover.
Um exalava vinho, outro caminhara enrodilhado em mantas e em pleno sol;

quanto a ela, levava consigo o aroma antiséptico da caixa de insulina ou de pó de coco
bem junto a si, nos seus cabelos, e uns tempos depois o que tive de aprender
como sendo o discreto e difícil odor de um divórcio -
metal de estaleiro escavado por faíscas, cuspe, brilho de botas e ferrugem.
E sabia bem que tudo o que pairava no meu hall de entrada
revelava como um raio-x o perfil e a inclinação da minha espinha.

Agora, temos os dois também uma identidade -
o nosso cheiro impregnou os lençóis e envolve-nos a casa -
tinta invisível codificada até ao osso.
Tecêmo-lo espessamente como qualquer família
transporta em si o que é totalmente seu, totalmente distinto
e marca cada filho para a vida com a oculta natureza da sua criação.

Vindos de ti, os cheiros do deserto de Tucson:
depósitos de cobre, caveiras de animais, o risco a giz
das estrelas que nenhuma nuvem encobre ou tinge, o ocre e o chilli.
De mim, algodão lamacento, brilhos de carvão, alhos selvagens, o lodo do rio.
De nós dois, apenas sal. Quando um dia mudarmos de casa
vão seguir-nos genealogias assim.
 

Sinéad Morrissey  (Irlanda, 1972), Between Here and There, Carcanet, Manchester, 2002

 

An  Anatomy of Smell

It is the easiest part of the day — the ending of it,
here, with you, among sheets that smell of our skin.
I would know your skin in the dark: its smooth magnetic film
would bring me home and cease my being separate
with one blind touch. I know it again now, this expanse
of noise and light between us. It conquers distance.

Hallways of childhood friends had smells, family smells
that followed family members into school as stowaways
in coat sleeves and lunchboxes — slipped giveaways
of origin, of who made who, of what was left to tell
made suddenly clear in every detail as if recently rained on.
One was made of wine; one walked crushed by blankets even under sun;

one carried the antiseptic of insulin packets and coconut dust
about her, in her hair, and later what I knew by force
 to be the thin, hard odour of divorce —
shipyard metal caving under sparks, spit, boot polish and rust.
And I knew also that whatever was in my hallway
was exposing the line and the set of my spine like an x-ray.

Now we too have an identity —
the smell of us is through our sheets and wrapped around our home —
invisible ink encoded onto bone.
We have wrought it as surely as any family
forges something wholly themselves and wholly different
and marks each child for life with the hidden nature of their generative act.

From you, the smell of the Tucson desert: 
copper deposits, animal skulls, the chalk trajectory
of stars no cloud covers or stains, ochre and chilli. 
From me, bog cotton, coal fires, wild garlic, river dirt.
 And from the two of us, salt. When we move house
such genealogies as these will follow us.