De robe Amarelo

“Ver é delírio”

Ferreira Gullar

 

“dispara o olho tentacular
sempre aceso”

               Murilo Mendes

                                                           a Joana Matos Frias

                                         

                                                       I

A pintura não se faz sozinha, nem a poesia, nem a crítica de arte!
Nem num dia, nem numa linha. Nem Roma, nem Pavia.
Pouco importa tão óbvia afirmação. Risca. Comecemos outra vez.
Xul Taif: Do ponto o impulso rasga a pele!
                                                 
     II

 Um olho sobre
Um olho.
Duas narinas escuras, levemente curvadas,
dançam entre si como dois átomos; uma dança eterna se não as apanhasse o pintor
com a sua câmara lenta - Um frame congelado : dois pontos.
Caindo do nariz ao queixo, os lábios grossos marcam presença; e do queixo a meio corpo
cai um bipe com dois pequenos seios.
Na sua cabeça triangular não há cabelo mais bem penteado. Ou seriam já as marcas de um
futuro acidente? Uma cabeça esmagada numa passadeira de piões! Deixa o Gozo. Risca.
 
                                                        III
 
Comecemos pelo mosqueteiro,
pelo chapéu,
uma paleta ainda branca.
Sob a aba dois olhos:  um para a donzela, outro para nós leitores.
Uma barba definida. Não é uma barba! Sombra, uma Sombra que é luz!
O perfil marcado cai ao triângulo laranja do seu corpo. Risca. Risca.
                                                  
   IV

 A Pomba, o centro (enorme), une dois corpos. Não,
Três corpos!
Dois dentro do seu mundo, outro
além mundo.
Risca. Risca.

                                                       V

Fora da tela há um homem vestido de robe amarelo que
olha para a objetiva.
É o tempo de descansar um pouco. Pisar o chão, beber um chá!
Atrás de si décadas e décadas de esforço físico e pensamento.
Tudo atrás dele pouco importa: a Mulher, a Pomba, o Cavaleiro.
O importante foi chegar aqui! Vivo para esta fotografia.
 
Quando o fotógrafo sair vou dar um beijo `a Jacqueline,
despir este canário e enfiar-me naquela banheira quente,
pois o meu dia já está feito! Mais um Mosqueteiro!
 
Fechados os olhos na banheira, a mulher de bipe com seios murmurou ao Mosqueteiro:
Protege a entrada,
que ninguém o chateie mais
para que amanhã ele venha fresco
retocar-me e aumentar-me os seios!
                                                         
   VI

 A força deste homem, diante da minha objetiva, é este amarelo divino.
Ele um Deus e eu um mero homem tentando não tremer com a mão!
                                                      
    VII

 Sobre a tela branca, o velho inscreveu nova metamorfose!
Fundiu o seu espírito livre na Pomba, despiu-se de cavaleiro
e idolatrou a gás e a sombra aquilo que sempre amou: a Mulher.
 
E Deus, à sua semelhança, de robe amarelo, observa calado
as linhas do Tempo, as do passado e as do presente:
as do começo da tela às do fim deste poema.
 
                                                      ***

-Belmondo, you shall not misuse the name of the Lord
 your God[ard].
- Too late! _________ Corta, diz Elie Faure!

                                                                                                         

Captura de Ecrã (9167).png