Tatiana Faia, Leituras de 2021 (e algumas (re)leituras por vir)

Há nesta lista várias omissões injustas e inexplicáveis até mim, mas tentei falar sobre alguns livros que me marcaram ao longo de 2021. Se tivesse elaborado este balanço noutro dia e olhado para o ano que passou de outro ângulo, outros livros podiam ter sido mencionados. Estas coisas valem o que valem. Quero apenas falar de alguns livros que me interessaram e me inquietaram ou que, por um motivo ou outro, me encheram de alegria.

 

O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir (tradução de Constance Borde e Sheila Malovany-Chevallier, Vintage, 1997). No princípio do ano tive uma daquelas discussões parvas com uma amiga que me dizia insistentemente que não valia a pena ler O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir porque estava datado. Esta conversa acabou da maneira que se está mesmo a ver. Quando lhe perguntei se ela tinha lido o livro ela respondeu que não. Eu fui ler O Segundo Sexo e prometi contar-lhe como corria. Há em O Segundo Sexo momentos de uma agudeza de pensamento, de denúncia da exploração e da opressão a que uma considerável parte da população mundial foi e é submetida (a que nasceu no sexo feminino), que nunca vai ficar datada e não é só pela enumeração sistemática da infelicidade gerada pelo patriarcado a que Beauvoir se dedica com uma lógica difícil de refutar, como por exemplo quando ela descreve as tarefas inúteis em que as raparigas são instruídas numa idade jovem, como varrer o chão diariamente, que só servem para perpetuar a sua opressão, para as estupidificar. Não é possível concordar com tudo o que lemos – como a afirmação de que uma mulher com um casamento infeliz nunca será uma boa mãe (Beauvoir simplesmente não tinha suficiente elementos estatísticos para dizer isto, é uma afirmação puramente anedótica e misógina; alguma desta misoginia fez, claro, escola entre outras feministas: pense-se num livro como Slip-Shod Sybils da igualmente eloquente Germaine Greer). Ainda assim, O Segundo Sexo permanece um livro essencial. Mesmo o que é datado pode ter bastante valor e interesse. Há uma energia na prosa de Beauvoir que é a energia dos visionários e dos vanguardistas.

 

La Corsara. Rittrato di Natalia Ginzburg de Sandra Petrignani (Neri Pozza Editora, 2018). Quando estou na fossa mesmo ponho no Audible Le Piccole Virtù de Natalia Ginzburg lido por Giovanna Mezzogiorno e embora este exercício não me deixe necessariamente de melhor humor, deixa-me sempre de coração ao alto. Acho que há poucos escritores tão bons a descrever pessoas como Natalia Ginzburg. Isto é, tão exímios a encontrar a exacta medida de alegria e melancolia que trazemos connosco e que trama o enredo das nossas vidas, que o explica e o condiciona. Este livro de Sandra Petrignani não é uma biografia exaustiva, é exactamente aquilo que o título diz que é, um retrato. E é um belo retrato. Encontramos Natalia Ginzburg no contexto da sua vida, das amizades que cultivou, das relações familiares e amorosas que a definiram. É ainda, a partir de Ginzburg, um fresco de algumas décadas extraordinárias na história de Itália. É uma vida singular e difícil a de Ginzburg, marcada pela guerra, pela morte trágica e precoce de dois maridos muito amados, por encontros e desencontros com amigos extraordinários. Este retrato não colige só o trágico, mas também momentos inesperados (o breve envolvimento amoroso de Ginzburg com Quasimodo no pós-guerra) e extremamente divertidos, como por exemplo quando Ginzburg resolve começar a escrever teatro e de Elsa Morante só recebe comentários negativos. Sandra Petrignani tem uma tendência a divagar. Esquecemo-nos, por exemplo, ao longo de dezenas de páginas, de Ginzburg para ouvir falar de Calvino, Olivetti, Einaudi ou Pavese. É uma prosa jornalística ágil, atenta, inteligente e que, quando divaga, mesmo longamente, divaga em direcção aos centros de gravidade que definiram a vida intelectual e emocional de Natalia Ginzburg. Um livro para todos os ginzburguianos como nós.  

 

The Foreign Connection: Writings on Poetry, Art and Translation de Jamie McKendrick (Legenda, 2020). É um livro de ensaios curtos, este, cada um deles de uma imensa erudição, cheios de ligações inesperadas e ruminações aguçadas, divertidas, irreverentes (uma passagem típica: “It’s odd to say so of the man who covered the Sistine Chapel ceiling with the history of the world, but the sensibility at work in Michelangelo’s poems is a narrow one.”). Coligem-se aqui então os ensaios (muitos deles em formato revisto) que Jamie McKendrick, poeta e tradutor inglês, foi publicando ao longo dos anos em periódicos. A foreign connection do título é sobretudo à literatura italiana, de Dante a Montale e daí a Bassani, Pavese, Pasolini, chegando a Valerio Magrelli e Antonella Anedda. Encontramos aqui, quase sempre, uma clareza necessária e de repente inesperadamente óbvia, como quando se defende que a tradução é uma forma de activismo literário. Outros textos só podiam ter sido escritos por um poeta, como aquele em que McKendrick especula que música exactamente é aquela que se escuta no famoso poema de Kaváfis, “O Deus Abandona António” e daí se tece uma ligação que vai de Shakespeare à música que em criança, em Liverpool, Kaváfis deve muitas vezes ter escutado nas ruas. Alguns ensaios são uma introdução à poesia inglesa escrita pela geração a que McKendrick pertence (Hofmann e O’Donoghue), outros levam o leitor através do mapa da poesia irlandesa (Heaney, Paulin, Muldoon) ou americana (Dickinson, Crane, Bishop). Muitas vezes a pintura e a literatura cruzam-se, quando se discute, por exemplo, o Dante de Botticelli ou os elos que ligam Catulo a Dante e Ticiano. Outras vezes resgatam-se ligações inesperadas entre pintores canónicos e obscuros, ou entre quadros emblemáticos e menores. Discute-se o que as obras de grandes pintores italianos, ingleses e indianos fazem a quem passa muito tempo a olhar para elas. Predilecções pessoais cruzam-se com autores e artistas marcantes nestes ensaios que nos lembram da necessidade de nos rodearmos de certos poemas, de certas imagens, de certas ideias, para que o nosso mundo se mantenha fértil e belo.

 

 

Like de A.E. Stallings (Farrar, Straus and Giroux, 2018). Penso que A.E. Stallings é uma das poetas mais interessantes a escrever hoje. Stallings é uma americana casada com um jornalista grego, há muitos anos radicada em Atenas. As suas crónicas no Times Literary Supplement sobre seja o que for são sempre uma grande alegria de ler. A sua poesia coloca-a na mesma família poética de Louise Gluck, Anne Carson e Alice Oswald. Os seus poemas são caracterizados por um grande virtuosismo formal que lembra Auden e aponta para a sua educação de classicista. Mas a matéria dos poemas, para lá da sua cuidada roupagem formal, são as injustiças que vamos deixando de estranhar, coisas domésticas, menores, quotidianas, vistas muitas vezes com grande sentido de humor e ironia (o like que dá título ao livro é o do Facebook, o primeiro verso do poema “Like, the Sestina:” “Now we’re all “friends,” there is no love but Like” – n.b. desde que o livro saiu, o Facebook acrescentou o botão do amo, o que evidentemente resolve tudo). O seu virtuosismo formal atribui uma dignidade acutilante àquilo que seria banal e insignificante (como o brinquedo de um filho que se perde, ou os objectos de que as pessoas se servem em situações temporárias e que fazem o leitor pensar nos objectos que os refugiados carregam consigo, com grande sacrifício, até às costas da Grécia). O cuidado formal que A.E. Stallings investe nos poemas, a métrica, a rima, o retomar de formas fixas, podem ajudar a revestir o que é quotidiano do poético, mas não é retórica isso. Antes aquela coisa difícil que só os poetas a sério conseguem fazer, de revelar o lado de epifania e transcendência das coisas mais banais quando vistas à luz de uma certa linguagem. Veja-se isso num poema sobre uma coruja vista na ilha de Spetses: “It’s not what we see, but what sees us/ Makes us who we are./ Do you remember years ago on Spetses,/ Under the evening star…/ We strolled along the sea road/ And spied a little owl/ Less a bird/ Than a small clay jar/ Balanced implausibly on an olive branch…/ Then she swivelled the orbit of her gaze upon us/ Like the Cyclops eye-beam of a lighthouse.”

Um outro poema de A. E. Stallings pode ser lido em tradução aqui.

 

Dora Bruder de Patrick Modiano (Folio Gallimard, 1999). No final da década de 80, lemos numa pequena nota introdutória, o narrador de Dora Bruder encontrou num velho jornal, Paris-Soir, datado de 31 de Dezembro de 1941, um pequeno anúncio sobre o desaparecimento de uma rapariga de 15 anos, Dora Bruder. Em Dezembro de 1941 Paris está sob ocupação nazi e Dora Bruder é judia. Dora Bruder tem coisas em comum com o narrador, de ascendência judaica, e com o pai do narrador, que pode ou não ter-se cruzado com Dora Bruder na altura do seu desaparecimento. Há depois o elo perturbador entre a Paris do passado e do presente: Dora Bruder e o narrador têm em comum o mesmo quarteirão de Paris, o Boulevard Ornano, onde ambos cresceram. Podia dizer-se que esta novela é uma espécie de conto policial, sobre a obsessão do narrador com Dora Bruder. Ou podemos especular que esta novela é ao mesmo tempo um comentário sobre a permanência fantasmagórica das grandes abstracções históricas sobre a história dos indivíduos, vista aqui como algo que os continua a obliterar ainda no presente, muito depois do seu desaparecimento. O desaparecimento inexplicado e inexplicável de Dora Bruder, por um lado, é uma forma de resistir a uma ideia que domina muita da literatura recente sobre o holocausto: a de que é possível extrair algum sentido deste evento para algum efeito de consolação, numa imposição perversa de um vago mecanismo de compensação emocional e moral que diz mais da forma como o lado mediocremente transacional do capitalismo invadiu certas estruturas do nosso pensamento ético do que de facto compensa ou explica alguma coisa. Como podemos nós querer dizer, há um sentido para isto, para a obliteração sistemática de pessoas como nós? Por outro lado, o inexplicável e o pouco sentido que podemos fazer dele são na maturidade da escrita de Patrick Modiano o que a ironia e a sátira foram nos seus primeiros romances (nomeadamente em La Place de L’ Etoile, uma obra que, no seu tom de sátira cultural e histórica, tem muitas coisas em comum com os primeiros romances de um escritor da mesma geração que ele, António Lobo Antunes). Ao excesso desse romancista jovem e polémico, brilhante e com um desejo extremo de se tornar visível, que satirizou irrepreensivelmente a hipocrisia da sociedade e dos intelectuais franceses em relação ao holocausto, opõe-se esta narrativa concisa, quase com a intensidade despojada de um film noir centrado em certos bairros de Paris, que é sobre o modo como a realidade às vezes se mistura perigosa e tristemente com a ficção. Lembra-nos que não podemos ficar demasiado acomodados com o lado sórdido e intolerável da história.

 

Três Cliques à Esquerda de Katerina Gógou seguido de Cancro de Sean Bonney (Barco Bêbado, Novembro de 2020, tradução de José Luís Costa e Miguel Cardoso). Escrevi sobre este livro aqui.

 

The Murder of Regilla: A Case of Domestic Violence in Antiquity de Sarah B. Pomeroy (Harvard University Press, 2007). No ano de 160 d.C., ou pouco depois, um romano chamado Bradua levou a tribunal um grego chamado Herodes Ático. Esse Herodes Ático foi no seu tempo um famoso milionário, professor de dois imperadores romanos do período antonino, Marco Aurélio e Lúcio Vero. Foi ele quem construiu em Atenas o teatro que tem o seu nome e onde ainda hoje é possível assistir a concertos e outros espetáculos na encosta situada a sudeste da Acrópole, um espaço que amo profundamente, de um amor que ficou um pouco estragado com a leitura deste livro. A acusação que Bradua faz contra Herodes Ático é a de que Herodes Ático tinha assassinado a própria esposa, Regila, que era irmã de Bradua e que se encontrava à data no oitavo mês de gravidez, à espera de um filho de Herodes. The Murder of Regilla é um livro que tenta reconstituir vários aspectos do mundo clássico que se encontram pouco documentados ou que são por norma menos estudados e por isso tendem a ser menos objecto de escrita de divulgação por parte de classicistas (Sarah B. Pomeroy, de resto, é autora de um outro estudo importante, e bastante acessível a não especialistas, sobre a vida das mulheres na antiguidade, Goddesses, Whores, Wives and Slaves: Women in Classical Antiquity, originalmente publicado em 1975): a vida de gregos poderosos na corte de imperadores romanos, a vida quotidiana de mulheres romanas na Grécia, que é um aspecto absolutamente singular da vida de Regila e as consequências (ou falta delas) do feminicídio na antiguidade. Tudo isto nos faz pensar sobre questões de poder, colonialismo e violência de género no presente. A Antiguidade é sempre um mapa para isso.

 

The Europeans: Three Lives and the Making of Cosmopolitan Europe de Orlando Figes (Allen Lane, 2019). Não parece, mas este é um livro sobre comboios, ou melhor, é um livro sobre o triângulo amoroso entre Turgueniev, a cantora de ópera Pauline Viardot e o marido dela, Louis Viardot. Mas é sobretudo um livro sobre a relação entre comboios, ópera e as paixões de um século, o XIX. Orlando Figes escreve aqui sobre as origens do mundo contemporâneo e das formas como nos fomos tornando consumidores de cultura, no melhor sentido desta expressão que é vagamente infeliz. Pelo meio, há um retrato inesquecível do jovem Turgueniev enquanto empregado de escritório, cuja ingrata função era registar e garantir que eram cumpridas as sentenças de prisioneiros condenados à pena capital (Turgueniev alterava-as frequentemente para penas bem mais leves). É também um livro sobre a vida imensamente criativa, e imensamente esquecida, de Pauline Viardot e dos pintores, escritores e compositores que orbitaram em redor deste triângulo. Enfim, o retrato de um século num momento de viragem, bem escrito e bem documentado, imensamente bom de ler.

 

Duas antologias de poesia portuguesa: Uma Antologia Dialogante da Poesia Portuguesa, editada por Rosa Maria Martelo (Assírio & Alvim, 2020) e Já Não Dá Para Ser Moderno: VI Poetas Portugueses de Agora editada por Ricardo Marques (Flan de Tal, Janeiro de 2021). Nuno Brito escreveu sobre a antologia de Rosa Maria Martelo aqui. De alguma forma são duas antologias sobre diálogos que poetas estabelecem entre si. Os diálogos entre poemas que Rosa Maria Martelo antologia são deliberados e convergem, parece-me, para uma breve história fascinante da poesia portuguesa, sobretudo contemporânea. Uma introdução lúdica, bem pensada e extremamente bela a alguns dos nossos poetas, por assim dizer, mais canónicos, visto de uma perspectiva comparada. Já Não Dá Para Ser Moderno: VI Poetas Portugueses de Agora sendo sobre o diálogo que se estabelece a partir de um traço que une os seis poetas aqui agrupados, o facto de que a sua poesia não ser uma de reacção a poetas anteriores, o que segundo o editor os singulariza, acaba por discutir o que se pode pensar como originalidade entre poetas a escrever na segunda década do presente século. É uma antologia que pensa, a meu ver, a marginalidade de um cânone em formação e a originalidade vanguardista dos poetas que agrupa. Concorde-se ou discorde-se com a tese do editor, é um objecto que faz um balanço útil e relevante da última década e que traz à baila uma característica da poesia contemporânea portuguesa de que pouco se tem falado e de que devíamos falar mais – o sentido de humor de certos poetas.

 

Três livros de poesia portuguesa que me acompanharam em 2021: As Orelhas de Karenin poemas de Rita Taborda Duarte, desenhos de Pedro Proença (Abysmo, 2019), Tojo: Poemas Escolhidos de Miguel-Manso (Relógio d’Água, 2013) e Atirar para o Torto de Margarida Vale de Gato (Tinta da China, 2021). Podia-se falar destes livros em conjunto a partir de um aspecto que Pedro Mexia define, no seu breve texto introdutório ao livro de Margarida Vale de Gato, como a prática de um “formalismo informal” (de um modo geral mais visível ao nível do cuidado com a linguagem do que do retomar de certas formas poéticas fixas). A outra coisa que os une é um sentido de humor inusitado, irreverente, de uma imensa inteligência verbal que expande em muito a nossa percepção daquilo que a linguagem pode fazer. Esta expansão é por vezes lúdica e concentrada. No caso de Rita Taborda Duarte, veja-se a este propósito “os resumos” de poemas em As Orelhas de Karenin, que por vezes brincam com a história da poesia contemporânea portuguesa e releem, às vezes parodicamente, às vezes pragmaticamente, os poemas mais extensos do livro. Ou assoma, em Miguel-Manso, na escolha de palavras inusitadas ou em desuso, que evidenciam por vezes um interesse quase académico na história do português enquanto língua, mas que se tornam centrais aos interiores cuidadosamente construídos pelo poeta, onde por vezes se entrevê a sua educação de pintor. Em Margarida Vale de Gato há uma atenção à polissemia de certos conceitos (e.g. elegia, história, prazer) que serve de instrumento a um comentário histórico e social lúcido e necessário, irónico e bastantes vezes (auto-)paródico (estou a pensar, por exemplo, no jogo entre título e poema em “A história foi enormemente exagerada,” numa composição em que a narradora erra de florista em florista num 25 de Abril em busca dessa flor que não se encontra em lado nenhum).

 

Passion Simple de Annie Ernaux (Gallimard, 1991). É um livro autobiográfico sobre uma paixão que se podia descrever como tóxica (obsessiva, desigual, quase meramente física) entre um homem casado e uma mulher divorciada que podia ser Annie Ernaux, mas, como sucede com a escrita biográfica desta autora, que se caracteriza por uma mistura de escrutínio pessoal e do tipo de impessoalidade que converte a sua expressão narrativa na voz de uma memória colectiva (na qual o individual se dissolve no histórico e vice-versa, o que é a característica marcante de um dos seus principais livros, Os Anos), esta mulher podia ser qualquer mulher, podia ser qualquer pessoa num estado de paixão e atracção sexual cegos e é justamente isso de que este livro é crónica, numa suspensão de juízos que é um ensaio atento sobre um estado mental a que, com sorte e azar, de vez em quando ninguém escapa. De um modo muito menos óbvio, um pouco mais oblíquo, é um livro sobre a relação entre a escrita e esse estado de paixão absoluta. A esse propósito, vale a pena deixar aqui um excerto da primeira página.

 

Cet été, j'ai regardé pour la première fois un film classé X à la télévision, sur Canal +. Mon poste n’a pas de décodeur, les images sur l’écran étaient floues, les paroles remplacées par un bruitage étrange, grésillements, clapotis, une sorte d'autre langage, doux et ininterrompu. On distinguait une silhouette de femme en guêpière, avec des bas, un homme. L’histoire était incompréhensible et on ne pouvait prévoir quoi que ce soit, des gestes ou des actions. L’homme s’est approché de la femme. Il y a eu un gros plan, le sexe de la femme est apparu, bien visible dans les scintillements de l‘écran, puis le sexe de l’homme, en érection, qui s’est glissé dans celui de la femme. Pendant un temps très long, le va-et-vient des deux sexes a été montré sous plusieurs angles. La queue est réapparue, entre la main de l’homme, et le sperme s'est répandu sur le ventre de la femme. On s’habitue certainement à cette vision, la première fois est bouleversante. Des siècles et des siècles, des centaines de générations et c’est maintenant, seulement, qu’on peut voir cela, un sexe de femme et un sexe d’homme s’unissant, le sperme – ce qu'on ne pouvait regarder sans presque mourir devenu aussi facile à voir qu’un serrement de mains.

 

Il m’a semblé que l’écriture devrait tendre à cela, cette impression que provoque la scène de l’acte sexuel, cette angoisse et cette stupeur, une suspension du jugement moral.

 


Queria terminar com uma nota sobre livros que não mencionei no texto principal, porque ainda não os li ou não os reli ou porque conto escrever sobre eles mais demoradamente ao longo de 2022, mas que me parecem de assinalar por um motivo ou outro.

A Lição do Sonâmbulo de Frederico Pedreira (Companhia das Ilhas, 2020), que foi distinguido com o Prémio União Europeia de Literatura de 2021 e cuja recepção crítica foi, a meu ver, inexplicavelmente omissa: não há assim tantos romancistas distinguidos com um prémio internacional na geração de romancistas portugueses a que Frederico Pedreira pertence (e são escassos até ver os romancistas portugueses nascidos na década de 80). Por outro lado, Frederico Pedreira tem um percurso enquanto tradutor, ensaísta, poeta e romancista que, de um modo mais geral, merece destaque e atenção e parece-me coisa de uma vileza incompetente e triste este tipo de menosprezo crítico por omissão preguiçosa ou facciosa.  

 

A Varanda de Ricardo Marques (Companhia das Ilhas, 2021), por motivos semelhantes ao do romance de Frederico Pedreira menos o prémio. É uma breve novela ensaística sobre a relação entre espaço (mental, físico), cultura (sobretudo literária mas também cinematográfica) e confinamento, um livro em tom conversacional que encerra uma reflexão mais profunda sobre o modo como estamos a viver agora e, regressados ao normal, o que pede mudança, revisão, rejeição de velhos padrões. É um livro que entra em diálogo com outro que discutimos aqui, A Torção dos Sentidos de João Pedro Cachopo, recenseado para a Enfermaria por Victor Gonçalves.

 

Dois livros editados no Brasil, mas acessíveis em Portugal, via encomenda pela internet ou Livraria da Travessa: São Miguel da Desorientação de Miguel Martins (Macondo, Dezembro de 2020), porque Miguel Martins é um dos grandes poetas de língua portuguesa, ponto final parágrafo, dogmaticamente e com imensa gratidão sempre que é possível lê-lo, e o mesmo vale para Mesmo o silêncio gera mal-entendidos: antologia 2000-2020 de Ricardo Domeneck (Garupa, 2021), exactamente pelos mesmos motivos. Alguns poemas desta antologia de RD podem ser lidos aqui.

 

Ventos Borrascosos de Fernando Guerreiro (100 Cabeças, 2019) é outro livro de poemas que segue sendo em geral ignorado pela crítica que escreve em jornais, coisa que para mim é motivo de perplexidade, preocupação e, de um modo geral, sinal do marasmo que vai caracterizando boa parte do que se escreve sobre livros em jornais portugueses e que mantemos o mau hábito de dignificar com o epíteto, convencional e em certos casos puramente ficcional, de crítica literária.

 

Pessoa: An Experimental Life de Richard Zenith (Allen Lane, 2021). Indispensável, incontornável, etc., sem ponta de ironia na enumeração dos ins-todos. Um livro a ser celebrado. Edição portuguesa para breve, diz-se.

 

Fernando Pessoa e Outros Fingidores de Maria Irene Ramalho (Tinta da China, 2021). Se por mais nada (e há, no entanto, bastante mais) porque coloca de novo em circulação e de modo facilmente acessível um dos mais belos ensaios que alguém alguma vez escreveu sobre um dos principais heterónimos pessoanos, “A doença do poeta,” a propósito de alguns dos poemas de “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro. 

 

Poemas de António Franco Alexandre é a reedição do ano, o que é quase desnecessário mencionar. No entanto, durante uns quantos meses, irei garantidamente continuar a alimentar esperanças pouco razoáveis em relação ao futuro do mercado editorial português, que me pareceu de um potencial digno de celebrações líricas infinitas assim que aquela gloriosa capa azul começou a aparecer nas minhas timelines das redes sociais.

Memories of Asia Minor in Contemporary Greek Culture: An Itinerary de Kristina Gedgaudaitė (Palgrave MacMillan, 2021). Um livro que quero muito ler. Em 1922 a Grécia procedeu a uma troca terrível de populações com a Turquia e tornou-se, pela primeira vez na sua história contemporânea, um país de refugiados. Os gregos que viveram durante séculos na Ásia Menor tiveram de recomeçar a sua vida noutro país, supostamente o seu, exceptuando que não viviam lá há seculos. Que memória fica deste evento histórico, deste lugar, deste corte, nas gerações que vêm a seguir? Este livro é um itinerário para essas memórias. Desconfio que este é também um livro muito necessário não só para entender a Grécia de hoje, mas sobre a relação entre trauma, violência histórica, identidade e persistência da memória.

WhatsApp p/Bitches de Ana C. Joaquim (Douda Correria e Poesia Incompleta, 2021) porque é um livro belo, vivaz e irrequieto, que, com riso mas sem catequismos ou agendas, questiona convenções e limites – sociais, emocionais e daquilo que achamos que é linguagem poética (escrito em português-brasileiro do WhatsApp). A edição é também belíssima.