Regresso a Simi
No alto do monte, uma fileira de moinhos
Cariados pelo desuso e o esquecimento,
Quase no topo a suposta tumba de um rei,
Ambos olhamos desta janela a bandeira
Dum pequeno barco de pesca
Enquanto ouvimos Luis Bacalov
Que dá ao ar a textura do fim de verão,
Há um ano escrevia um poema
Sobre a tumba desse rei e uma ovelha
Que jazia morta à sua sombra,
Hoje nos teus olhos vejo o movimento
Da pequena bandeira, de todas as bandeiras,
A passagem pelos astros, a nossa imensa
Insignificância capaz de ecoar numa amostra
De eternidade, nos teus olhos tudo
O que passou e passará, num silêncio
Puro, sem fronteiras ou língua.
Simi
05/09/2024
Regresso a Simi 2
Passando pouco mais de um ano,
O que resta do corpo da ovelha
À sombra do túmulo, é uma coluna
Branqueada pelo sol e a maresia,
O círculo de pedras bem encaixadas,
Continua o mesmo aos olhos pouco
Nítidos, uma ilusão de eternidade,
O reflexo destas pedras na frágil
Câmara escura de osso e sonho,
Mais abaixo ao sol, tropecei também
No seu crânio, quase num sobressalto,
Como quem num quarto escuro
Dá por si num espelho.
Simi
07/09/2024
Sonhos em Petricor
Nos sombrios retalhos dos sonhos,
Antes de umas tímidas gotas de chuva,
Logo se ergue uma vontade de pedra,
Os sonhos ficam vertidos na primeira luz
E as nuvens, sobre uma inquietação crónica,
Aguentam a pressão dos dias lentos,
Respira-se melhor com a carne entre os dentes,
Um aperto de desenrolar o coração
Num muscular esplendor, odiar nada
Mais que o tempo, que tudo traz
E tudo leva e atrás apenas, um eco
Em reflexo, nos limites de onde tudo é
E acaba, dos sonhos resta apenas o breve
Petricor, como uma promessa embriagada.
Simi
11/09/2024
Primeira Visita a Museu*
“para quê festas e grinaldas e canções e vinho
se os corpos envelhecem como as coisas”
Ruy Belo
Vês estas pedras brancas, meu amor,
Estes contornos humanos, uma quase carne
Fria e estática, as mãos que a esculpiram,
Há mais de dois mil anos que não são mãos,
O mundo era outro, a vida a mesma coisa,
Muitas vidas surgiram e passaram,
Que pedras tocará o teu corpo pequeno,
Que formas lhes darás, o que ficará de ti nelas,
Como nestas pedras, pelas quais tantas vidas
Passaram, enquanto estes corpos,
A mesma pele suave, um membro ou mais
A menos, a palidez que tomou conta da memória
E os teus olhos enormes olhando o seu silêncio,
Como se percebesses o mistério criador,
A ironia da vida que cria para a eternidade
E que não passa de um momento reflectido
Na forma de umas pedras tocadas pela paixão
De uma carne não muito diferente da tua.
* Ouvir “Padre Ramirez” de Ennio Morricone ao ler
Rodes
14/09/2024