Bruno M. Silva, "Toda a noite, o fogo" (lido por José Pedro Moreira)

O poema "Toda a noite, o fogo", de Bruno M. Silva, lido por José Pedro Moreira. Poema do livro A Cabeça em Tróia. Para mais informação ver https://enfermaria6.squarespace.com/bruno-m-silva-a-cabea-em-tria

Daqui à morte será apenas um clamor
e homens à procura de um nome
entre clarões e cavalos doentes
a febre de um deus feroz

mil anos
e chove em Tróia

e daqui à morte serão as mulheres
a inchar como palmeiras
em frente aos espelhos
as crianças a engolir o nome
os barcos presos no sal

Fizemos tudo
trouxemos a palavra, o incêndio
para que nos vissem um rosto saturado de beleza

ainda assim um deus feriu-nos
                                   ainda assim a morte

Tróia, meu deus, toda a noite, o fogo
de manhã, a luz nos meus olhos doentes
e um rosto que das águas emerge puro

Bruno M. Silva, A Cabeça em Tróia (Enfermaria 6, Março 2021)

Bruno M. Silva, A Cabeça em Tróia

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Bruno M. Silva

A Cabeça em Tróia

poesia

Enfermaria 6, Lisboa
Março de 2021, 52 pp

Posfácio de Pedro Eiras

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

8€

 

Não há caminhos, não avisto luz nas veredas
sob os montes há apenas as vozes dos lugares
e o peso que o amor faz sobre os trilhos

 

Bruno M. Silva

Bruno M. Silva nasceu em 1990, no Porto. Estudou Línguas, Literaturas e Culturas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tem poemas publicados na revista Ler, na Enfermaria 6, na Tlön, na Eufeme, na escamandro, na Gazeta de Poesia Inédita e no Jornal Universitário do Porto. Três dos seus poemas foram traduzidos para espanhol de forma a integrarem a antologia Lluvia oblicua. Poesía portuguesa actual, pela Valparaíso Ediciones. Venceu a 17ª edição do concurso Aveiro Jovem Criador 2018 com o conto O Que São os Mortos?.

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Yosano Akiko, "Dores de Parto"

Hoje estou doente,
doente no meu corpo,
de olhos abertos, emudecida,
estou deitada na cama de parto.

Porque é que eu,
tão acostumada à proximidade da morte,
da dor, do sangue, do grito,
agora tremo incontrolavelmente de temor?

Um jovem e agradável médico tentou reconfortar-me,
e falou sobre a alegria de dar à luz.
Uma vez que eu sei mais do que ele sobre esta matéria,
de que me serve o seu tagarelar?

Conhecimento não é realidade.
A experiência pertence ao passado
Que se calem então os que carecem de urgência
Que os observadores se contentem com observar. 

Eu estou sozinha,
perfeitamente, inteiramente, absolutamente entregue a mim mesma,
mordendo os meus lábios, segurando o meu corpo rígido,
servindo um fado inexorável. 

Existe apenas uma verdade.
Darei à luz uma criança,
a verdade movendo-se do meu interior para fora.
Nem bom nem mau; real, sem que haja nisto falsidade.

Com as primeiras dores de parto,
subitamente o sol empalidece.
O mundo indiferente fica estranhamente calmo.
Eu estou sozinha.
É sozinha que eu sou.

Trinta Anos, de Bruno M. Silva

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Ernst Ludwig Kirchner, Self-portrait as a Sick Person, 1918

Suponhamos que nada se sucede como esperavas.
Não te casas, não tens filhos,
o mistério não se acumula
e à tua volta cresce um dissimulado
vazio
a que te habituaste com os anos,
como água
que esfria em torno do teu corpo,
do corpo dos mortos, das flores de plástico.

Logicamente envelheces
e entendes necessário o ódio
para tamanha solidão.

No suceder das noites
os copos estalam sem ruído
por corredores que nunca atravessaste,
por cobardia ou conveniência,
mas que talvez ainda esperem,
como os rios esperam os suicidas,
os teus pés atravessando-os,
despidos de súbito de todo o abandono.

E lanças agora a prece a um deus
que talvez permanecesse
desde a infância,
mas que sem saberes lá ficou,
espiando altares derrubados
pela luz de uma certa clareza
que a esta hora te falta.

Os convidados
deixam também eles de aparecer.
A festa agora pertence-te,
e já te podes olhar dentro de todo este vazio –
já podes aclarar a voz com que dirás à morte
o teu nome.

28/09/20