O mundo dentro

Ilustração de Yiannis Kotinopoulos

Tradução de Tatiana Faia

Ontem foi o dia
Em que me esqueci de regar as flores e deixei
Que a roupa suja imaginasse
Uma nova cor na minha fonte. 

Não posso dizer ao certo se foi
No princípio ou no fim da semana
Embora me tenham ensinado a diferença
Entre os dias e a importância
De te ligares cuidadosamente ao presente
Com fios impalpáveis. Mas deixei
O pão no forno e ainda não havia
Ninguém que eu conhecesse nas urgências
Não me bateram de súbito à porta, só ramos
Da árvore no quintal intrometendo-se pela janela
E um cheiro a queimado comestível para ninguém. 

Havia um mundo dentro da minha casa como um espinho
Cravado na pata da raposa
Ganindo, coçando-se, chorando, arranhando, e por
Causa do mundo esqueci-me de mim
E lambi o mundo na minha carne
Duramente com uma língua dura tentando
Não deixar o seu fluxo de xarope exalar-se.


The world within

Yesterday was the day
I forgot to water the pots and I let
The laundry clothes imagine
A new color in my fountain.

I can’t say for sure if it was
The beginning or the ending of the week
Though I have been taught the difference
Between days and how important it is
To attach yourself carefully to the present
With impalpable threads. But I left
The bread in the oven and still there was
No one I knew in the emergency room
No sudden knocks on my door, only branches
From the backyard tree intruding through the window
And a burnt smell nobody could eat.

There was a world inside my house like a thorn
That is stuck in the paw of the fox
Whining, itching, crying, scratching, and for
The world’s sake I forgot myself
And I licked the world in my flesh
Hard with a hard tongue trying
Never to let its syrupy flow exude.

Canal I: Um poema de Katerina Iliopoulou

Poema de Katerina Iliopoulou
Tradução de José Luís Costa

A voz de Katerina Iliopoulou é uma das mais importantes da poesia grega actual, tanto pelo seu trabalho poético em si, quanto pela sua crença na arte como expressão de um momento colectivo, que pode ser idiossincraticamente partilhado por vários num mesmo espaço, como sucede na revista de que é a editora responsável, Farmáko (FRMK): Uma revista para a investigação do fenómeno poético. Farmáko quer dizer remédio. A sua é uma poesia preocupada com a reinterpretação de mitos e lugares e com o que é artesanal, expande-se para incluir animais, memórias de gestos artísticos perfeitamente anónimos (como aquele que é recordado no poema que aqui publicamos) e, sobretudo, parece-me ser comprometida com a ideia, como se lê num dos seus livros, de que a poesia é uma estratégia para viver porque o mundo não é uma obra acabada, é um espaço para onde dirigimos o nosso olhar interrogativo e, no qual, a partir desse olhar, escrevemos e somos escritos, gestos que acrescentam qualquer coisa que vai para lá da realidade, que por si não basta. Talvez seja por isso que os poemas de Katerina Iliopoulou parecem por vezes crónicas atentas e tensas de pequenas metamorfoses (a do mergulho de um pequeno nadador, ou a que se sofre ao atravessar um campo) e talvez por isso os achemos tão necessários. É uma grande alegria para nós poder partilhar alguns poemas seus na Enfermaria 6. O seu perfil está disponível aqui.

Tatiana Faia



CANAL I

Aprisionados no antes e no depois
deitamos olhares furtivos ao espelho
nele o nosso rosto endurecido e marcado
Em frente a estrada,
o rosto imaculado da juventude.
Aqui, juntos, no mesmo corpo.
Não se foi embora
não é um caminho que possas tomar,
nem um novelo que se desfie até ao fim
ai de nós, não
É uma concha que se contrói internamente
sem que se consiga ver a saída
sem que se descortine uma direcção
Um desígnio desconhecido
insaciável
E a viagem não é chegar mas descoser.
Desfaçamos pois as costuras.
A minha avó descoseu
um fato de homem inteiro
numa só noite
e voltou a cosê-lo do princípio
do avesso
Duplicava assim a sua vida
do avesso
O percurso tem duas direcções
cada momento
múltiplo cada momento
para a frente e para trás
e do início, várias vezes a mesma estrada.
Não era artimanha mas mestria.
Porque sem o conhecimento de um artesão tudo se perde duas vezes.
Como presente e como memória.
Deixa o tempo fluir
A provação é a passagem
Que encontres modo de passar até pela casa dum botão
Não se trata de avançares mas de aconteceres.

Sobre um verso de poesia estrangeira

Yiorgos Seferis[1]
Em Tetradio Gymnasmatôn (Caderno de Exercícios) (1928-1937)
Tradução de Tatiana Faia

Para Elli, Natal de 1931

Feliz aquele que fez a viagem de Ulisses.
Feliz se no começo da viagem sentiu a equipagem de um amor
com toda a força estendendo-se tensamente pelo corpo como
as veias por onde ressoa o sangue.

Um amor de ritmo indissolúvel, invencível como a
música e interminável porque nasce quando nós nascemos
e quando morremos, se
morrerá connosco, não o sabemos nós e mais ninguém o sabe.

Que deus me ajude a dizer, num momento de grande
felicidade, o que é ao certo esse amor;
sento-me às vezes rodeado de exílio, e escuto o seu distante
murmúrio como o som do mar quando
se mistura com um inexplicável remoinho.  

E surge diante de mim, de novo e de novo, o fantasma
de Ulisses, com os olhos vermelhos do sal
das ondas,
do desejo amadurecido de ver outra vez o fumo que se eleva
do calor da sua casa e o seu cão
que envelhece esperando junto à porta. 

Ali está ele de pé, alto, sussurrando através da sua barba
branca, palavras da nossa língua, como a falavam
há três mil anos.
Estende a palma da mão calejada pelas cordas e pelo
leme, a sua pele curtida pelo vento do norte, pelo calor
infernal e pela neve. 

É como se quisesse expulsar de entre nós o sobre-humano Ciclope
que vê com um só olho, as sereias, que se as escutas te forçam
ao esquecimento, e Sila e Caríbdis:
monstros tão complicados que nos impedem de entender
que também ele era um homem que se debateu no mundo,
com a alma e com o corpo. 

É o poderoso Ulisses: aquele que sugeriu que se construísse
o cavalo de madeira e os aqueus conquistaram Troia.
Imagino que ele vem para me explicar como também construirei
um cavalo de madeira para conquistar a minha Troia. 

Porque fala humildemente e com serenidade, sem dificuldade, parece
conhecer-me como se fosse meu pai
ou algum desses velhos marinheiros que curvados sobre as suas redes
na hora em que chega o inverno e a raiva do vento, 

que me cantavam, na infância, a canção do Erotókritos,
com os olhos marejados de lágrimas;
era então que eu me assustava no sono ao escutar o injusto
destino de Aretusa ao descer a escadaria de mármore. 

Ele sabe quanto é difícil a dor que sentes quando as velas do teu navio
se incham com a memória e a tua alma se transforma no leme,
estar sozinho na escuridão da noite e à deriva como
palha na eira; 

ele fala-me da amargura de veres os teus companheiros afogados
pelos elementos e destroçados um a um.
E de como é estranho ganhares força conversando com os mortos,
quando já nenhum dos vivos que restam te basta. 

Ele fala... vejo ainda as suas mãos que sabiam julgar se tinha sido
bem-talhada a sereia na proa
para assim me oferecer um tranquilo mar azul em pleno coração do inverno.


[1] O verso estrangeiro é “Heureux qui, comme Ulysse, a fait um beau voyage.” Joachim du Bellay, Les Regrets.

Eftychia Panayiotou, «Pouco antes de te levantares»

Tradução de Michel Kabalan

Pouco antes de te levantares

 Não me digas que não quiseste penas de pavão,
um vestido a arrastar pela pista da valsa.
E se o palpitar do coração te roubasse a coroa
quando o mais ousado te olhou nos olhos,
Não digas que foi ele o conquistador

Ele estava já ajoelhado.


Λίγο πριν σηκωθείς

 Μην πεις πως δεν πόθησες τα φτερά του παγονιού,
ένα φόρεμα να σκουπίζει την πίστα με βαλς.
Κι αν την κορόνα σού έκλεψε τελικά το καρδιοχτύπι
όταν σε κοίταξε στα μάτια ο τολμηρότερος,
μην πεις πως ήτανε κατακτητής·

στα γόνατα είχε πέσει.



Sobre a autora

Eftychia Panayiotou (Chipre, 1980) é uma poeta e tradutora de poesia (Anne Sexton, Anne Carson, Lord Byron, William Blake, Percy Bysshe Shelley). Já publicou 3 livros de poesia: μέγας κηπουρός, 2007(O grande jardineiro), Μαύρη Μωραλίνα 2010 ( Moralina Negra),e Χορευτές 2014 (Dançerinos). Ela também trabalha com poesia visual (videopoetry) e poesia sonora (soundpoetry).

Quatro poemas de Katerina Angheláki-Rooke em tradução de Manuel Resende

Katerina Angheláki-Rooke (Atenas, 1939) é uma das mais importantes poetas gregas da contemporaneidade. Educada nos Estados Unidos, é uma tradutora profissional do russo, do inglês e do francês, e divide o seu tempo entre Atenas e a ilha de Égina, onde tem uma mítica casa. A sua obra pertence à tradição de Seferis e Elytis mas a sua reinvenção dos mitos gregos é idiossincrática, talvez menos reverencial do que a destes dois, e profundamente ligada ao presente e a uma necessidade de examinar e questionar a condição feminina, e da própria Grécia contemporânea, tomando muitas vezes como ponto de partida esse referente. Em inglês recomendaríamos as antologias The Scattered Papers of Penelope  (Graywolf Press, 2008) e Beings and Things on Their Own (BOA Editions, 1994). É com alegria suficiente para tornar menos cinzenta qualquer segunda-feira que deixamos aqui alguns poemas seus na tradução de Manuel Resende, tradutor, entre outros de Kavafis e Elytis.

Adolescência 1

Com a adolescência o eu divide-se em dois:
um brinca e o outro apieda-se.
O tempo florista embrulha‑nos em papel transparente,
e, embora esta atenção só se dirija ao nosso florescimento,
não o sabemos e tomámo-la como caso nosso pessoal.
Inverno em Atenas em 1953,
as lajes do passeio nadam na lama,
as luzes vermelhas do cine Orphéas amesquinham o mais informe dos corpos.
Tens saudades do futuro como se fosse passado,
ao saíres do teatro Koun, o homem das castanhas à esquina,
a mamã com o casaco novo,
tudo te leva às lágrimas; a inconsolável Blanche DuBois
acompanha­‑me até ao bairro da Exárcheia;
os gladíolos amarelos pisados à chuva
amargamente me simbolizam.
A minha lascívia púbere idolatra o actor
que introduz os principais temas da minha vida
desejo – morte
depois ele afasta-se e eu prossigo
os restantes actos no meu acanhado palco.
Até chegar à porta de casa subi tragicamente até aos meus olhos;
que me falta que choro?
Chove e eu hei-de ficar sempre só, ninfazinha desamada ao frio.

(Epílogo do ar)

A transcrição do pesadelo

Para que o pesadelo se torne poema
é preciso que o silêncio não tenha rangidos
de alma, de coração ou doutros órgãos
da química inorgânica da existência.
No silêncio permite-se que habitem côres
mas estão proibidos os contrastes gritantes:
negro com carmesim
ou com o tão cantado azul dos olhos.
Talvez um pouco de cor de cobre
terroso de folhas murchas
ou branco com manchas de café na nuca dos cães.
Logo que o pesadelo tenha deitado todo o corpo que tem a deitar
é sujeito a uma série de operações.
Com grande minúcia há que lhe extrair
a suspeita lógica
e depois sem anestesiante
transplantar-lhe algo
da bondade inata dos humanos.
A intervenção mais difícil
consiste em amputá-lo do medo.
Isso consegue-se mergulhando
sem cessar o mau sonho
na santidade da natureza.
E é então que o poema floresce;
folhinha a folhinha
flor a flor
débil a princípio, trémulo,
ergue-se da negra terra que o alimentou
e ousa.
Ousa sonhar
o antídoto da aridez
a palavra.

(Belo deserto o corpo)

A outra Penélope

Por entre as oliveiras vem a Penélope
com os cabelos apanhados à trouxe mouxe
e uma saia comprada no mercado
azul marinho com florinhas brancas.
Explica-nos que não foi por dedicação
à ideia “Ulisses”
que deixou os pretendentes durante anos
a esperar na antecâmara
dos misteriosos hábitos do seu corpo.
Ali no palácio da ilha
com os horizontes fictícios
de um doce amor
e o pássaro à janela
a captar apenas isto, o infinito,
ela pintou com as cores da natureza
o retrato de eros.
Sentado, de perna traçada,
segurando uma chávena de café
matinal, um pouco macambúzio, um pouco sorridente,
a sair quente dos edredões do sono.
A sombra dele na parede
marca deixada por um móvel há pouco retirado
sangue de antigo assassínio
aparição solitária do Karanguiózis
na tela, e por trás dele sempre a dor.
Inseparáveis o amor e a dor
como o balde e o menino na praia
o ah! e um cristal que se escapa das mãos
a mosca verde e o animal morto
a terra e a pá
o corpo nu e o lençol de Julho.

E a Penélope, que ouve agora
a música sugestiva do medo
a bateria da renúncia
o doce canto de um dia sereno
sem bruscas mudanças de tempo e tom
os complexos acordes
de uma infinda gratidão
por tudo o que não aconteceu, não se disse, não se diz,
acena que não, não, não a outro amor
não mais palavras e sussuros
abraços e dentadinhas
vozinhas na escuridão
cheiros de corpo que arde à luz.
A dor era o pretendente mais excelente
e fechou-lhe a porta.

(Belo deserto o corpo)

Regresso ao tempo sem amor

O cão foi o primeiro sinal
de que brilham vazios os espelhos cá dentro
e de que havia um espaço infinito para ele
no interior da minha história;
podia entregar-me inteira a ele
aos seus pulinhos à luz
e outras actividades caninas.

Antigamente era assim, como casinha de recém-casados,
e a alma,
no ar meio roído em que se abrigava,
onde ainda não havia cheiros e choros,
leve como escama a arrastava o futuro.

Ontem à noite tornei a perder o barco
e enquanto os filhinhos dos amigos quietos
mergulhavam no seu sono azulado,
enroupava­‑me uma serenidade semelhante à origem,
talvez porque só o silêncio
pode unir a mirrada vida
com o furúnculo da morte;
mudo o humano
vê primeiro uma depois o outro
a alastrarem na carne.

E ninguém sabe se é progresso ou imobilidade
este vazio que como lava espessa
recobre as culturas do espírito,
se as obras que se apresentam à memória
vão a subir ou a descer,
se é perda ou lucro a dedicação
e se se roeram os dentes da máquina
no momento em que íamos para novo voo.

É tão certa hoje a terra
com os ramos secos, o pouco verde,
os torrões de terra que bondosos
se descansam na terra repartindo a emoção
equitativamente entre o fim e a origem...
Mas é fim esta beleza
que sempre inacessível
aflora os humanos torturados?

É fim aquilo que desarticulado se prepara
nas câmaras escuras do tempo
e não deflagra em desesperos e pragas,
mas bate em retirada diante das explosões que se aproximam?

É fim ou outra origem
na qual hoje à noite farão círculo
as caudas dos bichos adormecidos
em redor do meu sono,
para que eu passe ligeira
para a sombra inconsciente
como se nunca tivesse gritado:
“Meu amor, perco-me se me deixares agora!”
como se nunca tivesse tido o corpo sem fim.

(Belo deserto o corpo)