O Cinema no Espaço

    1. A  “teoria” surge, muitas vezes, de onde não se espera.

    Numa das falas de A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman, afirma-se que “agora que o espelho se quebrou, é altura dos bocados começarem a pensar”.

    A reflectir, reenviar imagens duplas (ou terceiras), encurvadas sobre si mesmas, em que a linearidade (apenas) aparentemente mimética das suas figuras, se opacifique, deforme, confunda, reconduzindo-nos a uma interrogação sobre a neutralidade e o funcionamento dos dispositivos.

    Em boa verdade, sempre foi assim, nomeadamente no cinema, uma prática das formas, como no início se dizia, “jovem” e, por isso, “secundária” e “segunda”, que, no próprio processo de reprodução do mundo e das outras “artes”, introduzia, na e pela imagem, já uma reinterpretação e crítica do real, assim como dos códigos icónicos que ele traz consigo.

    O  Western americano, como género – pense-se em John Ford (de The Iron Horse [1924], ou Stagecoach [1939], a The Searchers [1956]) ou Budd Boetticher ( de rajada, nos anos 50, Buchanan rides alone, Ride Lonesome, Comanche Station) -, levou por diante, ante os nossos olhos distraídos, uma exposição e reflexão sobre a espacialização do tempo na imagem – em certa media continuando a experiência inovadora do tipo de imagens introduzidas, nas primeiras décadas do século XIX, pelo Panorama-, tal como, para dar o exemplo de outro género (clássico) popular, o cinema de aventuras no mar (Raoul Walsh com Captain Horatio Hornblower [1951], Sea Devils [1953] ou mesmo The World in his arms [1952]), capta a ocorrência do “acaso” (a revolução das coordenadas do tempo e do espaço na continuidade de tempo da representação), elaborando, tempestade a tempestade, o que talvez se possa designar por uma poética do acontecimento.

    É o caso hoje, pensamos, de filmes como Gravity (2013), de Alfonso Cuarón (os seus primeiros 20/25 minutos), e All is Lost (2013), de J.C. Chandor.

    2. Através do longo plano-sequência (numérico-sintético), sem (quase) som, dos primeiros 16 minutos do filme (“a kind of  continuous flow allowed by digital manipulation”, como observa Roger Luckhurst na crítica da Sight & Sound de Dezembro de 2013 [vol. 23, nº 12,p.26]), aprofunda-se  a dimensão temporal do espaço que é como que modulada e varrida pela combinação do 3D (que permite pulsações, crispações e expansões,  projecções  frontais e laterais do espaço) com a sugestão dos movimentos de câmera (um plissado espácio-temporal da massa, contínuo, da imagem, percorrida e movida pelas dobras de correntes interiores que revolvem a sua superfície), de modo a construir a arquitectura de uma atmosfera formal-sensível de significação que podemos associar à 4D do cinema (“Cuarón estabelece um jogo geométrico apaixonante entre um espaço euclideano em revolução permanente e uma câmera panóptica que flutua pelo meio dos objectos num estado de imponderabilização”, comenta Mathieu Macheret nos Cahiers du Cinéma nº 693 [Outubro/ 2013, p. 32]) .

     Deste ponto de vista, o filme de Cuarón –hierarquias de “autoria” à parte – exponencia, dando-lhe vibração e volume, o trabalho de rarefacção e abstracção (mais  bidimensional) de Stanley Kubrick em 2001- A Space Odissey (1968 ): aqui, em Gravity, não é preciso lançar um osso no espaço para passar à alegoria, o “osso”, as extensões da nave/ máquina, fazem já parte do universo do plano (=imagem).     

    No início dos anos 30 – no quadro do fim do cinema “mudo” e da introdução das novas tecnologias do som e do 3D -, Jean Epstein, em dois importantes artigos (“ Le ciné-matographe continue…”e “Bilan de fin du muet”), refere-se  a um tipo (novo) do cinema, que ele designa (enigmaticamente) por “cinema no espaço” (“cinéma dans l’espace”),  uma forma que o ajuda a teorizar a possibilidade da 4D no cinema (algo com que também se preocupa, nesses anos, pensando-a sobretudo em função da Montagem, Eisenstein, nomeadamente no artigo “A Quarta Dimensão do Cinema” [1929], depois inserido no volume Film Form [1949]).

    Para o Epstein desses anos, o cinema permitia ao homem ter “experiências do tempo” (em presença, numa situação semelhante à simulação da realidade virtual: a da sessão de cinema) [I, 250], o que ele associa à 4D da imagem: “o cinematógrafo é o único instrumento actual que regista o acontecimento num sistema de quatro referências” [250], escreve. Por um trabalho de modulação (pela câmera lenta ou acelerada, a sobreposição ou o Grande plano) do tempo na imagem (aquilo que ele designa por manipulação da “perspectiva no tempo” [ibid.]), o cinema seria capaz de, esbatendo as “fronteiras entre os reinos da natureza” dar ou reatar com a unidade da matéria (o “mundo na sua mobili- dade geral e contínua”[ibid.]) e, assim, passar a ou criar um outro estado (superior) da matéria/ real. “Cada imagem traz consigo um instante do universo que reconstituímos no espírito em toda a sua continuidade à medida que decorre a projecção”: o que impedirá então o cinema de “criar o seu aspecto próprio do mundo?”, interroga-se [249].

    Em 1929, a propósito de A Queda da Casa Usher, no texto “A Alma em câmara lenta”, Epstein profetiza: “um dia,  o cinematógrafo será o primeiro a fotografar o anjo do homem [l’ange humain]” (Écrits sur le cinématographe, vol. I, Seghers, 1974, p.191 [em todos os casos, traduzimos]). Ou seja, sabêmo-lo hoje, os astronautas.        

    Mathieu Macheret, no texto dos Cahiers  (“Tombé dans le ciel”), estabelece uma relação entre a queda dos astronautas no espaço e o personagem (narrador) de A Descent into the Maelström de Poe. No entanto, mais do que ao conto de Poe – com o seu vórtice interior à própria matéria -, pelo nosso lado, referir-nos-íamos antes à tentativa de criação, no filme, de um espaço imponderável, suspenso da interacção , não feliz mas fatal (trágica), entre matéria e anti-matéria, homólogo daquele que é pensado por Poe em Eureka (1849).

    Por um lado, escreve Poe, ”na unidade original da primeira coisa encontra-se [já] a causa secundária de tudo, com o gérmen da sua inevitável aniquilação” [9], pelo que o mundo (a matéria), na sua expansão ( e divisão), tende para o desastre, a sua anulação, mas também para a unidade ( a de uma “matéria sem matéria”): “Ao mergulhar na unidade, mergulhará de imediato nesse nada”, “niilidade material”, que contudo pode dar lugar a uma “outra criação” (Coisas de Ler, 2004 [109]).

    Esse espaço de Enunciação autónomo, de imponderabilidade, de expansão das características formais-virtuais da Imagem de cinema, produzindo a partir de si mesmo a sua substância= realidade – na entrevista à Sight & Sound, Cuarón refere-se à construção de uma “caixa de luzes” onde foi metida a actriz, Sandra Bullock, de modo a criar um efeito de imponderabilização e imersão numa luz (homogénea e contínua) “não filtrada”: “we had to work out a system of surrounding the actor with lights on all sides, because the light has to go everywhere, and yet we still needed to be able to get the camera in the actor without the light being in the way”, observa Tim Weber, o responsável pelos efeitos especiais do filme [idem (30)] -,     

esse espaço, escrevíamos, é o de uma “atmosfera”= “bolha  englobante” (pele/ película amiótica de uma nova realidade monstruosa?, pós-humana?), seja esta a de Gravity, ou a do universo (sub)marinho de The Wild Blue Yonder de Werner Herzog (2005) – talvez o “elo” substancial-abstracto que nos permite passar da abstracção figural, sim, mas ainda figurativa, de 2001 de Kubrick, para a desfiguração informal de Gravity de Cuarón (ou pelo menos a sua hipótese, na 1ª parte do filme, antes dele sucumbir ao romanesco e pitoresco da linearidade narrativa do “resgate” da astronauta sobrevivente).

    Nestes filmes, assim, como na Arquitectura dita pós-moderna, confrontamo-nos com uma Imagem = matéria-forma sobretudo trabalhada, a expressão é de Alain Renaud-Allain, como a “detenção [l’arrêt] de um fluxo num caso de figura, mais ou menos robusto” (“La nouvelle architecture de l’image”, Cahiers du Cinéma nº 562, Outubro/ 2003 [71]). Nela, comenta ainda o autor, “ a mecânica dos sólidos subordina-se à  mecânica dos fluidos, a forma ao processo de formação; o sólido constitui um estado possível e provisório do material” e “a forma (…) é uma função do tempo (endurecimento, esfriamento…)” [ibid.].

    Daí que, no cinema, em que o ecrã (mole, líquido, poroso ou maleável) deixa de ser uma “superfície”= “espelho” (2D) para ser um “interface” (3: 4D), surja a noção de uma Imagem-modulação , “já não procedendo de um qualquer estado das coisas [Imagem- movimento > Imagem-rasto (“trace”)], mas da dinâmica das fontes e dos fluxos [uma Imagem in progress: poiesis]”(Renaud-Allain[72]). “Do estatuto de impressão luminosa [“trace” > mimese] de um objecto enquadrado , recortado no mundo, a visibilidade da imagem passa ao [estatuto] de caso de uma figura possível de um fluxo electrónico integralmente controlável e manipulável em cada um dos seus parâmetros (amplitude e frequência, luminosidade e cromatismo)” (sublinhado e parêntesis, nossos ) [ibid.].

    Parafraseando e invertendo a ordem de relação dos termos numa conhecida fórmula de André Bazin (voltaremos a ela), o que estes filmes nos apresentam é a hipótese da matéria como estado estético do cinema.

    3. All is Lost, de J.C. Chandor, com Robert Redford como velejador perdido na fúria dos elementos, é o anti-Gravity.

    À imponderabilização do espaço do filme de Cuarón (por isso, à sua maneira, Gravity pode ser visto como um western cuja “última fronteira” foi projectada no espaço) contrapõe-se aqui – é a fenomenologia do acontecimento (acaso e aventura [vd. latino advenire]) do cinema do mar -  uma lógica= princípio da colisão do espaço e do tempo – é isso o acidente (do latim accidens, verbo accedere), “o que acontece” – que leva à corporização (coagulação e depois explosão), em formas e figuras, de um “abstracto” (seja a noção de “espaço”) que se repercute, em cadeia, na / pela particularidade da massa.

    No “acidente” (aqui, a tempestade), o espaço absorve e fixa (materializa) o tempo, de acordo com uma tensão impossível que o leva a explodir= estilhaçar-se na particularidade da massa (a sua abstracção-concreta) que, no filme, é a forma: figura do cinema.

    Se Gravity pode ter a ver com a via de um pós-cinema, All is Lost  trabalha a massa, profundidade, para cá (o informe) e para lá (o fragmento) da figura: a sua “abstracção” é não a do ar: espaço mas a da água: massa (como em Abyss ou Titanic de James Cameron – pense-se, por exemplo, em toda a parte final de Titanic com a cavalgada wagneriana da massa das águas a invadirem a arquitectura= estrutura do plano e do barco).

    Voltamos, assim, à fórmula de Bazin (extraída do seu artigo “Wylliam Wyller, ou le janséniste de la mise en scène”), a de um cinema concebido como “estado estético da matéria”: uma substância dúctil e  plástica, arquitectura móvel e porosa, pregante ao real, em sintonia com a concepção plástica do cinema elaborada na década de 1920 por  autores como Riccioto Canudo, Élie Faure, Germaine Dulac, Marcel L’Herbier ou Jean Epstein.

    Para  Faure (“De la Cinéplastique”,1922), o cinema, fundamentalmente, “incorpora tempo no espaço” [33] e a sua “forma” (caracterizada pelas modulações da “duração”) pode ser descrita  como um “drama formal precipitado no tempo” [34]. Ao fim e ao cabo, uma matéria-massa, concreta-abstracta, que se podia trabalhar como uma arquitectu-ra maleável de ondas e fluxos aberta ao mundo: “o filme é, antes de mais, plástico”, comenta Faure, “ele representa (…) uma arquitectura em movimento que deve permanecer em constante acordo, num equilíbrio dinamicamente continuado na relação com o meio  e com as paisagens onde [ele]  se eleva e mergulha” [27]. E precisa: “um  grande edifício mutável que, diante dos nossos olhos, renasce constantemente de si mesmo por efeito dos seus poderes interiores e em cuja construção participa a imensa variedade das formas humanas, animais, vegetais ou inertes” (Função do Cinema e das outras artes, Edições texto&grafia, 2010 [36/37]).

    Tudo o que a tempestade, no seu vórtice, novelo, amassa, mistura e transporta consigo,  - essas "prises": capturas do real na imagem -, dá materialidade  e elementariedade a esse estado da matéria de Imagem-cineplástica. 

    Jean Epstein, pelo seu lado, alude a um “estado viscoso da matéria”, a sua morfo(onto)génese líquida (marinha) (vd. Coeur Fidèle, 1923): “espraiando-se no tempo, uma vaga [repetida, au ralenti] gera uma atmosfera de encantamento. O mar muda de forma e de substância (…), entre o líquido e o sólido acaba por se criar uma nova matéria , um oceano de movimentos viscosos, um universo embrulhado sobre si mesmo” (citado por Domique Paini, “La main qui ralenti”, Cinémathèque nº 18, 2000 [14]).

    No entanto,  nesse redemoinho – o filme tende para um ponto de vista que cada vez mais o puxa para o fundo  (o “olho do maelström” [Poe]) – há algo que resiste: um eixo – pense-se no corpo do navegador ou no mastro do barco – simultaneamente de centrifigação – porque por estar lá, vertical na espiral, atrai o desastre – e de fixação (centrípeto) que funciona como um princípio tanto de recalibração das coisas (do seu estado de utilidade e funcionalidade), como da sua possível sedimentação (há sempre promessa de terra em qualquer tempestade).

    Robert Redford é o modelo/ corpo deste cinema que vem dos anos 60/ 70 e que extrema , leva ao limite o conflito do  homem – colocado numa situação experimental instalada pelas imagens – tanto com o real, como com o princípio de figuração (representação) do cinema.

    Deste ponto de vista, via Redford, All is Lost prolonga e continua Jeremiah Johnson (1971), de Sidney Pollack, e a sua imersão do corpo do actor na neve (terra) e paisagem (cf.tb. Men in the Wilderness, com John Huston [autor de uma adaptação de Moby Dick, 1956], de Richard Sarafian [1971]).

    4. Mas uma via, pensamos, não exclui a outra, elas podem mesmo (devem?) intersectar-se para, desse modo, se metamorfosear: alterar (James Cameron?).

    Podemos sempre apanhar um barco para o espaço.