Carderno 1

Caderno 1 da Enfermaria 6 tem um conjunto de autores que parecem remeter quase imediata e necessariamente para pessoas concretas. Conheço até alguns deles (queria ter encontrado mais no dia do lançamento na Fyodor Books, é natural a vontade de compor com uma figuração empírica o que lemos de alguém), reconheço-me também no que escrevi, “sim sou eu”, digo para comigo. Porém estas relações texto/autor resultam quase sempre de estratagemas de leitura assentes nos velhos protocolos da “intenção do autor”. Gostamos, às vezes com uma disposição quase obsessiva, de pôr as coisas em ordem, de dar “o seu a seu dono” (Nietzsche repetiu vezes sem conta que só queremos saber por medo da desordem caótica – base irredutível do mundo –, as pulsões cognitivas não são, pois, o "espanto" ou a curiosidade).

Caderno 1 resultou, é verdade, de marcadores de escrita e pensamento provenientes de pessoas singulares. A esperança de vida desta aparente simples encadernação de 67 páginas em “papel Coral Book Creme 80g”, produzido durante o mês de Fevereiro (por proletários indiferentes ao seu valor de uso?), continua, desenvolve os impulsos que certos nomes próprios lhe deram ao desenharem no jogo alfabético um conjunto de ideias, de imagens, de forças, de diagramas emocionais...  Mas isto não é a condição perene da sua existência, sabemos bem que as assinaturas irão esvanecer-se, mesmo que alguns dos que escrevem se tornem famosos. Não, não se trata do esquecimento do nome, mas da libertação do texto, ou melhor, da libertação dos sentidos que ele encerra, sem lhe pertencerem totalmente (às vezes estão lá apenas indícios que ganham um alcance bem para além do potencial suposto). Os textos são sistemas que congregam a ordem e a desordem, tecidos com um conjunto de letras finitas ditando as possibilidades de sentido infinitas, a combinação dos marcadores fonéticos fixos abre para um universo quântico de sentidos. Cabe aos leitores, às vezes bem distantes dos horizontes de expectativa dos autores, introduzir novas significações. Por isso, o ensimesmamento do génio é menos fecundo do que um certo romantismo literário crê. As suas obras podem ser de uma originalidade estonteante (arrasar todos os horizontes de expectativa dos receptores), mas enquanto não forem recebidas, percebidas (embora nunca nos seus exactos termos), suplementadas, adaptadas, parafraseadas, plagiadas… será um génio de gaveta (como talvez haja muitos nos nossos dias, com os quais, por óbvia razão, mesmo os leitores mais atentos não se preocupam). Paradoxalmente mas necessariamente, só depois dos leitores acrescentarem alguma coisa à sua obra genial (e acrescentam sempre, pelo menos os leitores inteligentes, é impossível seguir as pisadas na neve dos autores) pode ela revelar algumas das significações que a compõem. Trata-se de uma estética da recepção onde sentidos vivos acolhem a herança dos textos e um gesto artístico de reescrita os suplementa, dança da intertextualidade que num bom frenesim afaste o conservatismo da cena da vida. O intérprete não reproduz o criador, as suas leituras são, nos suplementos que introduz no texto, outras peças que se acrescentam às anteriores. Uma recepção criadora, em vez de recolectora, um perspectivismo dinâmico insuflando constantemente de vida cada texto, polimórfico e com múltiplas assinaturas. Mesmo a "fusão de horizontes" de Hans-Georg Gadamer, porque se trata de horizontes múltiplos, vive nesta perspectiva.

Autor, texto, leitor, a trilogia produtiva de sentidos, máquina fabricante sem predefinições rígidas. Às vezes frenética, outras lenta ou com períodos longos de hibernação. Nietzsche dizia que só em 2000 seria lido, que não havia na sua época quem o pudesse entender, e tinha razão, “alguns nascem póstumos”. Mas ao mesmo tempo, o que hoje retiramos dos seus textos está por vezes bem longe do leque das suas intenções primeiras (o plural respeita a vontade de obscuridade nietzscheana). Disse várias vezes que dar-se à compreensão era um acto de vulgaridade, mas quis deixar-nos um testemunho, ainda que ambíguo, do que pensava e sentia nesse tempo, um fresco de si mesmo e da humanidade europeia, decadente e niilista, vivendo na proximidade do fim do homem (enquanto humanidade gregária cristã). E nós tomamos a liberdade de o transportar para outros sítios, de acharmos, por exemplo, que ele prognosticou bem as viroses nacionalistas que esfarraparam por duas vezes a Europa (regressam brevemente, cavalgando o Eterno Retorno?). Ou, mais recentemente, de vermos no niilismo ético que nos alienou ao consumismo, o último estádio do Cristianismo Paulino e do Messianismo do Progresso.

Creio, pois, que o Caderno 1 é uma promessa de sentidos, que muitos dos que encerra agora poderão desaparecer (são apenas rastros), que outros invisíveis hoje aparecerão brevemente ou depois de uma moratória de décadas, ou nunca (há potenciais sentidos que nunca emergem, são uma infinita virtualidade inimaginável). O que realmente importa é que o Caderno 1 dê a pensar, ninguém, parece-me, quer instruir ninguém. Pôs-se em movimento uma máquina que já, assim o esperamos, nos largou e começou a trabalhar à sua maneira com a cumplicidade dos leitores.