Céleste Albaret faz a lida do palácio

Na ombreira do verso
há uma voz que ainda
consente em ser útil

e permite que eu a veja
e repita, sílaba por sílaba.
A mesa de mogno da sala

está pronta para receber
o papel branco-amanhecido:
Celeste está cansada,

de cotovelos obstinados,
cheia de conversas de salão.
Contrafeita, prefere o tom centrípeto

da mulher a dias que ocupa
o tampo e o tempo da mesa
com lágrimas de cansaço
entre cálices de vinho.

E ela então agiganta-se
e escreve
os recados a Deus,
o quotidiano macabro

do mezanino que a envolve.
Vigio-a nessa atmosfera insidiosa,
vejo-a lenta como algodão
de dia, sei que ela canta
crepitante nas piores horas

do pensamento.
Esta figura não tem
a brancura de Euricleia.
As suas pobres moedas

rodeiam
a lista negra dos dias,
os recados queimados, todos
com a minha mortal assinatura
– Erich Auerbach –

Ela tem o sonho cravado
nuns olhos roxos, distantes.
Os dedos desta mulher
parecem ter
vida própria,

assalariada, difusa.
(Onde andaste
para trazeres os dedos
assim?)
Mas a mulher
a dias apenas espreita

da janela oval
o Mar de Mármara,
trabalha em meu lugar
à mesa de mogno,
escrevendo recados a um
adeus adiado.

Ela espreita sempre
à janela do palácio,
completa a ruína
do que nos rodeia,

eu abro o vinho
às escuras
numa sala pétrea
do pensamento
e saio de rompante

quando sei que é
tempo de partir –
seguro no meu passo,
ouço-a ainda tossir.

O seu manto de presságios
é uma coisa prática.

De coração perdido, apostados os dois
Em esconjurar mapas e bibliotecas,
todo um cristalino colar de mitos.

Limpos e obscenos em claro convívio:
este é só mais um fim
De um inumerável princípio.

O outro que era eu

Fechado no bafiento gabinete londrino
à procura de Ruben A., por equívoco
falando com uma tal Laura enquanto lia
no gesso dos seus ombros uma Beatrice
de Dante tornada doutora em filosofia,
vi em mim um sentimento de pertença
posto do avesso. Receoso de rasgar
o vulcão de porcelana à minha volta,
do óbito do serviço de chá e sortido
de livros à brutalidade sedosa da saia
travada, ocorreu-me uma portuguesa
história de desenganos que célebre
atravessou os séculos e foi despejar
as culpas da minha inépcia na vala
da deserção intelectual, cavada
após um salto mortal do cinismo.

Foi um dia em que acordara aquém
do dinamitado espírito britânico,
embora além do seu vorticismo,
não me interessando já a vigilância
dos ataques aéreos no topo da Faber
& Faber
, cansado dos poetas titãs
combatendo na torre do capitão:
pus em marcha na imaginação
a figura de um oleiro de Alcobaça
e um bom açoriano chamado Mateus
Álvares, a par de um doce pasteleiro
do Madrigal, sem esquecer Marco Túlio,
o aventureiro italiano: todos condenados
à forca por se fazerem passar pelo outro,
todos querendo apenas ser Outro,

não o salvador ou messias judaico,
apenas alguém que não fosse oleiro
em Alcobaça, açoriano nos Açores,
aventureiro e logo italiano, só pessoa
que a outra fama colasse o nome inteiro.
Sonhando em prol do ocioso campesinato,
em defesa do alegre Chesterton, armado
em anarca detectivesco, abandonei
o gélido gabinete de Laura, notando
nos seus ombros o gesso da Beatrice
de Dante, na filosofia da sua mente
como na minha, uma alcova dissonante. 

(inédito)

Achado num comboio para a Antuérpia

Os meus poemas no estrangeiro não valem nada.
Os poemas estão no estrangeiro e carecem de valor
de verdade, lógica proposicional, efeito perlocutório,
força locutiva. Não digo que os meus poemas
nada valham no estrangeiro como se o problema
pudesse resumir-se a uma indubitável querela
de mercado, questão de preferência em estranho viveiro.
Não: eles existem no estrangeiro porque alguém os quis
lá, um forasteiro ou talvez mesmo dois – conduzem
a sua existência estrangeirada em condigno exagero,
mas perderam por algum motivo o valor de circulação.
Não me contaram, fui eu encontrá-los ainda limpos,
com as vísceras soltas, cabeça inteira e cauda intacta,
com vestígios de brilho num balde do lixo plásmico.
Foi-lhes atribuída uma certa indulgência planetária,
um cosmos de rouquidão perpétua votado em plenário,
e assim vivem sem saber falar uma língua franca,
desastrados, aos saltos numa corrida do saco
entre a comunidade dos novos astecas astrais
e a acolhedora seita terrestre que caldeia os aflitos
de sempre, ocupados com transacções de papel,
tela, celulóide, toda a fita coloidal da criação. São
figuras que o velho Bruegel votaria ao silêncio da gravura.
A sua glória é o seu ponto fraco, a tudo preferem o calor dúbio
de um agasalho, gostam de ser afagados ao colo de um mendigo
durante os circuitos fechados de uma ventosa madrugada.

(inédito)

Situação de Emergência

Está tudo escrito numa língua
que não consigo perceber, repete
Alice vidrada no espelho da página.
Enche-me a cabeça de ideias, é belo
e cortesão, de alguma maneira. Mas isso
é do teu lado, leitora, nós também cuidamos
e queremos uma morte condigna pela água.
 
Estamos condenados a uma verdade ineficaz:
a compreensão começa a partir do exacto momento
em que se desfaz. Foi Ashbery quem o disse, citando
a situação de emergência em que a mente se aflige
nas condições meteorológicas de um sobe-e-desce:

“algo / devia ser escrito sobre o modo
como isto te afecta / quando escreves
poesia: / a extrema austeridade de uma cabeça
quase vazia / colidindo com a exuberante,
rousseauniana folhagem do desejo de comunicar
qualquer coisa entre um fôlego e outro, /
nem que seja só pelos outros, pelo seu desejo
de te perceber e desertar”. Nem tudo está perdido

quando dois dedos mornos coincidem
na mesma vocação de lebre, penso acocorado
num palácio em Vila Real enquanto tento verter
a camisa desabotoada do americano sem abandonar
a forma do seu corpo frio, a tira cómica da tarde
cumprida a traduzir um opaco manual de instruções.

E de repente, na dolorosa quina da circunstância,
dou com o termo balseiro, se bem que escutado
por alto junto ao café do pelourinho, pairando
algures sobre a triste torrada do descanso,
e penso logo em metáforas mortas, afunilo-me
em dorso escamado por uma lura de coelhos

e dou outra vez com Alice a reler Ashbery
do outro lado da Terra, extasiada com a folga
semântica visível numas sedutoras manchas
de tinta que hoje lhe proíbem peremptórias
outro centro de comunicação.

Visitações

Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo.
Neste calendário não havia
a métrica fílmica, discursos
ou palavras lúridas para revisitar,
somente imagens que se profanavam
a si mesmas na ânsia de se recriarem.
Os tecidos envelhecidos do verbo não eram
pardos, as complexas idades da mente
estavam a ser preparadas. Lembravam
os tecidos moles de rio e rochedo, carmes
conseguidos com a primeira saliva do dia.

Esquecemos a cega censura da génese.
O que distingue as manhãs supremas
de Shelley e Keats só pode ser
o descuido de uma ou outra gota a mais
vertida na lâmina do orvalho. Sabemos
como eram essas visitações escandidas
pelo ângulo de uma luz ainda nodosa.
Um dia já todas as vozes
chamavam ao mesmo tempo
no nosso quintal delapidado,
e súbito eram horas de Shelley
e Keats neste calendário inumerado.

Vou em plena voragem amniótica do tempo.
For ‘twas the morn: febre nos olhos,
Sopro estéril no sangue das pedras frias
quando as levantei para conhecer
o tenebroso desenho das lagartixas.
Dedos desencontrados de futura biografia,
sinas que nem um sutra saberia destecer.
Na aragem da visão passavam mãos meninas
com selhas transbordantes de branco,
aventais com a goma dos líquenes
enquanto, marcado pelos dentes das estrelas,
flectido na terra, este coração desaparecia. 

(inédito)