Palace Posy
/Falar com estranhos pode resultar em problemas com a polícia. Para testar a minha própria invisibilidade há um conjunto de regras que acabo por quebrar. Lo tenemos todo, ouvi, e pensei como soaria em português. Acabava de apoiar o sapato para reforçar o nó dos atacadores. A idade do autor das palavras não andaria longe da minha. Trajava de modo excessivamente elegante para estar sentado num banco a meio da manhã. De alguma maneira, achei que queria travar conversa precisamente comigo. Acabava de sair do complexo de escritórios e, sem hora marcada, podia caminhar até casa. Contei-lhe o teor do documento que acabava de assinar. O homem, apressando-se, descobriu-me um “desespero crescente” e disse “entender”. Em presença de liberdade não tenho objecções em relação às decisões que se tomam, explicava-me enquanto à nossa frente um rapaz distribuía panfletos anunciando a compra e venda de ouro. Encontro os mesmos defeitos em qualquer meio ou grupo, é só uma questão de escala e alcance do estrago. De qualquer modo, ninguém quer testar os limites da sua liberdade porque ninguém quer abdicar do que tem, mesmo que muito pouco. Lo tenemos todo, repetia, a contraluz do que acabava de dizer. Ainda que se referisse a ele próprio socorria-se da terceira pessoa; ou talvez quisesse utilizar o plural de maneira benemérita, incluíndo-me na fortuna.
Aceitei almoçar em sua casa. Parámos numa florista para que encomendasse um ramo de todas as variedades disponíveis de flores brancas e amarelas. A empregada recolheu flores dos baldes e vasos a que fisicamente chegava e, respeitando o ofício, compôs o ramo com uns quantos ramitos verdes. Já em casa, Mario Garcia pediu comida por telefone. Desde uma janela panorâmica apreciavam-se as torres de Chamartín. Objectos de cores mais escuras desafiavam o branco elementar da sala e dos móveis. A um canto, ninguém tinha recolhido o vidro partido de dois ou três copos sujos de vinho tinto. Em cima da mesa estava um livro de capa rija que se intilulava Moon over Japan que sem dúvida apresentava várias fotografias aéreas de Tóquio mas curiosamente, e contrariando o título, também do skyline de Xangai. Mais adiante, Garcia havia de me dizer que a única maneira de se apreciar Xangai era desde um helicóptero ou desde as alturas dos edificios.
Presumi que a mulher de Garcia estava habituada à visita de estranhos. Quando entrou, ignorando a minha presença, queixou-se do frio e da janela aberta. Reparei num quadro de parede, algo desproporcional, que mostrava a fotografia de um perna estilizada sobre cujo tornozelo um leopardo abria os dentes. Sentámo-nos à mesa e Garcia começou a falar de negócios, descrevendo a sua habilidade em fazer dinheiro. Depois do primeiro milhão a coisa precipitava-se. Não lhe podía dar muita atenção. Socorria-se das torres de Chamartin que pareciam próximas. A mulher levantou-se. O preâmbulo acabou e passámos sem outras cerimónias directamente ao assunto: lavagem de dinheiro através de transferências para sociedades nas Maurícias. Garcia precisava de um novo nome, um testa de ferro sem património a quem comprar a assinatura. Aceitei a oferta evitando fazer perguntas e centrando-me nos dividendos. A mulher andava pelo salão e reparei como a altura das fibras dos tapetes quase ocultavam os sapatos. Indiferente às histórias ribombantes de êxito, dei com o ramo de flores na parte baixa da mesa e perguntei-me quanto durariam viçosas ou se o seu destino estaria no voo impelido pelo vácuo do salão até esbarrarem nos dentes afiados do leopardo.