Gastos
/Mão em contra
Um dia olhar para trás e ver a estrada percorrida em contra-mão. O coração prestes a saltar, a pedir licença para expulsar todos os inconvenientes trazidos por meses (contei-os hoje contigo) passados numa espécie de tenda. Uma tenda montada no seio de um universo reduzido a leis e conversas de café. A tenda tão bem apetrechada de sonhos, conversas, descobertas ritmadas por tempos e acordes diferentes. Os meus, os teus. E aquela voz que, como hoje, sussurra ao meu ouvido palavras escritas para tu as leres. Oiço cada uma delas e apetece-me carregar um quadro branco, vazio, às costas, onde poderás contribuir com sonetos e didascálias ainda por inventar. A estrada segue em contra-mão, meu amor. E a tenda tão bem montada. Contigo ao meu ouvido.
Enleado
Tentei bater-lhe. Beijo-o mas ele vive enleado e temos nada que dizer ou adivinhar. Aceitas-me namoro? Entender-nos-íamos, a gente quase não sabe. A tua vida, sigo-a. Contemplava-me e disse-me certa vez: vens para o telhado? Encurtamos caminho e despia-me, a aguardente a tirar a gravata, tomava banho, esperava. Era uma época e havia semanas. As velhas benzem-se “tudo perdido” para nós e, ah, sonhos vagabundos, bandeira igual a igreja, um Avô respondão e corneteiro pôs à janela objectos bonitos, frutos que não merecem pedidos de desculpa.
Éramos pobres
Éramos pobres. Lembro a luz baça na mesa-de-cabeceira. Quer entrar e inclina-se. Chega e apaga, aconchega-me a roupa no pavor de ficar só. Quarto onde dormíamos, habitado por nós até manhã. Vamos sair desta vida e ingressar noutra, levar pastéis de bacalhau, não largar as mãos; aparecerão todos (rasto que as mãos deixam) no palácio real iluminado. E a voz de dentro: aceitas-me casamento?
Até qualquer dia
Tantos gestos. Comer pão com morcela a subir a calçada, a barbicha ruça lendo o jornal, ver surgir ruas transversais e beijar na manhã clara as sonolências antigas. Ali, operários amigos perguntam onde vamos. É o oficio conjunto, alvo da felicidade: comer e beber, de mãos atadas, sexos juntos: emprego para a vida. Até qualquer dia!
Era o Primeiro de Agosto.