Manifesto para um bom hedonismo

Prolongando Nietzsche, que só acreditava num deus que soubesse dançar, ou se ria de todos quantos nunca se tinham rido de si próprios, Gilles Deleuze e Michel Foucault retomaram, cada um à sua maneira a mundivisão epicurista, que é mais vasta e antiga do que o gerado em torno de Epicuro, recusando uma vida centrada no negativo. É verdade que Deleuze criticou o conceito central de “prazer” em Foucault,[1] preferindo-lhe o de “desejo” (produtivo, afastando-o da tradicional “falta”) mas, como veremos na citação que faço infra, não estava, no que aqui mais importa, longe da visão foucaldiana, e nietzscheana, da importância do positivo, do prazer e do afirmativo. Na verdade, se Foucault não suporta o termo “desejo” é porque não consegue dissociá-lo da ideia de falta, alimentada por uma tradição que liga Platão a Sartre, passando pela psicanálise. Mas este sentido não está presente no “desejo” deleuziano.

Foucault (cujo subtítulo do volume dois da História da Sexualidade é “L’Usage des plaisirs” [o uso dos prazeres]) põe em perspectiva o conceito de “prazer” remontando genealogicamente ao termo aphrodisia da Grécia Antiga, de onde provém, com deslizes, o nosso “afrodisíaco”. Os aphrodisias eram impulsos para o prazer dados ao excesso, por isso a ética (ethos) preocupava-se menos em estabelecer permissões e interdições (especialidade da moral cristã) do que em controlar esses impulsos (é aqui que encaixa a moral do “justo meio”, da temperança aristotélica). Incontrolados, os aphrodisias podiam tornar o homem escravo dos prazeres, e a perda da autonomia era um dos principais receios gregos. Assim, a ética grega, prolongando-se em parte da romana, não definiu qualquer obediência a um código ou sistema de leis com validade geral ou universal, insistindo antes no desenvolvimento de estratégias de autolimitação dos aphrodisias, ensinando o domínio de si, combate proporcional à excessiva vontade de prazer (inspirando uma longa tradição ocidental, que vai de Santo Agostinho a Freud, passando por Kant). Tudo isto será substituído quase na origem, na confissão religiosa cristã, pelo deciframento de si, procura das imperfeições teológicas que confirmem o postulado de Pecado Original e justifiquem castigos correctivos (nunca totalmente eficientes, como sabemos, continuamos pecaminosos). Culminando no paroxismo pudico vitoriano.[2]

À importância inquestionável de Foucault na reabilitação do conceito filosófico de “prazer” e a abertura para éticas menos normativas e preconceituosas em relação a prazeres socialmente quase indesejáveis (sobretudo os ligados à sexualidade e ao consumo de psicotrópicos), devemos juntar Deleuze, que questionou sempre todos os códigos que nos prendem a possíveis redutores, que nos inoculam um pessimismo estéril e uma vontade de vingança. Neste caso, traduzo um excerto exemplar de Dialogues avec Claire Parnet, 1977.

Vivemos num mundo bastante desagradável, onde não só as pessoas, mas o poder estabelecido têm interesses em transmitir-nos afectos tristes. A tristeza, os afectos tristes são todos aqueles que diminuem o nosso poder de agir. Os poderes estabelecidos precisam da nossa tristeza para nos escravizarem. O tirano, o padre, os ladrões de almas têm de convencer-nos que a vida é dura e pesada. O poder tem menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar ou, como diz Virilio, de administrar e organizar os nossos pequenos terrores íntimos. A longa queixa universal sobre a vida ... Podemos dizer "dancemos!", mas não estamos muito alegres. Podemos dizer "como é lamentável a morte!", mas teríamos de ter vivido para haver algo a perder. Os doentes, da alma e do corpo, não nos deixarão em paz, vampiros, enquanto não nos transmitirem as suas neuroses e ansiedades, a sua amada castração, o ressentimento contra a vida, o contágio imundo. Tudo é questão de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar o poder de agir, afectar-se de alegria, multiplicar os afectos que expressem um máximo de afirmação. Fazendo do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensar uma potência que não se reduz à consciência.”

 

[1] Para quem quiser aprofundar, cf. carta de Deleuze a Foucault sobre esta divergência: “Désir et plaisir”, Magazine Littéraire n° 325, Outubro 1994; republicado em  Gilles Deleuze, Deux régimes des fous, 2003.

[2] Foucault contesta contudo, que, por exemplo, os prazeres ligados à atividade sexual tenham ficado isentos de qualquer interdito na Grécia Clássica. Nas aulas do Collège de France de 1980/81 (laboratório do livro sobre os uso dos prazeres) defende, pelo contrário, que antes do cristianismo já havia muitas reservas sobre a sexualidade livre, embora longe da dogmática cristã da carne e da concupiscência. (Cf. Subjectivité et vérité)