Israel, memória anti-vitimização

Para compreendermos melhor a necessidade de uma guerra que parece desnecessária, é bom lembrar que o «necessário» em geopolítica é sempre um exagero: as alternativas abundam para uns e são impensáveis para outros. Victor Gonçalves foi o tradutor desta entrevista que nos convida à reflexão — se estivermos dispostos a sair da nossa caixa ideológica, fortificada pelo senso comum onde coexistimos.

Denis Charbit, entrevista realizada por Charles Perragin publicada a 3 de junho de 2025, na Philosophie magazine

Como é que a guerra de legítima defesa contra o Hamas e para recuperar os reféns se tornou uma guerra de destruição dos palestinianos? Para compreender o sentido desta terrível reviravolta, o politólogo Denis Charbit, autor de Israël, l’impossible État normal (Calmann-Lévy, 2024), remonta às origens existenciais de Israel e à memória anti-vitimização herdada do Holocausto.

Denis Charbit

«Atravessamos uma catástrofe ética que marcará os israelitas por muito tempo com um signo de Caim» Denis Charbit

O que quer o primeiro-ministro israelita Benjam Netanyahu e como chegámos a este ponto?
Denis Charbit: As operações militares conduzidas por Israel desde a sua criação foram, na sua maioria, represálias a agressões ou ataques terroristas de grande envergadura, em conformidade com o princípio da legítima defesa. Dentro do país, essa preocupação com a legitimidade é indispensável para obter o apoio da opinião pública, na medida em que é necessária a mobilização de reservistas. É também por isso que este tipo de intervenções sempre foi concebido para ser de curta duração, a fim de não provocar movimentos de protesto. À escala da comunidade internacional, o Estado de Israel procura demonstrar que não foi o primeiro a disparar: defende-se, mesmo que de forma excessiva e desproporcionada, para proteger o seu território soberano e a sua segurança. A guerra declarada no dia seguinte ao 7 de outubro segue a mesma lógica. E, desta vez, a magnitude do massacre justificava, aos olhos dos israelitas, a magnitude das represálias e do objetivo: erradicar o Hamas.

«Ao contrário de todas as guerras anteriores que Israel conheceu, é a primeira vez que a extrema-direita faz parte do governo. A catástrofe de 7 de outubro ofereceu uma oportunidade de ouro a esta fação política para impor o seu projeto.» Denis Charbit

Implicitamente, os israelitas admitiram desta vez que a tarefa poderia ser longa?
Sim, e ao contrário de todas as outras guerras que o país conheceu, é a primeira vez que a extrema-direita faz parte do governo e participa nas decisões. Numa primeira fase, de outubro de 2023 a junho de 2024, dois membros da oposição, ambos chefes do Estado-Maior na década de 2010, entraram no gabinete de guerra com a condição de que fosse excluído qualquer representante da extrema-direita. Quando perceberam que as negociações sobre os reféns tinham fracassado por culpa do governo israelita, abandonaram o gabinete de guerra e foram imediatamente substituídos por dois ministros da extrema-direita, Bezalel Smotritch e Itamar Ben-Gvir. A extrema direita tinha agora campo livre. Já não se tratava apenas de acelerar o movimento de colonização na Cisjordânia, ganhar terreno, deixar as milícias intimidarem os palestinianos pela força, mas submeter a guerra travada na Faixa de Gaza a um projeto de destruição total. Assim, a legítima defesa serviu de fachada para uma ambição anexionista e destrutiva que, aliás, nunca esconderam, mas cujo momento oportuno para concretizar esperavam. Já não estamos na época de Ariel Sharon, durante a primeira guerra do Líbano, quando a hubris israelita – para consolidar a sua segurança – consistia em ser o fazedor de reis no Líbano, colocando à frente do país dos Cedros um aliado, Bachir Gemayel (assassinado um mês depois pela Síria). Para Ben-Gvir e Smotritch, a hora é divina: a história não se repete. A catástrofe de 7 de outubro, vista como um ataque existencial, ofereceu uma oportunidade de ouro a essa fação política, que tem a vantagem sinistra sobre os seus adversários de esquerda e do centro de saber exatamente o que quer e não se preocupa com nenhuma norma, nenhuma contingência: que valem as relações internacionais, os acordos regionais, as oposições locais, que vale a moral judaica e universal quando se está imbuído da certeza de que o que se quer, Deus quer?

A eleição de Donald Trump facilitou essa entrada em ação?
Foi decisiva, na medida em que acelerou o colapso do sistema internacional. Além disso, as capacidades militares israelitas decuplicaram nos últimos anos, nomeadamente na vertente defensiva com o Domo de Ferro. Por todas estas razões, o governo já não tinha restrições, nem internas nem externas, para responder ao Hamas, cuja rendição não foi alcançada. Será que ela é sequer alcançável? Podemos perguntar-nos quando se tem um ator cujo principal horizonte é a fé absoluta. Resultado: a legítima defesa inicial, explorada por forças políticas que querem o caos, gerou devastação, a ruína de edifícios e de infraestruturas sociais, económicas, médicas e escolares. Os limites foram ultrapassados muito para lá das operações militares anteriores, muito mais curtas e nunca tão destrutivas, realizadas nas últimas duas décadas, nomeadamente em 2006, 2009 e 2014.

«A legítima defesa inicial, com Israel sempre a ter o cuidado de travar guerras curtas e nunca disparar primeiro, foi desta vez explorada por forças políticas que desejam o caos e a devastação.» Denis Charbit

Ultrapassadas do ponto de vista do direito internacional?
Atenho-me à frase do personagem de Henri Cormery, ao descobrir os soldados franceses massacrados e castrados em O Primeiro Homem, de Albert Camus: «Um homem, impede-se [Un homme, ça s’empêche»] A guerra é aquele momento na história coletiva em que se considera poder e dever libertar-se dos códigos e das regras. No entanto, é preciso recordá-los, restaurá-los e «impedir-se», independentemente da existência de restrições formuladas pelo direito internacional. O que é a moral, senão a reiteração permanente dos limites a não ultrapassar? Isto é verdade tanto para a moral judaica como para todas as sabedorias constitutivas daquilo a que chamamos moral universal. O que nos impedimos? Aqueles que acreditam que os judeus são o povo eleito devem compreender que esta noção não é um cheque em branco. Pelo contrário, acrescenta à lista de deveres o peso de um fardo adicional, o imperativo de uma ética exemplar. Da mesma forma, aqueles que se gabam de que Israel é a única democracia do Médio Oriente deveriam compreender que o rótulo democrático não é uma dispensa que autoriza qualquer forma de violência. Não é porque o inimigo no poder é um covil de islamistas fanáticos – cuja crueldade sem limites já foi comprovada – que isso justifica, em tal grau, a confusão entre combatentes e civis, mesmo que seja para eliminar os primeiros. Digo isto com gravidade e o coração pesado: estamos a atravessar uma catástrofe ética que marcará os israelitas com um signo de Caim que nos perseguirá por muito tempo...

«Não é porque o inimigo no poder é um covil de islamistas fanáticos – cuja crueldade sem limites já foi comprovada – que isso justifica, a tal ponto, a confusão entre combatentes e civis.» Denis Charbit

Em que medida essa ausência de limites na resposta militar de Israel está relacionada com o facto de este país não poder ser, segundo a sua tese, um «Estado normal»?
A palavra «normal» é ambígua. Interpretei-a como indicativa das normas a que se submete qualquer regime democrático, mesmo quando está em guerra, como é o caso de Israel de forma quase permanente. O 7 de outubro foi sentido como uma morte coletiva que fez ressurgir o sentimento de estar a mais. Ora, a razão de ser do Estado de Israel foi e continua a ser a capacidade de ser um refúgio capaz de proporcionar segurança a um povo que enfrenta hostilidade permanente, e até mesmo a vontade de ser exterminado. Isso não significa impedir todos os atentados e agressões, mas ter a certeza de que a violência sofrida provocará uma reação imediata e a mobilização das instituições. O trauma não é apenas o facto de a violência ter sido desencadeada, mas de ter podido ocorrer sem entraves, durante horas, sem contra-ataque para impedir um massacre que eliminou mais de 1100 pessoas em 24 horas. No fundo, está a memória do Holocausto e esse mantra, «nunca mais», que se tornou para o povo israelita um «nunca mais para nós», como salientou a historiadora americana Diana Pinto. Esta frase remete para a necessidade de solidariedade face à violência que não faz distinções, uma vez que visa os israelitas, em particular os judeus, sejam eles de extrema-esquerda ou de extrema-direita, ateus ou crentes. Mas o «nunca mais» também tem outro significado além da solidariedade cívica e nacional. É uma forma de dizer: «Nunca mais fracos. Nunca mais vítimas». Este surto – chamado sionismo e que assumiu a forma do Estado de Israel – é uma reação legítima após tantas perseguições, um extermínio e, desde 1945, múltiplos e regulares apelos à destruição do Estado de Israel. A recusa em ser vítimas implica implicitamente que, se for preciso escolher, é melhor ser carrasco do que vítima. No entanto, quando este despertar legítimo transforma-se numa guerra de destruição, alimentando uma hubris israelita que visa arrasar tudo, eliminar tudo, deslocar a população e reocupar a Faixa de Gaza para sempre, a memória do Holocausto, na sua dimensão anti-vitimizante, atinge um paroxismo que a faz balançar para um extremo que exige o restabelecimento imediato deste pensamento dos limites: «Uma nação, um Estado, impedem-se mutuamente.» Não vejo, não ouço este reflexo moral. As declarações oficiais vão apenas numa direção: tudo é permitido.

«A recusa em ser vítimas sugere implicitamente que, se é preciso escolher, é melhor ser carrasco do que vítima. Mas afirmar que Israel é a única democracia do Médio Oriente não é um cheque em branco para qualquer forma de violência.» Denis Charbit

Se a razão de ser de um Estado assenta essencialmente na sua capacidade de proteger uma população contra um exterior hostil, não é natural que tenha uma propensão para a violência excessiva?
Nem toda a preocupação com a segurança leva necessariamente à sua radicalização. É claro que a postura do sionismo nacionalista, numa região onde a existência do Estado de Israel não é óbvia e é regularmente questionada, abre um potencial para a violência extrema. Mas é perfeitamente possível evitar essa escalada sem se tornar um país pacifista ou neutro. Proclamar o desmantelamento das nossas capacidades militares aguçaria o apetite de todos aqueles que fantasiam com o nosso desaparecimento: Irão, Hamas, Hezbollah e Houtis. A questão em aberto é: qual será o efeito desta última ação? Esperemos que, mais cedo ou mais tarde, voltemos a colocar-nos sob o imperativo de um princípio de realidade [no sentido freudiano: o mal também vem do interior]. A confissão será dolorosa, parcial e acompanhada pela derrota eleitoral da coligação no poder, se ela ocorrer. Perceberemos então que o governo nos levou muito além da legítima defesa e que, por sua culpa e pelo efeito do nosso trauma, nos tornámos carrascos.

«O que é a moral senão a repetição permanente dos limites a não ultrapassar? Isto é verdade para a moral judaica, como para todas as sabedorias constitutivas daquilo a que chamamos moral universal» Denis Charbit

Por que razão a oposição israelita não consegue fazer da condução da guerra uma questão política?
Porque a oposição concentra-se exclusivamente no imperativo categórico da libertação dos reféns. Exige que isso seja uma prioridade, uma vez que o governo se opõe e porque, no fundo, denunciar abertamente as violações do direito é arriscar alienar a opinião pública, que veria nisso uma admissão que favorece o Hamas e os adversários de Israel. Num conflito, não se cede nada ao inimigo. No entanto, o líder do Partido Trabalhista, Yaïr Golan, declarou recentemente que um Estado normal não deve travar combates contra civis, matar crianças «como passatempo» e ter como objetivo a expulsão de uma população. Mesmo que a expressão «passatempo» seja enganosa, ele ousou quebrar esse silêncio após 600 dias de guerra, durante os quais a oposição só se manifestou contra o governo sobre a questão dos reféns.

«É preciso desfazer-se do terrorismo intelectual e político da direita israelita, assim como do terrorismo islâmico do Hamas, para traçar novas esperanças.» Denis Charbit

Por que motivo o governo recusa a troca de reféns?
Recusa porque isso implicaria uma negociação que, para o Hamas, só pode ser bem-sucedida se significar o fim da guerra. Netanyahu também se recusa a negociar, menos para se manter no poder do que para adiar o momento em que, uma vez libertados os reféns, será obrigado a decidir o destino de Gaza após a batalha. Há duas opções: ou uma coligação egípcio-saudita assume o poder, com a Autoridade Palestiniana no centro do dispositivo e, nesse caso, será necessário regressar ao processo de paz do qual Netanyahu se livrou em 2014; ou a manutenção no terreno do Tsahal (o exército israelita). Ora, essa permanência não é apenas uma questão de segurança. Implica também a assunção de todas as funções administrativas, o que os israelitas não tolerarão devido à mobilização de reservistas que essa permanência implica. Seja como for, constato que a opinião pública começa a questionar-se.

Qual foi o elemento espoletador dessa interrogação?
Uma parte da sociedade israelita começa a compreender que é preciso parar de considerar os líderes de extrema-direita como fanáticos. Estamos a chegar a um ponto em que nada é inconcebível, nem mesmo o plano Gaza-Riviera de Donald Trump. Há vinte anos, se um político tivesse considerado oportuno arrasar Gaza, ninguém o teria levado a sério, julgando que o exército não o deixaria fazer. O crescente isolamento diplomático também abalou parte da opinião pública israelita. Perante as ameaças de sanções expressas pela França, Grã-Bretanha e Canadá, há quem anuncie o regresso do Ocidente ao seu antissemitismo latente; os mais racionais compreendem que é o grande projeto levado a cabo pelo governo que nos afasta das potências que não nos desejam mal.

«Os mais racionais compreendem que é o grande projeto levado a cabo pelo governo israelita que nos afasta das potências que não nos desejam mal.» Denis Charbit

Quais são os motivos de esperança para os israelitas que continuam a opor-se aos planos do primeiro-ministro Netanyahu?
Para vencer, uma ideia deve ser encarnada por um líder. Desde Yitzhak Rabin, há já trinta anos, não vimos surgir nenhuma figura política que consiga unir. Houve Ehud Barak, mas ele foi derrotado após o fracasso das negociações com Yasser Arafat. Yaïr Golan é talvez o líder de que a oposição precisa. Ele foi vaiado e apelidado de traidor durante um colóquio em Sderot, mas não se acobardou. Não saiu do palco. Respondeu aos seus detratores com veemência, dizendo-lhes que só conheciam o ódio e que era por causa de pessoas como eles que Rabin tinha sido assassinado em 1995. Esta referência é forte. Trinta anos após a morte daquele que assinou os acordos de Oslo, percebemos que Israel não negocia nada há mais de dez anos. Os palestinianos têm uma parte da responsabilidade e nós também. É preciso agora desfazer-se do terrorismo intelectual e político da direita israelita, assim como do terrorismo islâmico do Hamas, para traçar novas esperanças. Caso contrário, esta região deixará de ser habitável para os seres humanos. Em Gaza, devido aos massacres e à destruição, e em Israel, devido ao clima apocalíptico gerado pelo governo – que, à sombra da guerra, prossegue a liquidação progressiva do Estado de direito. 100 000 israelitas já abandonaram o seu país...