Mal-Estar na Civilização, Café Filosófico

O Victor, moi même (qui est un autre), no café filosófico da livraria Snob, Lisboa, a atirar setas conceptuais

Texto de divulgação:

Escolhemos pensar o mal-estar em geral a partir de um mal-estar específico: o da civilização, ou da cultura. Freud, o autor-totem deste café filosófico, podia separar o nosso mal-estar do bem-estar da natureza. Nós, pelo contrário, estamos quase obrigados a pensar um planeta inteiro, o orgânico e o inorgânico simultaneamente, atingido por uma doença mortal. Mas, como sugere Descartes, temos de dividir o problema nas partes que o constituem (continua a ser um método válido, desde que haja, depois, articulação entre os diferentes campos), começando, talvez, pelo mais urgente: o predomínio das paixões tristes.

Trump conseguiu sacudir o mundo com uma cartolina. Também, talvez sobretudo, porque não temos os pés assentes em terra firme. Não naquela que prende, para sempre, o humano a pulsões narcisistas, mas nessa outra que conserva em si matéria viva de poeira estrelar, corpúsculos elementares que, desde a origem, contêm já toda a poesia do mundo. Potência desbragada contra a inércia amparada num autocontentamento sem objeto.

É com Freud e o seu O Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, 1930) que iremos pensar o vendaval atual. Pensá-lo para o compreender e para tentar superar o pano de fundo psíquico do nevoeiro que, em Portugal, pode parir salvadores. Pode, mas não pare. Uma dinâmica e uma economia de pulsões (ou instintos) de vida e de morte comandam o nosso novo destino histórico. Sempre comandaram, aliás; mas agora as pulsões de morte parecem prevalecer. O superego civilizacional («amar o próximo como a si mesmo») mostra-se enfraquecido; agigantou-se, pelo contrário, o sentimento de culpa da humanidade, que pode, transmutando-se, manifestar-se num intempestivo desejo de vontade de poder.

Freud refere que os homens primitivos, com mecanismos de sublimação dos instintos destrutivos menos elaborados, eram um bando de assassinos. A civilização foi capaz de enquadrar e controlar esses instintos, mas, como nos mostraram as duas grandes Guerras, a atual redefinição de quase todas as relações geopolíticas, passando do primado da confiança para o da desconfiança, e os processos de desumanização difíceis de imaginar há algum tempo, talvez estejamos muito próximos desse «bando de assassinos».

Civilizados, bárbaros e assassinos

James abbott McNeill Whistler, Nocturne in grey and silver, c. 1872-74

Em Psychologie Heute, 1986, Peter Sloterdijk afirma que «somente o fim do mundo consegue mostrar o cumprimento do fim do mundo.» Podemos, pois, ficar descansados: o fim do mundo será, sem qualquer hipótese de remissão, o fim do mundo, um facto bruto e puro ao mesmo tempo, sem abertura para a interpretação (bruto) e liberto de qualquer economia da responsabilidade (puro). Por conseguinte, enquanto não chega o fim do mundo, deixemos de falar dele, já que nem a loucura disruptiva trumpista nos fornece a mais pálida ideia do que será. Reservemo-lo para o pré-reflexivo, vivamo-lo como uma parousia invertida (será mesmo invertida?).

Há uns anos, fez furor a ideia do «fim da história». Francis Fukuyama, hegeliano seletivo, parecia interpretar bem a ressaca festiva da conclusão da embriaguez triste da Guerra Fria. Os empedernidos da luta de classes, sonhadores mais e menos ativos, vieram para a rua cantar «a história continua!». E continuou. Aliás, o próprio Fukuyama escreveu, no artigo que deu origem ao seu livro mais famoso, que o fim da história entristecia, pois parecia ter exaurido a coragem, a audácia ou a imaginação («The End of History», The National Interest, verão 1989). Portanto, sentia-se que uma vontade bastante geral pretendia que o «espírito absoluto» não regulasse, mesmo sendo autorregulação, a finitude, a história. À minha maneira, percebendo que se militava dogmaticamente dos dois lados, esforcei-me por manter viva a ideia de Sigmund Freud, em Para Além do Princípio do Prazer, de que só a frustração arranca a vida à inércia. Resolvi, então, frustrar-me e frustrar, tornei-me um pequeno niilista especializado em curto-circuitar a esperança de uma paz perpétua, mais definitiva do que a do próprio Immanuel Kant, pois dominaria e não exigiria qualquer esforço, não provocando, assim, nenhuma frustração. Seria uma paz cinzenta, o cinzento de Peter Sloterdijk em Wer noch kein Grau gedacht hat. Ein Farbenlehre, cor que representa algo que «não foi tido em consideração». Uma paz deixada por sua conta, porque, finalmente, se julgava estar perante a Paz.

Talvez venha a propósito, visto que nem a Paz nem o fim do mundo se concretizaram, recuperar, primeiro, a distinção entre bárbaro e selvagem feita em 1976 por Michel Foucault no curso do Collège de France «Il faut défendre la société», e, em segundo lugar, por uma razão talvez mais estética do que teleológica (embora pareça o contrário), evocarei novamente Freud e, tudo o indica, a sua lucidez antropológica.

Para Foucault, o selvagem é sempre selvagem na selvajaria, juntamente com outros selvagens, se estabelecer relações sociais, deixa de o ser. Por sua vez, o bárbaro só é bárbaro em relação a um determinado ponto da civilização, mantendo-se, para salvaguardar a sua condição, fora desse mesmo ponto civilizado. Por isso, o bárbaro despreza e inveja a civilização, em relação à qual se mantém numa posição de «hostilidade e guerra permanente. O bárbaro não existe sem uma civilização que ele procura destruir e apropriar-se.» Ao contrário do selvagem, o bárbaro não entra na história fundando uma sociedade, «mas penetrando, incendiando e destruindo uma civilização.» Esta hermenêutica foucauldiana parece ser mais actual hoje do que na altura em que foi pensada, temos agora vários candidatos à figura do bárbaro, adornados, claro está, por uma película de verniz que os faz parecer apenas outra forma de ser civilizado.

Para Freud, o de O Mal-Estar na Civilização, os bárbaros não estão no exterior da civilização, todos nós mantemos um fundo de «homem primitivo», a civilização só nos pode resgatar pontualmente, ajudando-nos a recalcar os nossos instintos e fornecendo-nos vias relativas de felicidade através da arte, do amor, da beleza ou da religião. Nos dois casos, trata-se de processos de sublimação, que Freud traduz como «o destino forçado que a civilização impõe aos instintos.» Sem isso, continuaríamos a ser assassinos, como refere quase no final do livro: «Temos assim que nós próprios, a sermos julgados pelos nossos impulsos volitivos inconscientes, somos também, tal como os homens primitivos, um bando de assassinos.»

Hoje, num paroxismo que se preparou durante muito tempo e que agora resolveu acelerar em várias direções (talvez nem todas conduzam para abismos), há legiões de bárbaros que não querem, ou não sabem, recalcar e sublimar os instintos primitivos. Por isso, é legítimo pensar que há muito que não se viam tantas pulsões destrutivas. Embora mantenha, acompanhado por Sloterdijk, o que disse na abertura deste texto: não sabemos quando, nem como, chegará o fim do mundo.

Livros Porler

Passo por uma estante, depois por outra, à procura de um livro. Talvez esteja na mesa de cabeceira ou nas prateleiras que enquadram a minha querida máquina digital — uma delas, não vá esta emancipar-se. Nada. Sinto, como quem pensa, que é no céu que tocamos quando mexemos num livro (Cesariny dizia «num corpo»). E agora estou privado dele. Não que não tenha muito porler, mas era precisamente esse, que não encontro, que contém a palavra-passe do mundo das ideias. Desisto. Um sábio, não eu, também lê livros, mas pode passar bem sem eles.

Decido, numa espécie de vingança suave, que vou buscar outro, um dos muitos que estou a ler ou tenho para ler. Alguns permanecerão invioláveis (na segunda virgindade que adquirem ao irem parar às mãos do putativo leitor), a escrever para dentro. Outros estão em fila de espera, ainda intocados (salvo para os marcar com uma assinatura afetiva, seguida do ano e mês) ou a meio, um terço, três quartos, poucas ou muitas páginas, romance, poesia, ensaio, filosofia. Outros, ainda, em releitura, como a magnífica República de Platão ou a brilhante e, para os ouvidos actuais, parcialmente incompreensível Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant.

Há quem, dizem-me, sinta a angústia do não-lido. Outros, a do porler. Quando, como no porvir, isso devia ser a porta aberta para a aventura. Devia conjurar em vez de angustiar. Sobretudo agora que o lazer abandonou as ruas para se tornar doméstico. Agora que acumulamos amigos e seguidores sem experimentarmos nunca o encontro com alguém diferente. Na época da autoexploração por excelência (Byung- Chul Han). Na época do aluvião de publicações que não conseguem diminuir a esterilidade.

Eu, meio a fingir, meio a sério, sinto uma bela emoção estética (mais no corpo do que na faculdade do juízo) quando passo pelos livros porler. Como em Kant, mutatis mutandis, não haverá muitos conceitos para descrever esse prazer ou essa alegria. Mas não me enganarei muito se disser que prevejo que serei incendiado, uma e outra vez.

Qual é a lista actual das minhas alegrias porvir?

Nathalie Heinich, Le paradigme de l’art contemporain. Structures d’une révolution artistique. Gallimard, 2022.
Anne Carson, Sobre aquilo em que eu mais penso, trad. Sofia Nestrovski editora 34, 2023 [1950].
Byung-Chul Han, A Crise da Narração, trad. Gilda Lopes Encarnação, Relógio D’Água, 2023 [2022]. Restam umas magníficas 10 pp.
Louis-Ferdinand Céline, Castelos Perigosos, trad. Clara Alvarez, E-Primatur, 2025 [1957].
Arturo Leyte, Heidegger. El fracasso del ser, Shackleton Books, 2024 [2015].
João Barrento, Walter Benjamin. A Sobrevida das Ideias, Saguão, 2022.
Timothy Snyder, On Freedom, Random House, 2024.
Montaigne, Ensaios III, trad. Hugo Barros, E-Primatur, 2024.
Boris Graoys, Staline, Oeuvre d’art totale, Jacquelin Chambon, 1990.
Jenny Erpenbeck, Kairos, trad. António Sousa Ribeiro, Relógio D’Água, 2024 [2021]. A conter-me, para não terminar demasiado depressa.
Silvina Rodrigues Lopes, A Anomalia Poética, Língua Morta, 2023.
Benjamín Labatut, Um Terrível Verdor, trad. Guilherme Pires, Elsinore, 2024.
Daniel Chandler, Liberdade e Igualdade. O que será uma sociedade justa?, trad. Pedro Elói Duarte, Presença, 2024 [2023].
Bernard Edelman, Nietzsche. Un continent perdu, PUF, 1999.
CristopheBouriau, Kant écologiste, PUF, 2024.
Electra 27, inverno 2024.
Tatiana Faia, recurso e pobreza, Tinta da China, 2025. Para decrescer, sabendo que não nos podemos suicidar numa piscina se soubermos nadar bem, e que nem o maior dos sábios, que, acreditando nesta possibilidade, se torna o mais pequeno dos sábios, poderá explicar o que se passa numa rua que expulsou a classe média com os lamentos da pobreza.

A Montanha Mágica e o Escândalo da Distância

No seguimento do último café filosófico dedicado à Montanha Mágica de Thomas Man, teremos, desta vez, na livraria Snob, em Lisboa, o prazer, cognitivo e estético, de contar com a presença do autor de O Escândalo da Distância. Uma Leitura D’A Montanha Mágica Para o Século XXI, João Pedro Cachopo.

Regressamos, sem qualquer retromania, a uma das obras mais importantes da cultura alemã, a qual, contudo, é capaz de se elevar muito para lá das fronteiras dessa mesma cultura. É por isso que continua a dar a pensar a leitores de muitas regiões da Terra, continua e continuará, com o seu fulgor quase suspeito. É difícil imaginar, apesar do embrutecimento que nos assola, o desvanecimento D’A Montanha Mágica, pois trata-se de uma portentosa arte do romance: narrativa repleta de apontamentos filosóficos; um fresco acerca do retorno cíclico do dionisíaco bárbaro; um ensaio sobre o tempo e o ente, sobre a morte e o morrer, sobre a paixão («um amor que vive na dúvida»), sobre a admiração, sobre a técnica; um exercício de esclarecimento, quase militante, acerca de forças políticas progressistas e reacionárias, ambas revolucionárias, ambas com vocações obscuras; um arquivo do ridículo; uma força de emancipação; um neopaganismo incapaz de apaziguar «a grande exasperação»; tudo isso entre um tédio que eleva e outro que rebaixa.

Em O Escândalo da Distância, João Pedro Cachopo interpreta a obra de Mann a partir da tese de que se trata de um «romance filosoficamente pertinente», pois questiona a condição de possibilidade da própria filosofia — que, para o nosso ensaísta, reside na boa distância, a qual só pode ser encontrada na planície, e não na montanha. Após abordar os grandes temas do romance, Cachopo reflete sobre A Montanha Mágica como um romance sobre o tempo, sobre o seu tempo (Zeitroman) e sobre o nosso tempo. Conclui o ensaio com uma hermenêutica assumidamente pessoal, que questiona a atualidade, as forças da graça e da desgraça que a atravessam, os compromissos éticos e políticos que se impõem e a busca da boa distância, tanto epistemológica como empática. Trata-se, além disso, de um ensaio que quis afastar duas personagens conceptuais: o militante («que sempre já sabe de que lado está») e o esteta («para quem nunca há motivo para se comprometer com um mundo cruel e vulgar.»).

A Montanha Mágica e os signos

A Montanha Mágica (título original em alemão: Der Zauberberg) é um romance publicado em 1924 por Thomas Mann, escrito entre 1912 e 1923, após a estadia da sua mulher, Katia, em 1911, no sanatório de Davos, na Suíça. É considerada uma das obras mais importantes e influentes da literatura alemã.

Situado no início do século XX, o livro relata a experiência singular de Hans Castorp, um jovem engenheiro oriundo de uma família de comerciantes de Hamburgo, que, em 1907, visita o seu primo Joachim Ziemssen, militar com «olhos meigos», em tratamento no sanatório Berghof, na estância alpina de Davos. O jovem hamburguês, após lhe ser diagnosticada uma pequena infeção tuberculosa, é aconselhado a prolongar a sua estadia para além das sete semanas inicialmente previstas, que se transformam, afinal, em sete anos. Durante esse período, Hans imerge e adequa-se ao microcosmos das «pessoas lá de cima». Um fresco meio heteropático do mundo cosmopolita da época.

A sua permanência no sanatório, sob a direção do consultor Dr. Behrens, leva-o a conhecer uma galeria de personagens que, no seu conjunto, parecem compor o Zeitgeist da época: Lodovico Settembrini, um italiano maçon e defensor da Razão e do Progresso; Léon Naphta, um místico noviço jesuíta e implacável crítico da sociedade burguesa capitalista e do princípio aristotélico da bondade racional; Mynheer Peeperkorn, um hedonista carismático, e a sua companheira Clawdia Chauchat, uma figura livre das convenções, descrita como uma possível femme fatale, por quem Hans Castorp se apaixona, evocando a memória erótica de um amigo de escola de Lübeck, Pribislav Hippe. Entre outras figuras marcantes, destaca-se também o Dr. Krokovski, assistente de Behrens, inclinado para a psicanálise e prolífico conferencista sobre temas como a relação entre o amor e a morte.

Talvez um Bildungsroman, A Montanha Mágica narra os sete anos que moldam Hans Castorp, ao longo dos quais ele reflete e aprende sobre o amor, a morte, o tempo, a amizade, a doença, o tédio, o ódio... Aprende também que a morte não deve vencer a vida, talvez uma aprendizagem frustrada, sistematicamente frustrada.

Neste café filosófico, propomos pensar, inspirados pela abordagem de Gilles Deleuze em Proust et les signes, quais os signos principais que estruturam esta obra de Thomas Mann e de que forma contribuem, interna e externamente, para a constituição de aprendizagens. O que aprende Hans Castorp? E o que aprendemos nós, leitores, ao acompanhar a sua trajetória?

Esta reflexão também nos permitirá preparar o café filosófico de fevereiro, no qual teremos a honra e o prazer de acolher o autor do ensaio O Escândalo da Distância. Uma Leitura d’A Montanha Mágica para o Século XXI, João Pedro Cachopo.