Trump, o louco

No final do século xx, Richard Katz e Peter Mair demonstraram que os partidos políticos, tradicionais ou emergentes, se haviam transformado em «partidos cartel», para os quais já não interessa representar quaisquer interesses sociais, mas, enquanto organizações com fins lucrativos, cuidar da sua própria sobrevivência. Apesar de haver, tudo o indica, alguma consonância ideológica entre eleitos e eleitores, no essencial os partidos cartel concentram-se nos gostos individuais resultantes da fragmentação dos eleitores, formatados pelas redes sociais de massas, e desenvolvem uma enorme economia da preocupação a geometria variável que finge atender às reivindicações de múltiplas tribos, algumas antagónicas entre si.
Entretanto, emergiu, pela segunda vez (a história parece, neste caso, repetir-se, forçada pelo ridículo) o vendaval, há muito anunciado, Donald Trump. Uma figura política que representa os ressentidos, por razões que vão para lá da pobreza e do racismo, do país mais poderoso do Sistema Solar. Um ultraindividualista, de cariz messiânico (os evangelistas viram a sua reeleição como uma parousia), que, paradoxalmente, ficou preso nas malhas dos pedintes de utopias de grandeza absoluta. O Make America Great Again é, emocionalmente, percebido como Make Me Great Again, por pedintes que o acusarão de ser um falso profeta se não lhes der o céu que prometeu.
A agenda política de Trump é a agenda existencial dos ressentidos americanos. Baseada mais num transe coletivo do que numa equidade reflexiva, sugerida, e, até certo ponto, instaurada pelo Iluminismo, esse impulso coletivo para o inteligível.
Trata-se, na camada superficial — que, talvez, seja a camada mais profunda — de um turbilhão de loucura, de uma brolarquia, de um novo virilismo, adepto da aplicação da máxima força possível contra os indefesos, de uma lógica disruptiva, de um culto do novo pelo novo, abandonando tudo o que foi, só porque foi. Uma estratégia do choque, como lhe chamou Naomi Klein em 2007, que consiste em intervir para impor mudanças numa sociedade que se julga em declínio. Para isso, deve-se siderar para anestesiar a capacidade de reação.
Trump, o presidente louco, como se dizia que Diógenes o Cínico era o Sócrates Louco. Mas, agora, sem qualquer preocupação pelo falar verdade, e, já agora, com a lucidez necessária para aumentar a riqueza dos ricos. Uma loucura que desfez a ideia da paz perpétua que Rousseau ou Kant inauguraram como alternativa ao maquiavelismo. Os otimistas ainda pensam na «desordem organizada» de Mérimé, mas talvez seja apenas um furor demiúrgico, como se o Diabo criasse o mundo jogando com dados viciados. Talvez estejamos perante aquilo que Max Weber dizia de muitos políticos: palhaços carismáticos. Ou aquilo que Nietzsche disse da tribo dos feiticeiros falhados: «em vez de criarem o mundo a partir do nada, criam um nada a partir do mundo
Sem mais adjetivações (havia um professor que as considerava o pior inimigo da filosofia), talvez venha a propósito citar novamente Nietzsche, com um aforismo completo, numa nova tradução que sairá em breve nas Edições 70, de Humano, Demasiado Humano I, § 93:


«Sobre o direito do mais fraco. — Se alguém se submete, sob certas condições, a outro mais poderoso, por exemplo numa cidade sitiada, a contra-condição é que pode destruir-se a si próprio, queimar a cidade e causar, assim, uma grande perda ao poderoso. Por esta razão, cria-se aqui uma espécie de equiparação em função da qual se podem estabelecer direitos. O inimigo tem vantagem na preservação. — A este respeito, existem também direitos entre escravos e amos, ou seja, justamente na medida em que a propriedade do escravo é útil e importante para o seu amo. Originariamente, o direito vai até onde parecer valioso ao outro, essencial, imperdível, invencível e afins. Neste sentido, o mais fraco continua a ter direitos, mas em menor escala. Daí o famoso unusquisque tantum juris habet, quantum potentia valet (ou mais exatamente: quantum potentia valere creditur)[1]

[1] Fórmulas, ligeiramente alteradas, de Bento de Espinosa, Tratado Político, 1677, provavelmente recolhidas por Nietzsche em Schopenhauer (Parerga y Paralipomena II): «Cada um tem tantos direitos quantos vale pelo seu poder»; «quanto julga valer pelo seu poder».